O bom juiz inglês 2
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Não, esse não é o segundo capítulo do conto homônimo publicado no Jornal GGN. Ao contrário, aqui tratarei do escandaloso caso do brasileiro que fez carreira no TJSP utilizando um nome falso e se dizendo descendente de nobres ingleses.
É evidente que a conduta de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, vulgo José Eduardo Franco dos Reis, pode ser considerada ilícita e que ela produzirá efeitos negativos tanto para o autor da falsidade quanto para os cidadãos jurisdicionados cujos processos ele sentenciou. Não é possível aplaudir o que ele fez, nem perdoar conduta tipificada no Código Penal. Todavia, é preciso compreender o contexto em que tudo ocorreu.
Composto quase exclusivamente por juízes brancos do sexo masculino e bem-nascidos, o TJSP não é um Tribunal que se destaca por ser inclusivo. Negros, índios, mestiços, mulheres e cidadãos de classe baixa em geral dificilmente passam nos concursos de provas e títulos. E muitos são barrados no exame oral por razões indefensáveis. Sei de um caso que ocorreu há uns 30 anos, em que um rapaz esforçado que passou no concurso e cursou com distinção a Escola de Magistratura foi barrado no exame oral porque usava barba.
O fato daquele candidato morar na periferia de Carapicuíba e ter feito Direito numa instituição privada sem o prestígio da Faculdade de Direito da USP e da PUC deve ter pesado bastante na “avaliação técnica” que os examinadores fizeram dele. Barbudo e pobretão, petista em potencial, meu colega foi considerado um risco pelos “manos” do TJSP. Se ele tivesse se apresentado no concurso com um sobrenome chique e pedigree de lorde inglês o resultado teria sido diferente? A resposta é sim, se levarmos em conta o curioso e escandaloso caso do desembargador Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, vulgo José Eduardo Franco dos Reis.
É nesse ponto que as coisas ficam embaraçosas, não para o falsário e sim para o TJSP. Elitista e acostumado a preencher vagas de juízes com candidatos que vem de boa linhagem (ou seja, de famílias cujos varões foram magistrados de primeira e segunda instância), o Tribunal paulista está sempre predisposto a inventar desculpas esfarrapadas para descartar candidatos com vocação e formação adequada (como meu colega, que ficou arrasado na época) e a selecionar falsários ambiciosos e ardilosos como o autoproclamado lorde inglês.
Os desembargadores do TJSP, especialmente aqueles que trabalharam com Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, estão muito envergonhados. Mas a vergonha deles não irá se refletir em nenhuma mudança significativa no processo de seleção de novos juízes. Negros, índios, mestiços, mulheres e cidadãos de classe baixa barbudos e petistas em potencial continuarão a ser barrados no exame oral. E ninguém deve ficar surpreso se no futuro alguém voltar a utilizar a mesma estratégia empregada por José Eduardo Franco dos Reis para se tornar juiz.
Por fim, devo dizer que alguns juízes paulistas serão para sempre culpados por ter selecionado, empossado, promovido e permitido que o Estado de São Paulo pagasse salários acima do teto e penduricalhos abaixo da moralidade para um falsário. Eles serão condenados a devolver aos cofres públicos as quantias embolsadas por Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield? Não ficarei surpreso se isso não acontecer. Afinal, entre os juízes raramente as coisas são resolvidas com a aplicação rigorosa da Lei. Esse rigor eles costumam aplicar somente quando a vítima é um reles cidadão… ou um infeliz advogado.
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
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