O BRICS e a diplomacia corporativa digital, por James Görgen

O BRICS e a diplomacia corporativa digital

por James Görgen

Como se sabe, a geopolítica na atualidade já não se decide apenas nos palácios ministeriais ou nos campos de batalha tradicionais. A nova fronteira do poder global reside também nos cabos de fibra ótica, nos data centers e, sobretudo, nos algoritmos opacos que governam o fluxo de dados. Há cerca de uma década, as gigantes da tecnologia transcenderam o papel de meros atores do mercado. Nos últimos anos, elas passaram a operar sob uma lógica de extraterritorialidade e supranacionalidade que desafia a mais fundamental das instituições políticas da história: o Estado-nação.

Este não é um drama de ficção científica, mas a realidade incômoda que define a transição da ordem internacional. O poder dessas corporações é de tal magnitude que elas não apenas influenciam as regras do xadrez institucional; elas definem o tabuleiro, as peças e até mesmo as leis da física digital. E fazem isso em alinhamento com os governos de seus países de origem, ameaçando a autonomia dos demais.

Neste cenário de soberania tensionada, o BRICS emerge não apenas como um grupo de cooperação econômica, mas como o principal polo de resistência a este novo tipo de poder. A busca pela Soberania Digital, para esses países, não é uma pauta técnica restrira à tecnologia da informação. Como afirmam os estudos críticos de segurança, trata-se de um ato de emancipação contra o colonialismo digital, onde a agenda digital é, fundamentalmente, a política externa do futuro.

A arquitetura do poder estrutural

Para entender como o Vale do Silício ganhou o status de diplomacia corporativa digital, precisamos sair da superficialidade do “lobby” e mergulhar na essência do poder. A teórica Susan Strange nos deu a chave: o Poder Estrutural. Não se trata de convencer um governo a assinar um contrato ou aprovar uma lei, mas de moldar a própria estrutura sobre a qual todos os governos devem operar.

Para a autora, as Big Techs detêm este poder em quatro esferas vitais da vida moderna, atuando como verdadeiros arquitetos da realidade global. Primeiramente, na Segurança, controlam a infraestrutura crítica — dos cabos submarinos aos serviços de nuvem — decidindo quem pode ser monitorado e como a informação é protegida (ou, inversamente, interceptada por terceiros). Em segundo lugar, na Produção, definem as cadeias de suprimentos globais e, mais do que isso, regulamentam o trabalho na Gig Economy, transformando trabalhadores em notas de rodapé de seus termos de serviço. Nas Finanças, através das plataformas de pagamento e da ameaça latente de moedas digitais corporativas, elas flertam perigosamente com a desintermediação dos bancos centrais. Por fim, no Conhecimento e Dados, o controle sobre os algoritmos não é apenas comercial; é epistemológico, pois determina o que vemos, o que sabemos e, crucialmente, o que o Estado sabe sobre nós.

Essa capacidade estrutural transforma CEOs em agentes diplomáticos, capazes de negociar diretamente com chefes de Estado e definir padrões normativos muito antes que qualquer parlamento consiga redigir uma lei. Esta é a prova cabal de que as corporações tecnológicas operando em escala global têm meios e fins que extrapolam a função de utilidade da maximização do lucro e do valor de mercado. E novos objetivos, exigem novos recursos. Esta necessidade que o capital do Vale do Silício tem de controlar ou se apropriar dos meios de coerção, que até hoje eram o principal diferencial entre os subsistemas de poder e dinheiro nas sociedades capitalistas e os estados nacionais, nos leva a uma escalada de busca por um poder geopolítico.

O Estado aprofunda o jogo

Por muito tempo, a narrativa ocidental nos vendeu a ilusão de um “mercado livre” digital nos EUA em contraste com o “controle estatal” na China. Esta dicotomia simplista caiu por terra nos últimos anos. Estudos recentes apontam para a ascensão do Capitalismo de Plataforma Estatal (SPC), um regime onde a separação entre Estado e Corporação digital é quase inexistente, movido pela rivalidade geopolítica EUA-China.

As plataformas não operam mais no vácuo; elas são instrumentalizadas. Nos Estados Unidos, esta natureza é implícita e profunda: contratos maciços de defesa (o Complexo Digital-Militar), isenções e subsídios atuam como um cordão umbilical que liga o Tesouro, por exemplo, às contas da Amazon e da Microsoft. Na semana passada, o governo Trump lançou sua Estratégia Nacional de Segurança, um documento curto que deixa claro os caminhos que os EUA seguirão em suas políticas externa e interna, incluindo parte da agenda digital.

