O pós-guerra nuclear no Brasil II
Parte 2: Salvar o Dólar – ou morrer junto com ele
por Ruben Bauer Naveira
Diante do trágico momento histórico a que chegamos, este artigo propõe pensarmos o impensável – como haverão de ser as nossas vidas em um pós-guerra nuclear –, e ele é composto por cinco partes, a serem publicadas em cinco semanas consecutivas, às sextas-feiras:
– A primeira parte, “Não existe nenhuma ‘realidade’ única aos homens”, consiste em uma preliminar e necessária digressão a respeito da natureza intrínseca aos seres vivos, às pessoas e às sociedades, para fundamentação das demais partes;
– A segunda parte, “Salvar o Dólar – ou morrer junto com ele”, discorre sobre o porquê de uma guerra nuclear no mundo ter-se tornado hoje bastante provável;
– A terceira parte, “A morte não é só pelas bombas”, aborda as consequências diretas de uma guerra nuclear;
– A quarta parte, “Um retrocesso que poderá ser de séculos ou de milênios”, trata das consequências indiretas e a longo prazo; e
– Finalmente, a quinta parte, “Ou juntos, ou nada”, discorre sobre o que seria possível tentarmos fazer para lidar com essas consequências.
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01 de julho de 1946 e 29 de agosto de 1949 não são datas inscritas nos livros de História; não obstante, elas delimitam distintas eras da mentalidade da humanidade quanto às armas nucleares.
Anteriormente a 01 de julho de 1946 a população mundial desconhecia por completo tais armas. Desde a rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial a 02 de setembro de 1945 já se sabia que os Estados Unidos dispunham de uma nova e formidável arma que havia impelido os japoneses à capitulação, porém nada se conhecia sobre a mesma, sobre a qual pairava segredo militar absoluto. Até que, no verão de 1946, os militares americanos convidaram a imprensa mundial para lhes apresentar a bomba atômica no atol de Bikini no oceano Pacífico, o que teve imensa repercussão em todo o mundo, tanto que o revolucionário (uma “bomba”, para os costumes vigentes) maiô de duas peças lançado à época carrega até hoje o nome do infeliz atol.[1] A partir daquele primeiro de julho, a população mundial passou a conhecer que os americanos dispunham de uma superarma, que os tornava invencíveis perante o resto do mundo.
Aquela supremacia perduraria por apenas três anos. A 29 de agosto de 1949 a União Soviética testava com sucesso o seu primeiro artefato nuclear, desencadeando fúria e caça às bruxas nos Estados Unidos que – juntamente com o resto do mundo – passavam a se ver diante da perspectiva de uma guerra nuclear, perspectiva tão aterradora que acabou por levar a um contexto de dissuasão mútua: sabedores de que o adversário detinha poderes para uma aniquilação total de seu país, tanto americanos quanto soviéticos chegaram à consciência de que uma guerra nuclear não teria vencedores, e passaram a considerar o próprio arsenal nuclear tão somente como salvaguarda quanto a que o adversário jamais poderia vir a empregar o dele. Partilhando dessa compreensão, o resto do mundo passou a tomar por inadmissível a possibilidade de uma guerra nuclear, e todos passaram a dormir tranquilos desde então.
E a dormir tranquilos continuam, por mais que a fogueira geopolítica crepite a cada dia mais alto. Afinal, ninguém seria estúpido a ponto de começar uma guerra nuclear em que todos morreriam – inclusive aqueles que a desencadearam. Este texto visa, porém, mostrar que aquelas condições históricas mudaram, e que a guerra nuclear é agora não apenas possível como provável. Por se fiar na dissuasão mútua, porém, a quase totalidade das pessoas entrará em choque profundo se e quando a guerra nuclear vier – e sem nenhum aviso prévio.
Parêntesis: ainda que o significado de “provável” seja claro, cumpre ressaltar: eu NÃO estou afirmando que a guerra nuclear ocorrerá. O que estou é postulando que há mais chances de ela ocorrer do que de não ocorrer. Em que bases? Com base na minha leitura pessoal dos acontecimentos. Fecha parêntesis.
