O BRICS e as “armadilhas da dívida” do FMI

O que o Acordo de Reserva Contingente pode fazer pelo Sul Global?

por Luís Carlos

Do Instituto de Estudos Internacionais

Nos últimos dois anos, o BRICS têm experimentado uma popularidade até então inédita em sua existência. Além da expansão realizada no ano passado, a lista de países que querem se juntar ao grupo não para de crescer, mas a expansão de membros plenos está suspensa temporariamente, pois não há capacidade para incorporar mais países agora. No momento, se discute a criação da categoria de “países parceiros”, uma solução similar aos “observadores” da Organização de Cooperação de Xangai. Por um lado, essa popularidade demonstra fissuras na hegemonia das potências ocidentais, muito desgastada pelas guerras na Ucrânia, pelas milhares de sanções impostas aos países do Sul Global e por seu apoio irrestrito ao massacre do povo palestino. Por outro lado, isso aumenta a pressão para que o BRICS sejam capazes, nos próximos anos, de apresentar alternativas concretas para as demandas mais urgentes do Sul Global, como o desenvolvimento econômico, o enfrentamento da crise climática e ambiental, e o combate à pobreza e à desigualdade.

Gostaria de propor uma reflexão sobre o potencial inexplorado de uma instituição estratégica criada pelo BRICS, o Acordo de Reserva Contingente (ARC). Com algumas decisões políticas dos chefes de estado do grupo, o ARC poderia ter consequências econômicas e políticas crucias a curto prazo.

O decreto de criação do ARC foi assinado em 2014, ao mesmo tempo em que o Novo Banco de Desenvolvimento, na Cúpula de Fortaleza (Brasil). Se o chamado “Banco do BRICS” foi idealizado como uma alternativa ao Banco Mundial, o ARC visava se tornar uma alternativa ao FMI. Seu objetivo é garantir ajuda emergencial aos países do BRICS em caso de problemas de liquidez em suas reservas internacionais. Ou seja, se um país se encontra com um nível baixo de reservas em moedas estrangeiras (na prática, de dólares), que traga risco de curto prazo para suas operações de comércio internacional ou do pagamento de serviços de sua dívida, o ARC prevê o desembolso dos recursos necessários para evitar a suspensão de suas importações, ou mesmo a moratória dos serviços da dívida externa.

Trata-se de um fundo de US$ 100 bilhões, cuja contribuição foi assim dividida: 41% da China, 18% da Rússia, Brasil e Índia, e 5% da África do Sul. O poder de voto de cada país corresponde ao peso de sua contribuição financeira, de modo que nenhum país sozinho possui poder de veto – como ocorre com os EUA no FMI. Pelo acordo, o dinheiro permanece nos respectivos bancos centrais e é sacado em caso de solicitação, através de swaps cambiais entre os dólares das reservas dos países provedores e a moeda local do país solicitante.

É um acordo fundamental, pois a escassez de reservas internacionais tem sido, nas últimas décadas, a base material para a perversa atuação do FMI nas economias do Sul Global. Mas ele carrega uma contradição: os cinco países do BRICS que o criaram possuem reservas internacionais bastante sólidas, e é muito improvável que precisem acessar o fundo a curto ou médio prazos. Não à toa, esse fundo existe há 9 anos e jamais foi usado.

Por outro lado – e como sempre -, há inúmeros países do Sul Global, nesse momento, dependentes de empréstimos do FMI, entre eles, Gana, Sri Lanka, Paquistão, Argentina e Quênia, cujos recentes protestos massivos contra um aumento de impostos exigido pelo fundo resultaram em dezenas de mortos. As condicionalidades destes empréstimos seguem a mesma cantilena neoliberal de austeridade fiscal das últimas décadas: corte de gastos sociais e mais abertura de seus mercados para capitais privados internacionais (do Norte Global), uma receita que já devastou inúmeras economias nacionais. O mais grave é que há dois novos membros do BRICS nesta situação: Etiópia e Egito, sendo que o segundo, além de membro dos BRICS, é também membro do NDB, que tem mais um membro, Bangladesh, na mesma situação. Este último, aliás, vive uma intensa crise política.