Antes de se debruçar no que nos interessa neste texto vale descrever as linhas-mestras do documento. A Casa Branca está articulando uma doutrina de “Realismo Flexível” e soberania nacional absoluta, rejeitando o globalismo e instituições transnacionais que limitem a autonomia dos EUA. A política interna é projetada como política externa: o controle rigoroso das fronteiras (“O Fim da Era da Migração em Massa”) e a deportação são tratados como a prioridade número um de segurança nacional. Economicamente, o texto defende o protecionismo através de elevadas tarifas comerciais, a reindustrialização forçada e a independência energética total, rejeitando acordos climáticos globais e focando na exploração máxima de combustíveis fósseis e energia nuclear para garantir prosperidade interna.

A agenda digital da Estratégia estadunidense estabelece sua supremacia tecnológica como o alicerce da segurança nacional e prosperidade econômica. O plano foca agressivamente na proteção da propriedade intelectual e na liderança incontestável em setores emergentes como inteligência artificial, computação quântica e biotecnologia. Para isso, propõe uma fusão entre a base industrial de defesa e o setor tecnológico privado como já vinha se desenhando, incentivando a desregulamentação para acelerar a inovação e o uso de operações cibernéticas ofensivas para neutralizar ameaças à infraestrutura e à economia dos EUA.

Simultaneamente, a estratégia utiliza a tecnologia como a principal ferramenta diplomática de persuasão. Os EUA planejam oferecer acesso privilegiado aos seus mercados de capitais, tecnologias de IA e sistemas de defesa avançados a parceiros que se alinhem aos seus interesses e controles de exportação, isolando competidores como a China. A infraestrutura digital global é vista como um terreno onde os padrões americanos devem prevalecer, garantindo que o futuro da economia digital opere sob regras favoráveis a Washington e livres de influência adversária em cadeias de suprimentos críticos.

Uma breve análise sobre a doutrina de segurança vem de Kevin Xu, que tem explorado o conceito de “Guerra da Nuvem” (Cloud War). Ele fornece um ângulo crucial que transforma a competição tecnológica em uma tática explícita de política externa. Ao analisar a Estratégia de Washington, Xu argumenta que com a Inteligência Artificial sendo amplamente oferecida a partir de um serviço de nuvem, a disputa pelo controle da infraestrutura de data centers fora dos mercados domésticos tornou-se o novo vetor da confrontação tecnológica global, sucedendo à guerra do 5G, ganha pela China.

Neste cenário, diplomatas e oficiais de serviços estrangeiros dos EUA são cada vez mais encarregados de promover ativamente a adoção de plataformas americanas (hyperscalers), transformando as agências governamentais em promotoras da pilha tecnológica do país. Essa estratégia deliberada de “empurrar” a tecnologia americana para o exterior força regiões até então neutras, como o Oriente Médio e a América Latina, a se tornarem campos de batalha digital, minando a autonomia estratégica dos países do BRICS e a sua busca por autonomia tecnológica soberana.

O documento também concentra seu foco como aliados e rivais no digital em Golfo Pérsico e China. O governo Trump deverá se vincular com os países do Golfo pelo fortalecimento de parcerias através da diplomacia comercial e tecnológica, onde a região é vista como um destino crucial para investimentos em energia nuclear, IA e tecnologias de defesa. A estratégia destaca o sucesso em garantir o apoio das nações árabes à tecnologia de alto desempenho de IA americana em detrimento de alternativas concorrentes, o que serve para aprofundar as parcerias de segurança e alinhar a região aos interesses dos EUA. Além disso, manter o fluxo de energia do Golfo longe do controle de inimigos permanece um interesse central, mas agora complementado por uma colaboração onde os EUA exportam tecnologias energéticas e atraem capital da região para seus próprios mercados.

Em relação à China, a Estratégia estadunidense adota uma postura de competição tecnológica e econômica agressiva, identificando a inteligência artificial (IA) e a computação quântica como domínios vitais onde devem manter e avançar sua vantagem militar e de uso duplo. A Estratégia enfatiza que a “dominância energética” americana — através de energia barata e abundante — é essencial para alimentar o crescimento dessas tecnologias de ponta, como IA, e sustentar a reindustrialização necessária para reduzir a dependência de cadeias de suprimentos controladas pela China. O objetivo explícito é impedir que tecnologias e padrões dos EUA sejam suplantados e garantir que adversários não tenham acesso a inovações críticas, protegendo a propriedade intelectual contra roubo e espionagem industrial.