A dissuasão mútua requer, mais que tudo, que os decisores sejam racionais: dirigentes que não “apertarão o botão” sob nenhuma circunstância uma vez que sabem, racionalmente, que também morrerão – e com eles a população do seu país. Porém o que vem passando despercebido é termos entrado em uma era em que os decisores aparentam ter-se tornado irracionais, especialmente no assim chamado Ocidente. Vamos a três exemplos contemporâneos:
– A Alemanha passou as últimas décadas estruturando a segurança energética do país com base no gás natural da Rússia, farto e barato, bem como limpo relativamente às antigas usinas a carvão e nucleares, que foram desativadas. Porém, assim que os Estados Unidos convocaram os seus aliados europeus a se unirem contra a Rússia isso foi sumariamente descartado (foram inclusive reativados a energia nuclear e o carvão), com o país se desindustrializando e a população empobrecendo frente à elevação abrupta dos preços da energia. O símbolo maior deste processo autodestrutivo foi a omissão do governo em Berlim frente à destruição terrorista dos gasodutos NordStream, a qual representou uma morte energética para a Alemanha;
– Israel, a pretexto dos atentados de 07 de outubro pelo Hamas embarcou em uma campanha de genocídio aberto do povo palestino, bem como em uma escalada de provocações ao Irã para atraí-lo para uma guerra em larga escala, e mantém teimosamente esse curso mesmo diante da sua ruína moral e do isolamento mundial decorrente, e mesmo já tendo ficado claro que não apenas não se conseguirá exterminar os palestinos como que o estado palestino acabará por ser finalmente criado,[2] com o que o atual governo israelense fez aumentar em muito os riscos futuros para a continuidade da existência do estado de Israel;
– Os Estados Unidos embarcaram em uma campanha maciça contra a Rússia na Ucrânia (sanções econômicas que prejudicam a própria economia do Ocidente, ajuda militar de bilhões de dólares a fundo perdido, explosão dos gasodutos NordStream) com o objetivo declarado de impor uma “derrota estratégica” à Rússia, a partir da qual esta se enfraqueceria e novos movimentos de desestabilização poderiam vir a derrubar o governo Putin levando a subjugar a Rússia. Porém, já desde junho de 2020 (dois anos antes da invasão da Ucrânia) a doutrina nuclear russa passou a estabelecer explicitamente que armas nucleares deverão ser usadas pelo Kremlin não somente como retaliação a um ataque nuclear, mas também em caso de “ameaça existencial” à Rússia – ora, e o que seria a imposição de uma “derrota estratégica” à Rússia senão uma ameaça existencial ao país? Estariam os Estados Unidos contando que, em caso de vitória da Ucrânia (leia-se OTAN) na guerra, os russos abririam mão passiva e resignadamente de uma resposta nuclear, a qual explicitamente haviam declarado que adotariam? De todo modo, aquela estratégia americana não terá como vingar porque a Ucrânia não terá como vencer a Rússia militarmente, mas ter sido ela formulada e proposta não foi nada prudente.
Muito já se escreveu sobre o processo histórico de degeneração política das sociedades ocidentais, com o individualismo exacerbado isolando as pessoas e minando qualquer possibilidade de ação coletiva consequente. Solidariedade requer empatia, a capacidade de afligir-se com o sofrimento do outro. Diante do genocídio em Gaza promovido por Israel ou da matança na Baixada Santista pela PM paulista há os que se regozijam, fascistas assumidos que são, mas há muitíssimo mais os que da boca para fora criticam porque é o socialmente bem-visto, sem perder o sono contudo. Cabe apontar que, por mais intensas que sejam as pressões sociais e culturais de amoldamento ao individualismo, a renúncia a identificar-se com os outros não deixa nunca de ser uma escolha.
