O Brasil está em guerra. Não é uma guerra contra o crime organizado, contra a pobreza ou contra a inflação. É uma guerra declarada contra as mulheres. Um extermínio sistemático, diário, brutal – e, o mais revoltante de tudo – completamente naturalizado. O número de feminicídios e assassinatos de mulheres em Pernambuco entre os dias 12 e 13 de abril, são um retrato do horror: 7 mulheres assassinadas num único final de semana! Isso não é violência. É carnificina.

Os casos se multiplicam com uma brutalidade que deveria paralisar o país. Em Santana (BA), Iane, de 26 anos, foi morta dentro de casa a golpes de blocos de cerâmica. Em Ribeirão das Neves (MG), Ana Paula (37) levou vinte facadas do companheiro, chegou a ser socorrida mas não resistiu. Ana Thais (36) foi executada com um tiro na cabeça em São Paulo, o filho autista de 7 anos, testemunhou o crime cometido pelo pai. Já Delvania (50) morreu depois de permanecer internada por mais de 20 dias no Hospital Geral de Palmas, ferida a faca na cabeça e na nuca pelo namorado, na zona rural de Caseara (TO). Ainda teve tempo de pedir ajuda num grupo de WhatsApp, do qual faziam parte diversas pessoas da cidade, mas o socorro não veio.

A barbárie não poupa nem mesmo as crianças. Em São Gabriel (RS), um homem lançou o filho de 5 anos de uma ponte para se vingar da ex-mulher. Em Itamarandiba (MG), outra criança, de 9 anos, foi assassinada com um tiro na cabeça pelo próprio pai, que queria se vingar da ex-companheira. Em Londrina (PR), a vítima foi uma menina de 3 anos, o pai assassino ainda justificou o crime com ironia: “Foi necessário”, disse. A perda dos filhos tornou-se um castigo ainda pior que a morte para essas mulheres. 

Esses não são casos isolados – são elos de uma corrente de violência que se alastra por todo o território nacional, alimentada pela omissão estatal e pela cultura machista que permeia todas as esferas da sociedade. O Estado não está falhando em proteger suas mulheres – está compactuando ativamente com seu extermínio.

Justiça falha

Para cada feminicídio consumado, dezenas de casos de violência são sistematicamente negligenciados. Segundo o Instituto Sou da Paz, 3 em cada 10 mulheres vítimas de ataques por armas de fogo em 2023 tinham registro de agressão anterior. No caso de Eloisa (36), de Campo Grande, foram 5 registros policiais antes de ser assassinada, no ano passado. Vanessa (42), conterrânea de Eloisa, acumulava 11 boletins de ocorrência contra o ex-namorado assassino. Em alguns casos o algoz é quem supostamente deveria proteger. Em Jaboatão dos Guararapes (PE), Amanda (34) foi morta com um tiro pelo companheiro, policial militar.  Em Magé (RJ), a vítima Jaqueline (45) foi assassinada pelo ex-companheiro, também PM, que não aceitou o fim do relacionamento. 

O sistema judiciário brasileiro transformou medidas protetivas em piada macabra. Janete (48), assassinada em Sorocaba (SP) , não só tinha medida protetiva, como botão de pânico. Não adiantou. Em Rondonópolis (MT), Yasmin (27), ao perceber a invasão de sua casa, se trancou no quarto e acionou o botão do pânico pelo aplicativo SOS Mulher MT, ainda assim foi morta a facadas pelo ex-namorado contra quem tinha uma medida protetiva.

Ocorre que essas medidas, para serem realmente efetivas, necessitam de uma estrutura de segurança pública e um sistema de proteção às vítimas robustos, muito diferente da realidade brasileira, onde delegacias especializadas definham por falta de recursos, mulheres em risco sofrem com a falta de casas abrigo e profissionais do sistema de justiça, como juízes, promotores e policiais, nem sempre possuem a formação adequada para lidar com os casos de violência contra a mulher.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 60% das DEAMs (delegacias da mulher) não têm viaturas exclusivas, 45% funcionam com menos de 5 investigadores, 30% não tem sequer um computador para registrar um boletim de ocorrência. Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública admite que 40% das DEAMs do interior não têm delegados titulares. 

Outro relatório, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aponta que existem pouco mais de 200 juizados e varas especializadas da mulher, isto é, uma vara/juizado para cada 540 mil mulheres. A diretriz do CNJ e da Lei Maria da Penha (LPM) é de uma vara para cada 100 mil mulheres, ou seja, 5 vezes mais do que existe atualmente. A região Sudeste, que concentra 45% do total de varas/juizados especializados, tem cerca de 1 para cada 400 mil mulheres, na outra ponta, Estados como Maranhão, Amazonas e Alagoas, estão numa situação bem pior, com 1 unidade para até 3,6 milhões de mulheres.

Indústria do ódio 

As redes sociais se transformaram em verdadeiras escolas para assassinos em potencial. No Telegram, grupos fechados ensinam técnicas para “disciplinar mulheres desobedientes”. No YouTube, canais pseudocientíficos disseminam teorias que justificam a violência doméstica como “reação natural à insubordinação feminina”. O algoritmo dessas plataformas impulsiona conscientemente conteúdos misóginos, pois geram engajamento e, consequentemente, lucro.