Ao mesmo tempo, Trump tem feito movimentos dúbios na relação com o concorrente de corrida. Em um texto recente, Gary Marcus questiona a coerência da política de IA da Casa Branca, mencionando a complexa relação pendular com a China enquanto impede assembleias legislativas estaduais de regularem a tecnologia localmente. Entre mudanças radicais e imprevisíveis, o presidente dos EUA, especialmente no domínio tecnológico e de IA, fez uma série de ações e retornos abruptos, desde medidas duras como tarifas e restrições à Huawei até períodos de aparente trégua, refletindo uma abordagem inconstante e por vezes contraditória, que oscilava entre o isolamento agressivo e a colaboração seletiva.

Mas se estamos a competir com a China, por que estamos de repente a permitir que a Nvidia lhes venda H200s, um dos chips mais potentes (embora não o mais potente) da sua linha? Não consigo entender. Um cínico poderia dizer que a verdadeira ideia da desregulamentação talvez seja ajudar as empresas de IA do Vale do Silício a ganhar mais dinheiro com a IA (sem levar em conta o impacto sobre os cidadãos do país). Mas, ao vender os chips para a China, Trump não está a armar os seus concorrentes?

Dominância instrumental

Na China, como nos mostra o White Paper de Segurança Nacional 2025, lançado em maio, a instrumentalização da tecnologia como política interna e externa também é explícita. O Estado chinês disciplinou suas Big Techs não para destruí-las, mas para garantir que sirvam ao projeto nacional, que configurou um sistema tecnológico totalmente integrado e soberano. O governo de Pequim está vinculando ativamente suas tecnologias avançadas, como IA, 5G (em paralelo ao 6G) e computação de alto desempenho, em sua política externa para remodelar a ordem global e expandir sua influência geopolítica, superando a mera exportação de produtos.

A estratégia, que se alinha com o plano Made in China 2025, foca em estabelecer a China como líder global em setores críticos de alta tecnologia, reduzindo a dependência de fornecedores ocidentais e, ao mesmo tempo, criando dependência tecnológica em países parceiros. Isso se manifesta na exportação de infraestrutura digital completa, como redes 5G da Huawei, sistemas de vigilância baseados em IA e plataformas de fintechs para nações em desenvolvimento, especialmente aquelas que fazem parte da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative). Ao oferecer alternativas tecnológicas muitas vezes mais baratas e sem as exigências de privacidade ou governança do Ocidente, a China consegue estabelecer seus próprios padrões tecnológicos e normas regulatórias no exterior, cimentando sua posição como um poder tecnológico rival aos EUA.

Esta integração tecnológica permite ao Partido Comunista projetar seu modelo de intervenção externa e ampliar suas capacidades de coleta de dados e vigilância em escala global. O uso da IA não se restringe apenas à competição econômica, mas também à capacidade militar (fusão civil-militar) e ao monitoramento do ambiente informacional. Plataformas avançadas de IA estão sendo aplicados em sistemas de defesa cibernética, antecipação de conflitos e, potencialmente, na exportação de tecnologia militar autônoma. Além disso, no domínio diplomático e de soft power, a IA pode ser usada para criar modelos de linguagem e ferramentas de mídia que melhoram a capacidade da China de moldar narrativas globais, complementando seus esforços de segurança nacional.

Hegemonia bipolar

Essa abordagem de política externa impulsionada pela tecnologia força os demais países a reconsiderarem a soberania de sua infraestrutura digital, frequentemente apresentando uma escolha binária entre o ecossistema tecnológico chinês ou o americano. Em um caso ou no outro, as Big Techs são, portanto, os instrumentos de projeção do poder das duas potências. Ao mesmo tempo, os demais países são pressionados em sua soberania de exercer políticas digitais (regulação e política industrial), principalmente, por esta aliança entre governo e conglomerados dos EUA. Realidade que ficou mais escancarada com o retorno de Donald Trump à Casa Branca.

