O Brasil parou. O mundo foi ao espaço, por Celso P. de Melo

O Brasil parou. O mundo foi ao espaço

por Celso P. de Melo

Num país de dimensões continentais e justificadas ambições geopolíticas, é desconcertante constatar o quanto ficamos para trás na corrida espacial. O espaço não é apenas fronteira científica: é infraestrutura crítica para comunicações, defesa, monitoramento ambiental, agricultura e meteorologia. Ainda assim, o Brasil não consolidou uma indústria de satélites, não desenvolveu um lançador operacional e deixou subutilizada sua principal vantagem geográfica – a Base de Alcântara.

A distância que nos separa das nações líderes não é natural: é construída. Quatro décadas atrás, Brasil, Índia e China tinham capacidades espaciais mais próximas do que se percebe hoje. O Brasil dominava sondas suborbitais, mantinha cooperações relevantes e centros de excelência no INPE e no DCTA (Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial) – que reúne ITA, IAE e laboratórios comparáveis, em sua escala, aos do DLR (Alemanha) ou do VSSC (Índia). O Japão ainda não unificara suas instituições na futura JAXA; a China só ampliaria sua base industrial no fim dos anos 1980; e a Índia ainda enfrentava sanções e limitações industriais.

Hoje, essas três nações são potências espaciais. O Brasil, não. A Índia lançou sua primeira sonda lunar em 2008 e pousou próximo ao polo sul da Lua em 2023, além de operar um dos lançadores mais confiáveis e baratos do mundo, o PSLV. A China domina toda a cadeia espacial – de astronautas a uma estação espacial própria – e opera constelações integradas de satélites enquanto envia sondas a Marte. O Japão consolidou a JAXA, desenvolveu lançadores robustos, conduz missões interplanetárias e possui uma cadeia industrial de alta complexidade no setor. A Coreia do Sul, que nos anos 1980 mal tinha um programa espacial estruturado, criou a Korea Aerospace Research Institute (KARI) em 1989 e, após mais de três décadas de estratégia contínua de Estado, passou a operar o foguete nacional Nuri a partir de 2022.

Enquanto isso, o Brasil perdeu densidade institucional, quadros técnicos e continuidade política. Houve iniciativas importantes – como o programa CBERS com a China e a fabricação de satélites no INPE –, mas não formou uma indústria capaz de produzir regularmente diferentes classes de satélites. Cortes orçamentários e instabilidade corroeram a estrutura que poderia ter nos aproximado da Índia e do Japão. O DCTA sofre evasão de engenheiros e orçamento instável; o INPE teve seu papel reduzido a partir de meados da década de 2010; e a AEB jamais dispôs de autonomia suficiente para planejar a longo prazo.

Em síntese: faltaram Estado, projeto e continuidade. Desenvolver satélites exige formar e reter quadros altamente qualificados e garantir décadas de investimento, além de planejamento estável e uma política industrial consistente. O Brasil teve lampejos, não estratégias.

A incapacidade de construir um lançador nacional é ainda mais grave. O Veículo Lançador de Satélites (VLS), iniciado nos anos 1980 com o objetivo de garantir autonomia de acesso ao espaço, foi interrompido após o acidente de 2003 em Alcântara, que matou 21 profissionais altamente qualificados, encerrando mais de duas décadas de esforços sem resultar em um sistema operacional. A tentativa de reorientação com o VLM, veículo lançador destinado ao mercado de pequenos satélites, baseado no motor S50, avança de maneira lenta e incerta; a interrupção parcial da cooperação com a DLR e a falta de continuidade orçamentária tornaram o cronograma imprevisível. Enquanto isso, Índia, China, Japão e Coreia multiplicaram lançadores e missões, constelações de satélites e missões científicas.