O caso de Camila, 26 anos, morta em Recife, expõe essa conexão perversa. Seu assassino, um jovem de 23 anos, mantinha histórico de participação em fóruns online que pregavam o ódio às mulheres. Nas redes sociais, compartilhava memes que romantizavam a violência doméstica. A família da vítima encontrou em seu celular prints de conversas em que ele afirmava que “mulheres como ela mereciam um corretivo”. Nenhuma plataforma tomou providências quando esses conteúdos foram denunciados.

A indústria de games também faz sua parte na normalização da violência. Jogos que simulam estupros e assassinatos de mulheres são vendidos livremente em plataformas digitais. Em São Paulo, o caso de Fernanda, 17 anos, chocou o país quando se descobriu que seu assassino havia passado 72 horas jogando um “simulador de feminicídio” antes de cometer o crime. As empresas responsáveis continuam lucrando com esses produtos, protegidas por um vazio legal que trata ódio como entretenimento.

As vítimas que o Brasil apagou

Para cada caso que ganha as manchetes, dezenas são apagados da memória coletiva. Em Cuiabá, Isabela, 28 anos, foi espancada até a morte pelo marido. Como era usuária de crack, o caso foi registrado como “morte por overdose”. Em Vitória, Joana, 32 anos, foi assassinada a facadas pelo ex-companheiro. Por ser prostituta, o inquérito classificou o crime como “briga entre marginais”.

A seletividade do sistema judiciário e da mídia brasileira salta aos olhos quando se comparam as diferentes vítimas. Enquanto mortes de mulheres brancas de classe média mobilizam operações policiais, os corpos de mulheres negras e pobres são tratados como dano colateral. Nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, mulheres são assassinadas rotineiramente sem ganhar sequer uma linha nos jornais.

O racismo institucional se manifesta também nos protocolos policiais. Segundo um estudo coordenado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), termos como “traficante” ou “mãe de bandido” aparecem em 70% dos boletins de ocorrência de vítimas negras, mesmo sem antecedentes criminais. No caso de Antônia, 37 anos, morta em Salvador, os investigadores insistiram que ela “provavelmente estava envolvida com o tráfico”, apesar de não haver qualquer evidência. Seu verdadeiro “crime”? Ser preta, pobre e moradora de favela. Enquanto isso, o assassinato de uma estudante de medicina em Porto Alegre mobilizou toda a máquina estatal, provando que, no Brasil, algumas vidas valem mais que outras.

O Congresso e a farsa do combate à violência

Enquanto mulheres são massacradas diariamente, o Congresso Nacional se dedica a debates inócuos sobre aumento de penas – medida comprovadamente ineficaz na prevenção de crimes. Nos últimos cinco anos, mais de 30 projetos de lei que poderiam fortalecer a rede de proteção às mulheres foram engavetados. Ao mesmo tempo, a verba destinada à implementação da LPM sofreu reduções sucessivas, chegando em 2025 com apenas 38% do valor destinado em 2020. 

Os R$ 40,1 milhões previsto em 2025 (menor patamar desde 2016), não cobre nem 10% das necessidades mapeadas pelo CNJ. As consequências vão desde o sucateamento de serviços – 23% das Casas da Mulher Brasileira perderam financiamento entre 2020 e 2025 – a inquéritos parados – a média para análise de processos de violência doméstica segundo o CNJ é de 1,5 ano.

A única justificativa para obsessão de parlamentares por medidas punitivistas é seu viés totalmente eleitoreiro, não adianta decretar penas mais duras se as mulheres sequer conseguem acesso à justiça básica: muitas são revitimizadas ao tentar registrar um boletim de ocorrência, enfrentam descrença institucionalizada e precisam superar inúmeras barreiras para ter seus direitos reconhecidos. Não por acaso, 92% dos agressores nunca enfrentam consequências por seus atos – estatística que explica a escalada de brutalidade. Quando um homem sabe que pode agredir, ameaçar e até matar impunemente, o passo final se torna questão de tempo.

Mas a hipocrisia legislativa atinge seu ápice quando se compara, no mesmo período, o número de projetos de lei apresentados que buscam restringir ou criminalizar o aborto: 120. Enquanto o Congresso se mobiliza freneticamente para “proteger” embriões e fetos, ignora a vida das mulheres, negando políticas públicas que garantam sua saúde, segurança e autonomia — prova de que, para eles, o controle sobre os corpos femininos vale mais do que a vida que dizem defender.

A omissão criminosa do governo Lula

O Governo Federal, que deveria ser o principal responsável por coordenar políticas nacionais de enfrentamento à violência contra as mulheres, transformou-se em mais um agente da barbárie. Os sucessivos cortes orçamentários no Ministério das Mulheres deixam nítido que, para este governo, a vida das brasileiras não é prioridade. Em 2025, o orçamento destinado à proteção de mulheres em situação de violência foi reduzido em mais de 40% em relação ao ano anterior, inviabilizando a manutenção de serviços essenciais, como casas-abrigo, delegacias especializadas e centros de atendimento psicossocial.