Era de se esperar que tamanha degradação social resultasse em um entorpecimento (indiferença, mais que tolerância) das sociedades quanto ao processo de ascensão dos seus dirigentes e quanto às ações dos mesmos uma vez no poder (a menos quando estas afetam diretamente o indivíduo). O reverso dessa moeda é que, igualmente, vem avançando um processo de “nivelamento por baixo” dos próprios dirigentes. A comparação entre o decrépito Biden ou o narcisista Trump (ou Clinton, ou Obama, ou Bush Jr.) com um Carter, um Kennedy ou um Eisenhower, ou entre o garoto-de-recados dos Rothschilds Macron (ou a nulidade Hollande) e um Miterrand, um de Gaulle ou um Chirac é francamente desigual, e isso não em termos ideológicos (no fundo, são todos farinha do mesmo saco) mas em termos de envergadura, de preparo para as responsabilidades do cargo (statesmanship). A crescente inaptidão para se ater à racionalidade naquilo que é estratégico a longo prazo, em prol das conveniências naquilo que é circunstancial a curto prazo (e que em termos estratégicos a longo prazo se mostrará irracional) é sintomática. Não foi à toa que os últimos governos americanos rifaram todos os acordos de contenção armamentista estabelecidos ao longo de décadas com a então União Soviética (inclusive o de não-expansão da OTAN para leste, estopim para a guerra da Ucrânia), depauperando a segurança global.
Mas essa precarização da racionalidade não nos é suficiente para prever o evento futuro da guerra nuclear. Para podermos melhor compreendê-la, foi apresentada na primeira parte deste texto a teoria da autopoiesis dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, a qual também nos possibilita compreender um outro elemento ainda mais crítico: o papel da identidade própria a cada sociedade (cada país) na determinação das suas ações.
Dizemos que o comportamento de decisores governamentais estaria se tornando “irracional”. No fundo, não está. De acordo com a teoria da autopoiesis, “irracional” expressa o nosso julgamento como observadores externos, baseado na nossa identidade, a respeito do comportamento deles:
– As elites da Alemanha discernem que aquilo que está em jogo, em última análise, é a manutenção do status quo da ordem mundial unipolar na qual impera o turbocapitalismo financeiro e da qual essas elites dependem a todo custo, acima mesmo dos riscos dos aumentos no preço da energia para a indústria alemã;
– Israel é, amplamente (ainda que haja alguma dissidência interna), movido pelo projeto sionista de fundo bíblico de expansão territorial rumo ao “grande Israel”, o conjunto das terras ocupadas pelos povos judeus ancestrais, e essa identidade bloqueia qualquer posição em contrário;
– A identidade americana é fundada na hegemonia sobre o planeta e na acumulação de riqueza dela decorrente; assim, não há limite para as ações em defesa dessa hegemonia – inclusive confrontar militarmente a superpotência nuclear que é a Rússia.
Autopoieticamente falando, noções como “pátria”, “riqueza nacional”, “mundo”, “ordem mundial” ou “guerra” não são de modo algum absolutas ou universais; elas são necessariamente referenciadas com base na identidade própria a cada sociedade, cada país.
Tomemos “estupidez” por sinônimo de “irracionalidade”: Albert Einstein disse que “duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana; no que diz respeito ao universo, eu não tenho certeza absoluta”. Nenhum indivíduo verá o seu próprio comportamento como estúpido (ou como irracional), mas aqui o observador externo (Einstein) referiu-se à espécie humana como um todo, como forma de expressar que os seres humanos possuem a tendência a se aferrar às suas identidades (em vez de se predispor a atualizá-las) mesmo quando elas passam a estar claramente em descompasso com as circunstâncias do ambiente, colocando a própria sobrevivência em risco.
Da mesma forma como foi mencionado acima que a Rússia irá à guerra nuclear em caso de eventual ameaça existencial ao país, o mesmo se dá com os Estados Unidos. A diferença é que os Estados Unidos estarão (se é que já não estão) sob ameaça existencial direta.
