no Substack: Amanhã não existe ainda

O Brasil sob embargo

por Luis Felipe Miguel

Sem ter aberto qualquer janela de negociação efetiva com o governo brasileiro, Trump sacramentou ontem o prometido tarifaço, ainda que bastante atenuado por uma extensa lista de exceções. Para temperar o semi-recuo, determinou a aplicação da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes – que bloqueia os bens nos Estados Unidos e proíbe que instituições financeiras façam operações em dólares com pessoas que seriam culpadas de crimes contra os direitos humanos.

O Brasil se tornou o principal alvo da política tarifária trumpista. Ficou claro de que, ao contrário do que aconteceu com outros países, não houve uma ameaça com o objetivo de negociar em condição vantajosa, mas a deliberação, desde o começo, de aplicar sanções duras.

A razão desta diferença tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro. Não porque Trump tenha especial afeto pelo portador da tornozeleira eletrônica. Pelo contrário, em todas suas manifestações públicas transparece um inequívoco desprezado pelo aliado e admirador. Mas Trump vê que o Brasil está fazendo com Bolsonaro, após o 8 de janeiro de 2023, aquilo que os Estados Unidos deviam ter feito com ele após o 6 de janeiro de 2021. Investigando, processando, responsabilizando, punindo. É o que faz com que o lobby antinacional de Eduardo encontre receptividade em Washington.

A estratégia trumpista da ameaça, é necessário reconhecer, tem dado resultado a curto prazo. A economia dos Estados Unidos ainda vai sofrer o baque, mas o fato é que Trump tem arrancado muitas concessões daqueles a quem ameaçou. A União Europeia assinou um acordo péssimo, que é deplorado pela maioria dos países do bloco. Comprometeu-se a importar bilhões de dólares em energia e em armamentos dos EUA.

O caso das armas é significativo. Os Estados Unidos deixaram claro que não estão dispostos a cumprir seu compromisso com a defesa europeia, presente em tratados multilaterais, justamente no momento em que o temor da agressão russa está em seu zênite. A Europa, então, decide que precisa se rearmar – e o acordo de agora faz com que os estadunidenses sejam os beneficiários.

Quanto à energia, a maior parte dela virá na forma de gás de xisto, por sua vez extraído por meio de fraturamento hidráulico (fracking), uma técnica com impacto catastrófico sobre o meio ambiente, que é proibida em muitos países europeus. Em suma, uma derrota comercial, diplomática e ambiental – de um bloco econômico que, por seu peso, imaginava-se com maior capacidade de resistência.

Mas, ao Brasil, Trump não oferece sequer a oportunidade de ser derrotado.

Com o devido respeito aos valorosos profissionais do circo, a atitude do presidente estadunidense pode ser descrita como uma palhaçada. Não há nenhum – literalmente nenhum – fundamento para as medidas adotadas.

Vejamos o decreto sobre as tarifas. (Sim, embora parte da imprensa brasileira não saiba, “executive order” não se traduz por “ordem executiva”, mas por “decreto presidencial”.) Sem poder usar o déficit na balança comercial como justificativa, já que ele não existe, Trump o embasa na necessidade de proteger seu país de “políticas, práticas e ações recentes do governo brasileiro que constituem uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional, à política externa e à economia dos Estados Unidos”.

Parece uma declaração de guerra. Ou, no mínimo, o prenúncio de um embargo comercial, como o que os Estados Unidos impõem a Cuba faz décadas.

Mas a ilha caribenha era a ponta de lança do bloco soviético nas Américas, no auge da Guerra Fria, a um grito de distância da Flórida. O embargo sempre foi cruel, mas seguia uma lógica.

E o Brasil? Em que mundo o Brasil constitui uma ameaça, ainda mais “incomum e extraordinária”, à segurança estadunidense?

A retaliação contra Alexandre de Moraes é igualmente descabelada (sem qualquer trocadilho). Quem me conhece sabe que não me encontro entre os fãs incondicionais do ministro nomeado por Temer. Mas ser acusado de violador de direitos humanos, por Trump, que anda de braços dados com gente como Netanyahu e Bukele, é praticamente uma condecoração.