Tanto a Estratégia Nacional de Segurança 2025 dos Estados Unidos quanto o White Paper de Segurança Nacional da China 2025 revelam uma convergência fundamental: ambas as nações reconhecem que as grandes empresas de tecnologia são atores centrais na competição geopolítica contemporânea, integrando explicitamente a diplomacia corporativa digital em suas políticas de segurança nacional. Nos EUA, a estratégia estabelece uma “colaboração mais próxima entre o Governo dos EUA e o setor privado americano”, designando embaixadores como “campeões de negócios americanos”, caso de Sam Altman (OpenAI) e Jensen Huang (NVidia), posicionando empresas como Microsoft, Google e Apple como instrumentos de soft power baseados em valores globais, ética em inteligência artificial e soberania digital. A diplomacia corporativa americana, exemplificada pela liderança de Brad Smith na Microsoft, transcende o lobby tradicional para engajar governos, organizações internacionais e sociedade civil, buscando estabelecer normas internacionais de cibersegurança e governança de dados.

Por sua vez, a China estrutura sua estratégia em torno do conceito de “segurança holística” que integra diretamente suas Big Techs — Huawei, Alibaba, Bytedance e Tencent, entre outras — como extensões do aparato estatal, focando em soberania digital e autossuficiência tecnológica como fundações para a modernização econômica e a resistência à contenção americana.

Enquanto o modelo americano mantém uma aparente independência corporativa operacionalizada através de responsabilidade social corporativa e transparência, o modelo chinês subordina explicitamente a diplomacia corporativa aos objetivos de segurança nacional, utilizando as gigantes digitais como instrumentos diretos de política externa e expansão de infraestrutura crítica global. Ambas as estratégias convergem na instrumentalização da diplomacia corporativa digital para competir por predomínio em inteligência artificial, semicondutores e infraestrutura 5G/6G. Porém, divergem fundamentalmente em seus pressupostos: os EUA buscam legitimidade através de normas e valores compartilhados, mesmo que impostos de forma unilateral, enquanto a China persegue autossuficiência e soberania tecnológica como defesa contra interferência externa.

Esta dicotomia contrapõe não apenas modelos de capitalismo de estado e economia de mercado, mas também visões contrastantes sobre o papel das corporações na diplomacia internacional — para os EUA, as big techs são parceiras na projeção de poder para o domínio via valores compartilhados; para a China, são instrumentos de poder estatal. A intensificação dessa diplomacia corporativa digital entre os dois sistemas sugere que a próxima década de competição geopolítica será mediada não apenas por negociadores diplomáticos tradicionais, mas por executivos e proprietários de empresas de tecnologia operando nas intersecções entre mercado, segurança nacional e governança global.

A chancelaria privada em ação no BRICS

O resultado é um dilema insustentável para o BRICS: alinhar-se a um conglomerado estadunidense é aceitar a jurisdição extraterritorial de Washington; alinhar-se a uma plataforma chinesa é aceitar o projeto de integração colaborativa de Pequim. A Soberania Digital para o Sul Global se torna, portanto, a busca pelo que se poderia chamar de des-siliconização, a autonomia para construir um futuro que não seja ditado por nenhum dos dois hegemons tecnológicos.

A atuação das Big Techs sobre um BRICS fragilizado por desacordos recentes precisa ser objeto de um estudo de caso mais aprofundando em Diplomacia Corporativa. De forma empírica, podemos dizer que ela se desdobra em três frentes de projeção de poder. A primeira é a Diplomacia de Padrões(normative power) por meio da qual as empresas não esperam por leis; elas criam padrões técnicos (como o 5G ou as especificações de IA) em fóruns privados onde capturam os técnicos, garantindo que seus protocolos se tornem a norma global. Ao definir o padrão, definem os limites do que é regulável, tolhendo o espaço de manobra de países médios. Ao mesmo tempo, exercem a Diplomacia da Infraestrutura (material power) direcionando o investimento em centros de dados e cabos submarinos para além de uma benesse comercial para o país onde operam; trata-se de uma negociação por território. Ao fincar hardware em solo nacional, a empresa exige concessões fiscais e, o mais importante, negocia os termos de acesso e jurisdição em caso de requisição de dados pelo Estado de origem. O chão da nuvem é o novo território de segurança. A terceira é a da Diplomacia da Legitimidade onde programas de “filantropia digital” ou de “inclusão” visam construir uma base social e política inatacável. Ao preencherem lacunas estatais, elas geram lock-in e tornam-se indispensáveis, construindo um escudo de utilidade social que dificulta qualquer iniciativa de regulação mais rígida.