Quem detém o poder de fato nos Estados Unidos? Meia dúzia de famílias (melhor dizendo, dinastias familiares, geração após geração) que, por meio de participações acionárias cruzadas, detêm o controle de praticamente todas as grandes corporações nos EUA, e que constituem a plutocracia que efetivamente “puxa as cordinhas”. Na outra ponta das cordinhas estão os agentes dessa plutocracia, na Casa Branca e seus Departamentos, no Congresso em ambos os partidos, no Pentágono e no complexo industrial-militar, nas corporações de mídia, nas agências de inteligência, nas universidades e think tanks. A essa teia complexa dá-se o nome de deep state (Estado profundo), ou seja, um governo (o governo de fato, mesmo que não eleito por ninguém, e pior, agindo nas sombras) que governa por dentro do governo (o governo de direito, oficial, formal).
Qual é a identidade histórica (geração após geração…) dessa plutocracia? A acumulação sempre crescente de riqueza e de poder. Para essa finalidade, os Estados Unidos vêm submetendo o restante do mundo à espoliação econômica – em uma palavra: hegemonia. A hegemonia é a expressão da identidade própria aos Estados Unidos. Essa hegemonia apoia-se em dois pilares, o dólar como reserva universal de valor e o poderio militar inconteste, e ambos estão ruindo, e de forma associada (uma eventual humilhação militar dos americanos – e é o que está prestes a ocorrer na Ucrânia – poderá lhes ser desmoralizante a ponto de agravar no mundo o processo de abandono do dólar). Há ainda, subjacente, um pilar auxiliar – uma “sociedade no butim”, oferecida pelos americanos às elites econômicas dos países como uma espécie de suborno para que traiam o anseio por soberania dos mesmos e, ao invés, partilhem os interesses hegemônicos dos EUA.
Os Estados Unidos são o único país do mundo (e da História) que pode se dar ao luxo de ter um déficit público tendente ao infinito, porque para refinanciá-lo eles podem simplesmente imprimir mais dinheiro (dólares) sem qualquer lastro.[3] Para tanto, precisam que o restante do mundo necessite adquirir dólares, o que por sua vez requer que praticamente a totalidade do comércio entre os países seja feito em dólar (e os americanos compram mundo afora tudo aquilo que precisam pagando com os dólares que imprimem e que o resto do mundo necessita obter). Para garantir que ninguém questione esse estado de coisas os Estados Unidos precisam ter forças armadas que sejam temidas pelo restante do mundo (chegam a mil as bases militares dos EUA no exterior, espalhadas por todo o planeta). Os gastos militares do governo americano correspondem a uma imensa e sempre crescente fatia do gasto público total (tanto quanto a indústria de armamentos impulsiona o PIB dos EUA) contribuindo para tornar o déficit público cada vez mais estratosférico, com o que o círculo se fecha.
Aqueles países por todo o Sul Global que anseiam por soberania, desvencilhando-se dos entreguistas nas suas elites, pretendem pôr fim à sua dependência daquele que é o instrumento por excelência da dominação hegemônica, o dólar. Entretanto, nesse sentido eles necessitam que os demais países também se emancipem, porém inexiste viabilidade para tanto a curto prazo. A principal pré-condição para que o Sul Global proceda em peso a uma desdolarização maciça ainda não está dada, qual seja o advento de uma nova moeda de referência, desta feita supranacional, de uma forma consorciada com a criação de um sistema de pagamentos internacionais que constitua uma alternativa ao sistema SWIFT implantado e controlado pelos americanos e seus aliados. Rússia e China vêm trabalhando intensamente para virem a lançar no âmbito dos BRICS tal moeda e tal sistema alternativos, e a variável crucial será o timing com que conseguirão emplacá-los (há a expectativa de algum anúncio nesse sentido na cúpula dos BRICS em Kazan, na Rússia, em outubro próximo; novas adesões de países ao grupo seguramente terão por critério a determinação desses países de embarcarem nessa empreitada).