Hoje é mais difícil firmar parcerias que envolvam compartilhamento de tecnologias críticas. O mercado de lançadores tornou-se altamente competitivo, e países tratam sistemas de navegação, propulsão e guiagem como ativos estratégicos sujeitos a rígidos controles de exportação. Entre 2003 e 2015, o Brasil tentou contornar essas barreiras por meio da parceria com a Ucrânia no programa Cyclone-4, que previa alguma transferência de conhecimento para operações em Alcântara, mas o projeto acabou inviabilizado pela falta de financiamento, pelo aumento de custos e pelas restrições impostas à indústria ucraniana pelos regimes internacionais de controle de exportações.

O projeto ainda ganhou impulso entre 2010 e 2013, mas a crise da Crimeia desestruturou a cadeia industrial ucraniana. Em 2015, o Brasil encerrou a Alcântara Cyclone Space após auditorias apontarem inviabilidade técnica e financeira. A Emenda Constitucional nº 95, aprovada em 2016, congelou por 20 anos o crescimento real dos gastos públicos e reduziu de forma significativa os recursos destinados à ciência e tecnologia. Somada ao impeachment, com a consequente reorientação do projeto estratégico para o país, essa inflexão desmontou a capacidade de investimento do Estado, paralisou concursos e projetos e deixou INPE, DCTA e AEB operando com capacidade limitada. O resultado foi a perda estrutural de orçamento, quadros técnicos e capacidade institucional, exatamente quando o resto do mundo acelerava.

Alcântara, nossa maior vantagem comparativa, segue subaproveitada. A posição próxima ao Equador oferece ganhos energéticos, mas décadas de subinvestimento e a falta de uma solução justa para as comunidades quilombolas criaram um passivo político nunca enfrentado adequadamente. Em vez de modernizá-la com controle nacional, optou-se em 2019 pelo Acordo de Salvaguardas com os EUA, que nos impõe restrições ao uso de tecnologias de terceiros e reduz nossa autonomia. Esse acordo cria barreiras práticas significativas pela via das restrições de reexportação e de acesso a componentes sensíveis, trazendo o risco de transformar um ativo estratégico em dependência permanente.

Para reverter o atraso, é preciso tratar o programa espacial como política de Estado, com plano decenal estável, imune às mudanças de governo. O Brasil deve reconstruir sua capacidade industrial em satélites por meio de compras públicas, parcerias tecnológicas equilibradas, estímulo a startups e recuperação do INPE. E precisa decidir de forma inequívoca que terá um lançador nacional – seja o VLM aperfeiçoado, seja um novo projeto cooperativo. Sem isso, continuaremos dependentes de terceiros para colocar qualquer carga útil em órbita.

É igualmente urgente recuperar o controle estratégico de Alcântara, modernizando a base com respeito às comunidades locais e assegurando soberania. E reconstruir nossa base humana: sem engenheiros e especialistas em propulsão, eletrônica, dinâmica orbital e materiais avançados, nenhum programa espacial sobrevive.

Constelações próprias de satélites permitiriam monitorar desmatamento, queimadas, fronteiras e zonas costeiras em tempo quase real; garantir comunicações seguras e livres de interferências externas para aplicações civis e militares e proteger o sigilo e autonomia das operações de defesa, reduzindo a dependência de serviços estrangeiros e ampliando a margem de soberania tecnológica do país.

Quarenta anos atrás, Brasil, Índia, China e Japão estavam mais próximos do que se imagina. Três avançaram – e muito. O mundo foi ao espaço. O Brasil parou.

Celso Pinto de Melo é doutor em Física pela University of California, Santa Barbara, Professor Titular aposentado da UFPE e Pesquisador 1-A do CNPq. Foi Presidente da Sociedade Brasileira de Física (2009–2013), Diretor Científico do CNPq (1999–2002), Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPE (2003–2006) e Vice-Presidente da SBPC (2005–2007). É Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Pernambucana de Ciências. Recebeu da Presidência da República a Comenda (2002) e a Grã-Cruz (2009) da Ordem Nacional do Mérito Científico, bem como a Comenda da Ordem de Rio Branco (2007).

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