Um mosaico de soberania

Os membros do BRICS, cientes da securitização da tecnologia, têm respondido com estratégias distintas. Cada um a seu modo, tentam criar maior ingerência na diplomacia das Big Techs. Estas, por sua vez, apoiam-se em seus governos para assegurar liberdade de ação transnacional.

Como já mostramos anteriormente, a China se encontra descolada do restante do grupo. Por isso, é a única que pode adotar a Soberania Cibernética, buscando o controle através da política tecnológica utilizando suas campeãs nacionais como extensões de seu poder no Sul Global (a diplomacia do 5G da Huawei e de rede social da Bytedance). O foco é na estabilidade política e busca de independência relativa das tecnologias ocidentais.

Por sua vez, a Rússia prioriza uma Soberania Defensiva, construindo resiliência contra sanções e ataques externos, com projetos como o RuNet (a internet “desconectável”) e a substituição compulsória de softwares ocidentais, um claro reflexo de sua postura de guerra híbrida.

No caso da Índia, o foco é o Nacionalismo de Dados, onde eles não são vistos como risco, mas como ativo de desenvolvimento. O India Stack — uma infraestrutura pública digital de identidade e pagamento — visa desintermediar as plataformas privadas, enquanto o governo indiano adota o bloqueio seletivo de aplicativos estrangeiros para proteger sua indústria e seus dados.

Já o Brasil opera no campo do Multilateralismo e da Regulação. Com quadros legais abrangentes como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, o país tem tentado moldar o ambiente regulatório global de dentro, influenciando o G-20 e o próprio BRICS. A força reside não em construir uma alternativa tecnológica puramente nacional, mas em forçar as Big Techs a cumprirem normas democráticas e transparentes no seu território. Caminho seguido pela União Europeia sem se preocupar com a industrialização e que está sendo repensado por Bruxelas.

Por fim, a África do Sul adota uma postura singular. Seu principal desafio não é apenas a dependência de Big Techs, mas a urgência em utilizar a tecnologia para superar desigualdades estruturais. A estratégia sul-africana está profundamente ligada à Quarta Revolução Industrial (4IR). Isso a torna um hub estratégico, paradoxalmente, mais vulnerável. É uma porta de entrada para a tecnologia chinesa no continente, muitas vezes abraçando essa parceria para obter a infraestrutura a preços acessíveis, em detrimento do alinhamento ocidental.

Com a entrada de novos países médios, o grande desafio do BRICS é tentar aproximar estas estratégias no pouco que elas possuem em comum. Harmonizar esses modelos, pois uma coordenação regulatória e de política industrial eficaz — na qual os padrões da LGPD brasileira se encontram com a resiliência russa e o nacionalismo indiano — criaria um mercado digital de escala capaz de ditar, e não apenas aceitar, as regras do jogo de soft powerimposto pelos EUA.

Emancipação pelo alinhamento

A autonomia estratégica do BRICS será decidida pela capacidade de seus países membros de internalizar a tecnologia como questão de Estado e de capitalizar seus momentos de fragilidade corporativa como uma conjugação de esforços. Algo bastante difícil de ser alcançado dada a atual fragilizada na coesão do bloco.

O primeiro passo é desmistificar a neutralidade tecnológica. Reconhecer que um chip, um algoritmo ou um cabo submarino carregam consigo as intenções e as jurisdições de seu país de origem. A soberania digital requer, portanto, uma política industrial que invista em alternativas locais e promova o código aberto.

O caminho para o BRICS não é o isolacionismo, como quer a Casa Branca, mas a coordenação. Criar um mercado digital de 3 bilhões de pessoas com regras similares de proteção de dados, resiliência da rede, padrões de IA e cláusulas de soberania em contratos de compras públicas é a única forma de forçar as Big Techs a se adaptarem ao Sul Global, e não o contrário.

Como se sabe, o futuro da ordem mundial não será decidido apenas por quem tem mais armamento, mas por quem controla o fluxo de dados, quem define o código e quem é capaz de governar a geopolítica do algoritmo. O BRICS tem a massa crítica, mas precisa de coerência estratégica. É urgente que seus líderes entendam: a Diplomacia Corporativa Digital é a nova face da disputa por poder no século XXI. É hora de os Estados nacionais, finalmente, assumirem o controle de suas agendas neste campo por meio da política externa multipolar.

James Görgen é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e Assessor no Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços

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