De todo modo, pode-se dizer que já teve início o processo histórico de emancipação daqueles países que ainda gravitam na órbita americana por receio ao poderio militar de Washington; isso acabará por conduzir ao abandono do dólar como moeda de referência para o comércio mundial, o que levará à fadiga das condições para refinanciamento do déficit público americano, o que acarretará uma crise econômica sem precedentes, com empobrecimento profundo e abrupto da população americana, que levará ao fim das instituições naquele país tais como as conhecemos senão ao fim (desintegração) do próprio país. Em uma palavra: colapso. E tratamos aqui apenas do colapso econômico decorrente da desdolarização pelo restante do mundo. Se a isso somarmos fatores como a desintegração social do país decorrente da polarização cada vez mais radicalizada (impulsionada pelo atentado a Trump em 13 de julho), o que temos é uma tempestade perfeita culminando em colapso.
Mais dia menos dia, o colapso ocorrerá. Como reagirão os americanos? Irão se conformar em abrir mão da sua identidade histórica, tornando-se apenas mais um país dentre outros, tanto empobrecido quanto ineditamente sujeito a políticas de austeridade, as quais agravarão o empobrecimento? Acatarão a realidade de um mundo multipolar e participarão na construção, juntamente com os demais países, de uma nova ordem mundial, mais justa e menos desigual? Assimilarão a sua perda de poder com o desmantelamento das suas centenas de bases militares espalhadas por todo o globo, logo eles que se acostumaram a acreditar serem imbatíveis militarmente?
Eu não acredito que o façam.
E como reagirá a plutocracia (que é quem de fato detém o poder de fazer “apertar o botão” nuclear)? Eles, que jamais conheceram outra realidade que não a da perpétua acumulação de mais riqueza e mais poder? Aceitarão o rebaixamento à condição de pessoas normais? Aceitarão a perspectiva de virem a ser responsabilizados pessoalmente por toda a dor e sofrimento causados à Líbia, ao Iraque, ao Afeganistão, à Sérvia, à Ucrânia, à Palestina e a todo o restante do mundo?
Acredito menos ainda.
Expresso nos termos da autopoiesis de Maturana e Varela: em nome da sua autoconservação enquanto viventes, darão conta eles de recriar a sua identidade histórica transmutando-a quase que por completo, de modo a restabelecer a congruência com um mundo exterior que já não mais lhes permite manter aquela identidade histórica?
Considero algo assim como praticamente impossível de acontecer. Também nos termos de Maturana e Varela, a vida e a identidade do ser vivo são a mesma e única coisa, de tal modo que uma negação da identidade é vivida na prática como a morte.
O que a plutocracia fará na conservação daquela sua identidade histórica é tentar evitar o colapso. Porém, existiria apenas um único modo de se evitá-lo, que seria “zerar” o jogo (reescrever as suas regras), “apagando” a dívida pública dos Estados Unidos como se ela jamais tivesse existido, o que requereria a submissão do restante do mundo, em especial de Rússia e China que seriam esteio para o resto do mundo resistir a tamanha arbitrariedade. Em suma, poder reescrever as regras do jogo requeria provocar uma guerra mundial para, é claro, vencê-la (e, é claro também, sem deixá-la atingir o ponto de guerra nuclear mutuamente devastadora).