Fica claro que Trump está apenas aplicando medidas de força com o objetivo de intervir nos assuntos internos de outro país. Em um regime democrático, com instituições sadias, uma medida presidencial assim seria imediatamente sustada. Mas estamos falando dos Estados Unidos, com seu sistema político primitivo e desfuncional.

As sanções estão aí para ficar. Será necessário avaliar o cenário, com as muitas exceções abertas por Trump, para calibrar medidas de apoio aos setores da economia atingidos e eventuais retaliações.

Lula tem adotado um discurso irreprochável, de defesa da soberania nacional e da democracia. Sua entrevista ao New York Times foi firme sem cair em provocações, digna sem arrogância, em suma, perfeita. Um daqueles momentos em que dá orgulho do voto de 2022.

A questão agora é como será a reação efetiva, em medidas econômicas e diplomáticas.

Antes do anúncio de Trump, Geraldo Alckmin se reuniu lá nos Estados Unidos com representantes das big techs (Meta, Google, Amazon, Apple, Visa, Mastercard e Expedia, segundo noticiado). Elas são, tanto quanto Bolsonaro, um dos motivos da agressão de Trump. Na reunião, pediram benefícios fiscais para instalar data centers no Brasil e, claro, que sejam afrouxadas as regras de responsabilização pela desinformação. Este último é um ponto em que ceder será uma enorme derrota.

As operadoras de cartão, participantes do encontro, estão incomodadas sobretudo com a possibilidade de parcelamento via Pix. O governo Trump já atacou publicamente o nosso sistema de pagamento eletrônico, exatamente pelo impacto potencial nas operações com cartão. Estão em jogo não apenas lucros (com taxas, juros etc.), mas também informações. O cartão de crédito é, abaixo apenas do celular, um grande rastreador de pessoas e manancial de dados individualizados sobre a vida de cada um de nós.

Imagino que o Pix seja intocável – mexer nele seria uma capitulação completa. Mas é interessante observar a hipocrisia das empresas. Não podemos regular as big techs porque seria ser contra o avanço tecnológico, algo tanto inútil como lesivo ao progresso da humanidade. Só que deveríamos impedir que o Pix se aprimore, em nome de sabe-se lá quais valores…

Do ponto de vista mais estritamente político, o efeito inicial das medidas de Trump é desastroso para a direita. O clã Bolsonaro pode comemorar, mas está abrindo fraturas na sua base e, mais importante, entre seus aliados. Tiveram que jogar pesado para enquadrar (por enquanto) Nikolas Ferreira, que ainda assim, como tantos outros, prefere falar sobre Xandão e não sobre o tarifaço. Tarcísio de Freitas está calado, mostrando, uma vez, de que material invertebrado é feito. Eduardo Leite condenou os Estados Unidos.

Cabe ao governo e à esquerda saber explorar o sentimento de indignação que a intervenção externa em nossa vida nacional está gerando.

A médio prazo, o caminho mais óbvio para o Brasil, diante da impossibilidade que se desenha de reabertura de negociação com os Estados Unidos, é aprofundar sua dependência do capitalismo chinês. De fato, a China tem sido uma grande beneficiária da irracionalidade das políticas adotadas por Donald Trump. Só como exemplo, enquanto os Estados Unidos aplicam tarifas abusivas para “equilibrar” o suposto déficit no comércio com os países africanos, a China decidiu zerar as taxas para importação dos produtos do continente. É uma medida com baixo custo econômico, que a fortalece politicamente e que certamente, em prazo mais para curto do que para longo, vai beneficiá-la no acesso a matérias-primas e mercados.

Não falta, na esquerda brasileira, quem, por ingenuidade ou por interesse, manifeste entusiasmo com Pequim. Não é o meu caso. Sabemos que a China persegue seu sonho hegemônico com denodo. O fato de ser mais inteligente do que os Estados Unidos não é necessariamente uma boa notícia para quem negocia com ela. E seu modelo de regime autoritário é bem semelhante, na verdade, com aquilo que Donald Trump deseja para si mesmo.

O melhor seria que o Brasil conseguisse avançar na direção da diversificação de seus parceiros, seja no comércio, seja no investimento. Infelizmente, não é tão fácil trilhar este caminho.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).

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Last Update: 31/07/2025