O contraste é marcante. Em maio de 2016, o Palácio dos Festivais em Cannes serviu de palco para o protesto silencioso de Kleber Mendonça Filho e equipe de Aquarius. No tapete vermelho, eles empunharam cartazes que denunciavam o “golpe de Estado” que levou ao afastamento da presidente Dilma Rousseff e resultaria no seu impeachment.

No domingo 18, a chegada da equipe de O Agente Secreto, novo filme de Kleber na disputa pela Palma de Ouro, foi acompanhada por uma animada apresentação do grupo de frevo pernambucano Guerreiros do Passo, com direito à presença da Ministra da Cultura, Margareth Menezes.

“Isso não significa que o mundo está lindo”, disse o cineasta, em conversa com CartaCapital, logo após a sessão em que o filme foi bastante ovacionado. “A gente tem muito trabalho a fazer, inclusive no Brasil. Mas hoje, no nosso país, temos uma situação estabelecida de democracia.”

O Agente Secreto se passa no período da ditadura, no Carnaval de 1977, em Pernambuco. Wagner Moura interpreta Armando, que se esconde sob o codinome Marcelo, um professor e pesquisador universitário que retorna ao Recife em busca de documentos oficiais de sua mãe, e descobre que está jurado de morte por um empresário do setor energético com fortes ligações com o governo.

A cena inicial mostra Armando abastecendo seu Fusquinha amarelo em um posto de beira de estrada, onde jaz um cadáver coberto com folhas de jornal. A patrulha da Polícia Rodoviária que chega em seguida está interessada apenas em arrumar um pretexto para arrancar algum dinheiro do motorista. Mas os policiais acabam por se contentar com alguns cigarros e partem, abandonando o corpo putrefato.

O filme cumpre o papel de ser um reforço importante na preservação da memória de um período tenebroso da história brasileira que parte da população ainda desconhece ou se recusa a conhecer. Kleber reforça aspectos característicos da brasilidade – a corrupção, o abuso de autoridade, a banalização da violência, os privilégios de classe – que permanecem vivos nas relações entre o Poder Público e o cidadão.

O diretor define ‘O Agente Secreto’ como um irmão desconhecido de ‘Ainda Estou Aqui’

Ao longo da narrativa, o diretor estabelece diversas pontes entre o Brasil do período ditatorial e o de hoje. Vemos policiais desovando cadáveres em um rio enquanto uma mulher rica tem uma série de regalias ao prestar depoimento na delegacia sobre a morte do filho da empregada, que estava sob os cuidados dela quando foi atropelado. A alusão é clara: a trágica morte do menino Miguel após a queda do nono andar em um prédio de luxo no Recife, em 2020. A ré, patroa da mãe da criança e casada com político influente, responde ao processo em liberdade.

Recife tem uma importância fundamental na obra de Kleber Mendonça Filho desde seus primeiros curtas-metragens, nos anos 1990, e neste novo trabalho é povoada por tubarões, metafóricos ou reais, que, a todo instante, pontuam a narrativa. “A cidade lida com um problema real de ameaça de tubarões, não é uma questão de pesadelo por ter visto o filme Tubarão”, diz o diretor. “Acho curioso juntar com a lenda urbana, que é uma lenda, mas vem de medos reais. Essa união entre a luz e a sombra acho fascinante.”

Outro aspecto caro a Kleber – que jamais renega o seu passado de crítico de cinema – presente em O Agente Secreto são as referências cinematográficas que surgem na tela. A tradição oral, pela reprodução da lenda urbana da Perna Cabeluda, explorada pelos jornais sensacionalistas da época, abre uma brecha para o flerte com o cinema fantástico, algo que sempre povoou sua obra.

Soma-se a isso a importância dada à memória dos cinemas de rua, que foi tema de seu documentário Retratos ­Fantasmas (2023). O tradicional cinema São Luiz, no centro do Recife, tem mais do que o ­status de locação onde são exibidos os longas-metragens Tubarão e A Profecia: ele é praticamente um personagem.

“O cinema é um elemento de época muito forte, e, desde criança, eu o associo a um marcador de tempo de fatos da minha vida”, diz o diretor. “O cinema é quase como uma direção de arte afetiva, até porque a sala de exibição fotografa muito bem.”

O filme marca o retorno do cineasta à competição principal de Cannes – oito anos depois de vencer o Prêmio do Júri com Bacurau (2019) – e, embora também flerte com o cinema de gênero, em cenas dignas dos melhores thrillers de alta tensão, tem uma atmosfera menos catártica e explosiva.

Não só pelo prestígio de que Kleber desfruta em Cannes, mas pelo parentesco temático com Ainda Estou Aqui, de Walter Salles – ambos se passam na ditadura e trazem personagens perseguidos direta ou indiretamente pelo regime –, há uma expectativa natural de que O Agente Secreto repita o sucesso e a repercussão do recente vencedor do Oscar de Filme Internacional.

“Eu falei pro Walter quando vi o filme dele em Veneza: ‘Estou trabalhando num filme que é um irmão desconhecido do seu. Nunca se falaram e são bem diferentes, mas são irmãos, e eu acho isso bonito”, conta Kleber. “A trilha aberta por Ainda Estou Aqui trouxe uma energia renovada muito forte para o cinema brasileiro, e é a primeira vez que isso acontece no pós-pandemia.”

A julgar pela repercussão entre o público e a crítica internacional após a primeira sessão em Cannes, esse parentesco pode ainda ganhar outros laços. •

Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Brasil em Cannes’

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Last Update: 22/05/2025