Nesse sentido, a identidade dos Estados Unidos incorpora um elemento particularmente nefasto: a doutrina nuclear americana, voltada à supremacia militar como ademais todo o restante daquela identidade, comporta, ao contrário da doutrina russa, a prerrogativa do first strike, o direito ao ataque nuclear de surpresa para decapitação da liderança inimiga (então soviética, agora russa bem como chinesa) e para mitigação das suas capacidades de retaliação, sem lhe dar tempo de reagir (foi por essa razão que a Rússia não podia tolerar a ideia de mísseis nucleares estacionados na Ucrânia, a meros quatro minutos de voo de Moscou). Para estarem aptos a desfechar o first strike, os americanos têm adotado providências tais como:
– Estacionaram na Europa uma frota significativa de aeronaves stealth (supostamente invisíveis ao radar), de modo a poder com elas em um ataque de surpresa não apenas lançar bombas nucleares como suprimir as avançadas defesas antimísseis da Rússia;
– Converteram quatro dos seus submarinos da classe Ohio (os USS Ohio, Michigan, Florida e Georgia), de lançadores de mísseis balísticos (cada submarino carregava 24 mísseis Trident) para lançadores de mísseis de cruzeiro (cada um passou a carregar 154 mísseis Tomahawk), mais difíceis de serem detectados e que atingem o alvo com maior precisão;
– Introduziram a tecnologia a que chamaram “super-fuze” nas suas ogivas, pela qual a detonação acontece ao se chegar a uma altura ótima sobre o alvo, já computado o desvio (imprecisão de trajetória) em relação ao mesmo – o que passa a permitir que ogivas menos potentes assegurem a destruição de alvos fortemente protegidos (como os silos de lançamento dos mísseis russos);
– Vêm procedendo a uma “miniaturização” das ogivas (podendo chegar a potências inferiores à da bomba lançada sobre Hiroshima), com base na premissa de que mísseis mais difíceis de detectar e que detonam a uma proximidade ótima do alvo assegurariam a aniquilação da capacidades retaliatórias russa e chinesa mesmo com ogivas menos potentes, minimizando assim os efeitos do inverno nuclear decorrente.
Seria isso tudo tão somente resquício dos tempos da Guerra Fria? Pois a RAND Corporation, o think tank por excelência ao qual o Pentágono há mais de meio século confia a formulação das suas estratégias (e que desde sempre advogou pelas capacidades para um first strike), acaba de divulgar (a 09/fev/2024) um estudo intitulado “Planning for the Aftermath”, contendo orientações para guiar o esforço bélico americano após a derrota guerra da Ucrânia. Dentre os cenários delineados, juntamente com a proposição de ações apropriadas a cada um deles, consta, à página 28: “[…] nós partimos do princípio que os Estados Unidos adotem uma estratégia de superioridade nuclear no período após a guerra […] Washington persegue uma posição de força que poderia, em uma crise, propiciar aos Estados Unidos desfechar um ataque que destruiria um vasto volume das forças nucleares russas e chinesas simultaneamente, com o objetivo de minimizar os danos de qualquer ataque retaliatório”.[4] Pois é, first strike “raiz”.
Quando ocorrerá a hecatombe? A meu ver, por enquanto, não ocorrerá. Enquanto a perspectiva do colapso não se materializar de forma palpável, a lógica da dissuasão mútua continuará a prevalecer, e nem mesmo a plutocracia que comanda o deep state apostará na guerra nuclear. A ocasião do colapso não tem como ser antevista, ele muito provavelmente sucederá a partir de uma cascata de eventos encadeados, e isso é algo que ainda pode demorar ou não. Será somente quando o colapso irromper ou quando já for sentido como iminente que a plutocracia dará a ordem, seja como uma tentativa desesperada de virar o jogo por meio de um first strike (o mais provável), seja para destruir logo tudo de uma vez (o menos provável, mas não impossível).
