
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Por Adriana Lopes e Eduardo Bonzatto
Falar sobre cabelo não é apenas tratar de estética ou cultura, mas mergulhar em um universo complexo onde se cruzam liberdade, escolhas pessoais e pressões sociais. A discussão muitas vezes é atravessada por discursos que, embora bem-intencionados, acabam reforçando um senso de vitimismo ou paternalismo que pouco contribui para o verdadeiro protagonismo de quem vive essa realidade.
É fundamental desmistificar a ideia de que mulheres negras, por exemplo, estariam presas a padrões únicos ou limitadas a uma forma singular de expressão capilar. Muito pelo contrário, elas são, historicamente e contemporaneamente, as que mais exploram as possibilidades estéticas de seus fios. Não por submissão, mas por autonomia. Alisar, trançar, deixar natural, usar lace, raspar, colorir, tudo é expressão e, nenhuma dessas escolhas é, por si só, um símbolo de opressão. O poder está na liberdade de decidir.
Quem poderia ignorar, por exemplo, a ousadia performática de Grace Jones nos anos 80, com seus cortes geométricos e altamente artísticos? Ou a estética fluida e poderosa de Beyoncé, que transita por perucas loiras, tranças ancestrais e cabelos naturais com igual força simbólica? Não se trata de agradar um olhar externo, mas de afirmar múltiplas possibilidades dentro de um único corpo. Mais recentemente, a rapper Lizzo incorporou em suas aparições públicas desde black power até perucas fluorescentes, não para provar nada a ninguém, mas para mostrar que sua estética é, antes de tudo, sua. E que beleza não precisa pedir licença.
Na história afro-americana, ícones como Josephine Baker e Eartha Kitt, nos anos 20 e 30, enfrentaram um mundo que as obrigava a embranquecer sua imagem para caber nos palcos europeus e norte-americanos. E mesmo dentro desses moldes forçados, subverteram códigos com elegância, inteligência e autonomia, dominando o jogo da imagem sem nunca serem totalmente dominadas. O cabelo alisado, nesse contexto, foi mais ferramenta de sobrevivência e ascensão do que submissão. Era estratégia, e toda estratégia tem potência.
Aqui no Brasil, também temos figuras marcantes. Elza Soares, com seus turbantes e cortes ousados, nunca foi uma mulher domesticada por padrões. Taís Araújo, com sua fala precisa e sua imagem pública, transforma cada aparição em um ato de liberdade. E há ainda uma multidão de mulheres anônimas, nas periferias e salões populares, que fazem escolhas capilares diárias que comunicam, educam e desconstroem. Elas não seguem modismos, mas os criam.
É essa pluralidade de escolhas que escancara que o cabelo é um espaço de construção de identidade fluida, sem amarras. É um território livre. E isso só é possível porque o conhecimento sobre os próprios fios, aliado à técnica profissional, transforma o cuidado capilar em ferramenta de emancipação real.
Na prática clínica e profissional, o desafio é justamente esse: formar pessoas que sejam protagonistas do próprio cuidado, munidas de ciência, técnica e liberdade. O cabelo deve ser tratado como extensão do indivíduo, com respeito às suas singularidades biológicas, emocionais e culturais, mas também com liberdade para inovar, experimentar e reinventar. Isso é autonomia.
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É importante romper com a ideia de que o cuidado capilar seja apenas um campo de resistência política ou social. Embora essa dimensão exista e seja legítima, o cabelo é, acima de tudo, um lugar de prazer, expressão artística e transformação pessoal. Reduzi-lo a símbolo de dor ou opressão é também limitar sua potência.
Por fim, defendemos que o debate sobre o cabelo deve ser marcado pela valorização do conhecimento técnico e da autonomia, sem recorrer a discursos que reforcem passividade ou dependência. O cuidado capilar é uma ciência e uma arte que exige respeito às diferenças, sensibilidade e compromisso com a emancipação real dos indivíduos, para que possam assumir seu estilo, sua identidade e sua saúde capilar sem medo ou imposição.
Para além da estética, o cabelo é uma manifestação tangível da biologia, da história e da cultura de cada pessoa. É também um campo fértil para o desenvolvimento de tecnologias, tratamentos e abordagens que respeitam a singularidade de cada fio, couro cabeludo e ser humano. Ao promovermos uma tricologia baseada no conhecimento rigoroso, técnica apurada e empatia verdadeira, estamos pavimentando um caminho onde a liberdade capilar é concretizada na prática, e não apenas em discursos.
Essa liberdade não significa rejeitar a vaidade ou os cuidados com a imagem. Significa tomar posse do próprio corpo e da própria estética. Significa escolher sem medo de ser rotulado. Significa entender que a beleza não deve se adaptar ao mundo, mas o mundo à multiplicidade do que somos.
Este é o chamado para uma revolução silenciosa e profunda, onde o cabelo deixa de ser apenas um símbolo para se tornar uma expressão viva da autonomia, saúde e identidade plena. Uma revolução feita nas mãos de quem cuida, de quem estuda, de quem escolhe e acolhe. Uma revolução que começa no espelho, passa pela técnica, e termina no olhar de quem, enfim, se reconhece.
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