Flaviano Cardoso é bancário da Caixa Econômica Federal no Ceará, membro da Cipa, advogado e ativista político

O Brasil vive uma epidemia silenciosa no mundo do trabalho, que não pode mais ser tratada como um dado estatístico frio ou como um problema individualizado. Em 2024, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) registrou cerca de 440 mil afastamentos por transtornos mentais e comportamentais — o dobro do que se verificava há uma década, com ansiedade e depressão ocupando o topo das causas.

Esses números, por si sós, já revelam a dimensão da crise. No setor bancário, levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) para a Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro da CUT (Contraf-CUT), com base no Smartlab, confirma que a saúde mental foi a principal causa de afastamento no ano, representando 55,9% dos casos acidentários e 51,8% dos previdenciários.

Trabalhadores bancários

 A Caixa Econômica Federal apresenta um quadro ainda mais grave: entre 2023 e 2024, 74% dos afastamentos por acidente ou doença do trabalho (B91) decorreram de transtornos mentais e comportamentais, segundo estudo do Dieese para a Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae).

Esses indicadores não surgem por acaso, mas como consequência direta de um modelo de gestão adoecedor, que se apoia em cobrança excessiva de metas, ranqueamento exaustivo, vigilância tecnológica e remuneração atrelada à produtividade.

Essa engrenagem transforma o trabalho em fator ativo de destruição da saúde, violando frontalmente a Constituição Federal de 1988, que no art. 1º, inciso III, consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República; no art. 6º reconhece o trabalho e a saúde como direitos sociais inseparáveis; no art. 7º, inciso XXII, impõe a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de higiene e segurança; e no art. 225 garante o direito a um meio ambiente equilibrado, conceito que necessariamente se estende ao ambiente laboral. Soma-se a isso a Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, que exige que Estado e empregadores garantam ambientes de trabalho seguros e saudáveis, adaptados às capacidades físicas e mentais dos trabalhadores, prevenindo danos à saúde relacionados às condições laborais.

Outras categorias

Essa crise não se restringe aos bancos. O setor de telemarketing, por exemplo, ocupa lugar de destaque entre as categorias mais pressionadas e adoecidas do país.

Um levantamento realizado na Paraíba mostrou que, entre 2021 e 2022, a função de operador de telemarketing foi responsável por 17% dos afastamentos por transtornos mentais e comportamentais no estado, com 287 casos apenas em 2022.

Pesquisas acadêmicas confirmam que esses trabalhadores enfrentam a combinação perversa de falta de autonomia, metas rígidas, controle minucioso e pressão contínua — condições que potencializam estresse, ansiedade, depressão e esgotamento. Embora o Anexo II da NR-17, editado em 2007, tenha trazido avanços ergonômicos, como pausas e adequações físicas, pouco ou nada se avançou na prevenção dos riscos psicossociais que marcam essa atividade.

O cenário se repete e se agrava em outras frentes industriais. Entre os petroleiros, dados sindicais apontam que mais de 40% dos afastamentos médicos em refinarias e plataformas têm origem em quadros de ansiedade e estresse.

Na indústria petroquímica, levantamentos internos relatam picos de afastamento por depressão em setores de turnos rotativos e alta periculosidade.

No ramo de alimentos e bebidas, estudos setoriais registram índices superiores a 30% de licenças relacionadas a transtornos psíquicos, especialmente em linhas de produção com jornadas prolongadas e ritmo acelerado.

Esses números, ainda que não recebam a mesma divulgação midiática que o setor bancário, revelam que a pressão produtiva e o adoecimento mental atravessam o conjunto da classe trabalhadora.

O direito de recusa

A atualização da NR-1, em maio de 2025, incluiu de forma inédita o direito de recusa a atividades que representem risco à saúde, inclusive de natureza psicossocial. No entanto, sem implementação imediata e fiscalização efetiva pelo Ministério do Trabalho (MT) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), essa conquista corre o risco de permanecer letra morta. É preciso que a norma se traduza em prática cotidiana, respaldada por protocolos claros, registros transparentes e metas reais de redução de adoecimento, especialmente nos setores com maior incidência de transtornos mentais.

Nesse cenário, não é admissível que, em meio a um colapso mental coletivo, a Caixa Econômica Federal anuncie o fechamento de dezenas de agências físicas, substituindo-as por unidades digitais e promovendo reestruturações que, na prática, intensificam o sofrimento dos trabalhadores.

Segundo sindicatos, essa decisão, além de gerar insegurança, ignora a importância da agência física para a vida comunitária e para a estabilidade das relações de trabalho. Alterar condições de vida e trabalho por meio de transferências, remoções ou desligamentos sem avaliar previamente as consequências psicossociais é um erro grave, que só contribui para ampliar o adoecimento.

Diante desse quadro, é urgente que, nos próprios locais de trabalho, as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipa), delegados(as) sindicais e outras formas de representação interna se reúnam com a máxima urgência para diagnosticar, em campanhas ativas, todos os casos de sofrimento ou adoecimento mental.

Frear o avanço dessa tragédia sanitária

Essas iniciativas precisam ir além da mera contagem de ocorrências: devem ouvir os trabalhadores, identificar fatores de risco e criticar frontalmente concepções e práticas de gestão que mantêm as equipes sob pressão permanente, fragilizam o clima organizacional e criam condições propícias para afastamentos e colapsos psíquicos.

É nesse espaço de mobilização interna que a NR-1 pode deixar de ser um texto abstrato e se tornar instrumento real de proteção, capaz de frear o avanço dessa tragédia sanitária. Se não houver mudança radical, os números vão piorar.

A saúde mental no trabalho é um direito humano e fundamental, e sua preservação é dever do Estado, da sociedade e de cada empregador. É preciso que sindicatos, federações, confederações e centrais sindicais elejam a saúde mental como pauta prioritária de toda a classe trabalhadora, unindo categorias como bancários, operadores de telemarketing, petroleiros, trabalhadores da indústria petroquímica, do setor de alimentos e outras profissões marcadas por alta pressão e risco psicossocial.

É hora de sepultar o gerenciamento por terror de metas, de resgatar o trabalho como espaço de dignidade e não de adoecimento, e de mobilizar cada local de trabalho para mapear, denunciar e enfrentar as práticas que destroem vidas. A vida está em jogo, e agir é uma urgência histórica.

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Last Update: 25/08/2025