Entretanto, diante da escalada de graves provocações dos Estados Unidos à Rússia e China a que estamos todos testemunhando, diversos analistas passaram a entender que os americanos teriam decidido apostar em provocar cada vez mais até obterem essa guerra, a ser travada de forma convencional, de preferência por meio de algum terceiro (proxy) inclusive os europeus em reposição aos dizimados ucranianos, e que presumivelmente escalaria, no máximo, até uma guerra nuclear “limitada”, ou seja, com um nível de destruição em certa medida “suportável”. De minha parte entendo que tal postura pelos americanos seja reflexo de um estado de atordoamento e exasperação prenúncios de desespero, porém eu descreio que a guerra venha a ser desencadeada por esse caminho incremental (afinal, a Rússia está vencendo a guerra na Ucrânia e assim pode se abster de revidar as provocações diretamente, evitando embarcar em uma escalada perigosa e imprevisível contra os EUA e optando por revidá-las da forma indireta que já vem adotando, por exemplo ao entregar armamento de ponta aos inimigos do Ocidente). Ir à guerra por essa trilha de escalada incremental traduziria uma dissociação da realidade em grau extremo, posto que seria a receita mais certa para uma guerra nuclear total com aniquilação mútua – o mais lógico seria apostar em um first strike a ser desfechado da forma mais sub-reptícia possível (José Luís Fiori em seu artigo mais recente também advoga isso, inclusive levantando a hipótese de que a decisão por desfechar o first strike possa já ter sido tomada). Mas enfim, como disse Einstein, a estupidez humana é infinita, então tudo é possível.
Peço que não me entendam mal. Eu não estou dizendo que a guerra nuclear somente acontecerá com o colapso do dólar, ela pode acontecer antes, por uma miríade de fatores (inclusive por acidente, ou erro de interpretação). Também não estou dizendo que o colapso do dólar somente acontecerá com o advento de uma nova moeda de referência para o comércio internacional, ele pode acontecer antes, por fatores relativos à disfuncionalidade da economia americana. Porém, tais fatores tanto uns quanto outros são imprevisíveis, assim prefiro não conjecturar. Só o que é possível prever-se com segurança é que o advento da nova moeda levará a um colapso do dólar, e isto levará a uma negação da identidade (o mesmo que a morte) da plutocracia, o que quase certamente levará à guerra nuclear. Nesse ínterim (até que sobrevenha o fim do dólar) eu não tenho como prever, porém acredito que prevalecerá a dissuasão pelo medo da aniquilação mútua, e assim, por mais que a guerra nuclear se mostre iminente, ela seguirá sendo protelada.
Leia a primeira parte desta série: O pós-guerra nuclear no Brasil I, por Ruben Bauer Naveira
Ruben Bauer Naveira (contato e pix [email protected]) é ativista-pacifista e autor do livro Uma Nova Utopia para o Brasil: Três guias para sairmos do caos (disponível aqui).
NOTAS
[1] A imprensa foi chamada a acompanhar uma série de três testes nucleares. No primeiro deles, a 01 de julho de 1946, os jornalistas foram mantidos a uma distância tão grande que praticamente não puderam fazer registros fotográficos, e tiveram que se contentar com imagens fornecidas pelos militares. Já no segundo teste, a 25 de julho, a bomba se mostrou bem mais fotogênica a eles. O terceiro teste acabou cancelado.
[2] Ver, por exemplo, os pontos 34 e 35 da declaração conjunta dos Ministros das Relações Exteriores dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia) reunidos em 10 de junho de 2024 em Nizhny Novgorod (Rússia), em inglês pelo Ministério das Relações Exteriores da Índia e em português pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Em síntese, esses dois pontos expressam, respectivamente, a condenação por aqueles países das ações militares de Israel na Faixa de Gaza e do seu desrespeito às leis internacionais e às deliberações da Organização das Nações Unidas e dos tribunais internacionais; e o apoio daqueles países à criação do estado soberano, independente e viável da Palestina dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas de junho de 1967, tendo Jerusalém Oriental como sua capital.
[3] Isso desde 1971, quando os Estados Unidos, por perceberem que o restante do mundo já estava suficientemente condicionado ao uso do dólar, determinaram, unilateralmente, o fim da convertibilidade do dólar em ouro.
[4] No original: “[…] we assume that the United States adopts a strategy of nuclear superiority on the postwar period […] Washington seeks a force posture that could, in a crisis, allow the United States to launch a strike that would destroy large numbers of Russian and Chinese nuclear forces simultaneously, with the aim of limiting damage from any retaliatory attack”.
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