A Etiópia decretou moratória de serviços de sua dívida em dezembro de 2023 (US$ 31 milhões) e está sendo pressionada pelo Clube de Paris a garantir um empréstimo de US$ 3,5 bilhões com o FMI como condição para a suspensão do pagamento dos serviços da dívida durante 2025. Analistas dizem que o FMI deve impor ao país uma desvalorização cambial e a privatização de parte dos setores bancário e de telecomunicações. Ou seja, a Etiópia desvaloriza seus ativos e, em seguida, os vende para estrangeiros. Clássico exemplo de “armadilha de dívida”.

Já o Egito se vê em situação semelhante. Solicitou uma extensão de US$ 5 bilhões ao FMI (após ter pedido US$ 3 bi, em dezembro de 2022), que foi confirmada em março de 2024. As condições do Fundo são: desvalorização da libra egípcia e o cancelamento de qualquer mecanismo de controle cambial, rigidez monetária e fiscal, corte de gastos sociais com os mais pobres e o fim de incentivos do estado às empresas estatais.

Agora, imaginemos: se ao invés de solicitarem recursos ao FMI e terem de se submeter às condicionalidades do fundo de Washington, estes países – que já são membros dos BRICS e/ou do NDB – pudessem acessar o Acordo de Reserva Contingente? Em vez de ligarem para Kristalina Georgieva, eles ligariam para Dilma Rousseff. Em vez de se submeterem à armadilha da dívida do FMI, eles buscariam soluções de ajustes econômicos nos marcos do BRICS, cujo objetivo seria o de priorizar os interesses das economias e do povo etíope, egípcio e bengali, e não os interesses de Wall Street, ou da City de Londres?

Será essa uma proposta muito idealista para um fundo monetário que hoje conta com US$ 100 bilhões, e que poderia crescer com aportes de novos membros com robusta liquidez de reservas internacionais, como a Arábia Saudita e os EAU? Penso que não. Cerca de 10% dos recursos do fundo resolveriam a urgência da Etiópia e do Egito. Mas, para que isso possa acontecer, ainda será preciso rever mais um entrave no estatuto do ARC. Atualmente, se um país membro solicita recursos ao fundo, somente 30% destes pode ser autorizado soberanemente pelos países do BRICS. Os outros 70% precisam ser autorizados pelo… FMI! Ou seja, criou-se um fundo monetário “alternativo” ao FMI, mas que precisa da benção do próprio FMI para ser utilizado. Chega a ser irônico, porém é a demonstração daquilo que Sergei Glazyev afirmou recentemente ao se referir ao NDB, mas que vale igualmente para o ARC: “o problema é que o NDB funciona de acordo com o estatuto do dólar. Eles precisam reorganizar essa instituição para torná-la viável”. Historicamente, é até compreensível, pois ambos foram criados em uma conjuntura diferente da atual, na qual ainda não vivíamos um acirramento das contradições entre as potências imperialistas e a maioria global. Mas a história urge por mudanças.

Trata-se, em última instância, de uma decisão política dos chefes de estado dos BRICS. Salvar alguns de seus membros das clássicas “armadilhas da dívida” impostas pelo FMI seria uma vitória política histórica para o Sul Global, que poderia demonstrar, na prática, o potencial da cooperação no BRICS. Quem sabe, futuramente, o ARC possa ser estendido para mais países do Sul?

É evidente que o socorro para países que enfrentam problemas de liquidez das reservas internacionais é apenas uma medida de emergência, que não resolve os problemas estruturais das relações desiguais entre os países do Norte e do Sul Globais no interior do sistema capitalista global. Nem resolve o grave problema da dívida dos países do Sul Global com as instituições financeiras multilaterais e com os bancos privados dos EUA e da Europa. Para isso, será preciso avançar em distintas estratégias que enfrentem os gargalos para o desenvolvimento na América Latina, na África e na Ásia. Talvez passe também por um grande debate global sobre o perdão de parte da dívida do Sul Global. Mas o BRICS precisa de conquistas concretas, e o Acordo de Reserva Contingente pode ser aquela que está mais ao alcance das nossas mãos.

Luís Carlos – Editor da Revista Internacional

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Last Update: 13/08/2024