Enquanto discursos vazios sobre “segurança pública” ecoam em Brasília, a realidade nas ruas é de total abandono. O programa “Mulher, Viver sem Violência”, criado justamente para integrar ações de proteção, teve seus recursos praticamente zerados. O resultado é a falência de redes de apoio que deveriam servir para salvar vidas. 

A situação é ainda mais grave quando se analisa a execução orçamentária. Dos poucos recursos que restaram, menos de 30% foram efetivamente utilizados, demonstrando que o problema não é apenas a falta de dinheiro, mas a absoluta falta de vontade política. Enquanto isso, o governo, que não consegue garantir o básico: que uma mulher agredida tenha onde dormir ou que uma criança órfã de feminicídio receba assistência, libera bilhões para emendas parlamentares em troca do apoio para aprovar medidas como o arcabouço fiscal, que precariza ainda mais a condição de vida da classe trabalhadora e corta verbas de políticas de proteção à mulher. Essa não é apenas incompetência administrativa – é uma escolha política que custa nossas vidas todos os dias.

A farsa das campanhas publicitárias 

Para maquiar a inoperância, o Governo Federal lança campanhas publicitárias vazias, com slogans bonitos e imagens emocionantes, mas sem qualquer efeito concreto na vida das mulheres. Enquanto milhões são gastos em spots emocionais e frases de efeito, a realidade nas ruas, delegacias e tribunais mostra o completo descompasso entre o discurso oficial e a prática: abrigos superlotados ou fechados, medidas protetivas que não são cumpridas, e um sistema judiciário que ainda trata a violência doméstica como questão menor.

Nunca é demais lembrar que em 2014, o governo Dilma, cedendo à pressão de grupos religiosos e da bancada da intolerância, retirou a perspectiva de gênero do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024. Não foi um “ajuste técnico” ou “consenso”, foi uma capitulação vergonhosa diante de grupos que enxergam a igualdade de gênero como ameaça. Enquanto os movimentos sociais e educadores lutavam para que escolas discutissem temas como o respeito à diversidade, igualdade de gênero e prevenção à violência machista, o governo federal compactuava com setores conservadores, traindo as mulheres e a própria educação pública brasileira. 

O resultado está aí: uma geração inteira formada sem instrumentos para questionar a cultura do estupro, a LGBTIfobia e a violência doméstica.

A única resposta possível

Não há mais espaço para discursos piedosos ou promessas vazias. O que as mulheres brasileiras precisam é de ação imediata. É inaceitável que, em pleno 2025, ainda tenhamos que implorar por políticas básicas de sobrevivência. Enquanto setores governistas como a Marcha Mundial de Mulheres, Frente Povo Sem Medo e Frente Brasil Popular produzem manifestos intermináveis, denunciando o avanço da extrema direita e sua ofensiva contra as mulheres, mas omitindo deliberadamente a conivência do governo federal com as mesmas políticas que aprofundam nossa opressão, Lula negocia com o Centrão – e sua ala mais reacionária do Congresso – e aplica medidas de ajuste fiscal que estrangulam os serviços públicos, atingindo em cheio as mulheres pobres e periféricas, que dependem dessas políticas para sobreviver.

Enquanto Manuela D’avila e ala majoritária do PSOL, da qual faz parte a Resistência Feminista, promovem “festivais” e movimentos institucionais como o MEL, celebrando a “frente ampla” com setores da burguesia – supostamente para “barrar o fascismo” nas próximas eleições, o governo corta verbas da saúde, da educação e dos programas de enfrentamento à violência doméstica, assegurando os privilégios de uma elite política e econômica que lucra com nossa miséria. A “frente ampla” não passa de um teatro para canalizar o descontentamento popular para as urnas, ao mesmo tempo que nossas vidas seguem sendo sacrificadas.

A realidade é que o governo continua fazendo acordos com esses mesmos setores que esses movimentos e correntes dizem combater. As pautas urgentes das mulheres trabalhadoras são tratadas como moeda de troca, as medidas de ajuste vulnerabilizam ainda mais as vítimas de violência e o feminicídio se consolida como uma epidemia sem controle.

É hora de romper com o feminismo de gabinete e as lideranças sociais domesticadas. Se o Estado não garante nossa sobrevivência, as mulheres trabalhadoras devem tomar seu lugar, ocupando as ruas, organizando greves, criando redes de solidariedade que pressionem por mudanças reais. Não podemos esperar até 2026 enquanto o governo assina acordos com nossos algozes.

Chega de velas acesas e discursos de pesar. Chega de governos que cortam direitos enquanto enchem os bolsos de aliados. Chega de feminismo de fachada e um sistema que não se importa com as nossas vidas. O sangue dessas mulheres deve servir de combustível para que nossa revolta se transforme em ação. A hora de agir é agora – antes que mais nomes se somem à lista infindável de vítimas. Se não nos ouvem, que nos temam. Nenhuma mulher a menos! Nenhum direito a menos!

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Last Update: 17/04/2025