O benefício dos conflitos institucionais e sociais, por Aldo Fornazieri
Nos últimos tempos, Brasília vem sendo agitada por uma série de tensões e conflitos entre os três poderes. Ao contrário do que dizem os analistas e comentaristas políticos, acredito que os conflitos institucionais e sociais podem ser benéficos para a consolidação e avanço da democracia republicana.
Antes de inquirir os conflitos brasilienses é preciso resgatar dos pressupostos teóricos. Maquiavel, no livro “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Livio”, afirma que os conflitos entre a nobreza e o povo, que além de sociais tinham dimensões institucionais, foram a principal causa da garantia da liberdade, da adoção de boas leis e expansão da república romana antiga. A potência positiva dos conflitos seria uma espécie de lei geral de todas as repúblicas. Nelas, as divisões sociais e as diversidades constituem a sua natureza. Na república romana, raras vezes os conflitos degeneraram em violência e permitiram que se estabelecesse uma relação de equilíbrio entre o poder da nobreza (Senado) e o poder do povo (os tribunos da plebe).
Mas toda lei geral tem suas exceções. Nos tempos finais da república, o povo e os setores médios se enfraqueceram por conta de tantas guerras e a nobreza concentrou riqueza e terras. Fez-se necessária uma reforma agrária patrocinada pelos irmãos Graco. A nobreza reagiu com violência, levando a guerras civis entre os dois partidos. O resultado final, depois de uma série de guerras entre Lucio Cornélio Sula (partido dos nobres) e Caio Mário (partido do povo), foi a derrota popular e a instauração de um regime brutal e sanguinário que provocou um desequilíbrio institucional e social, razão principal que levou a instauração do império.
Há que se notar que quando as repúblicas são desequilibradas em favor das elites, a liberdade diminui, direitos são suprimidos, prevalece a corrupção e aumenta a desigualdade. Foi esse o processo que ocorreu no Brasil a partir do golpe-impeachment contra Dilma, o que levou a um aumento do desequilíbrio social e institucional entre os interesses do povo e os interesses das elites. Com o governo Lula 3, iniciou-se uma nova etapa na busca de um reequilíbrio dessas relações, mas, por uma série de razões, ele ainda está longe de acontecer.
O outro fundamento teórico surgiu no contexto da aprovação da Constituição dos Estados Unidos. Ao aperfeiçoarem a teoria da separação dos poderes de Montesquieu, os Federalistas, particularmente James Madison, sustentaram a tese do conflito e de uma certa ingerência entre os três poderes da República. Isto levou ao famoso conceito de freios e contrapesos, princípio constitucional do controle mútuo entre o Executivo, Legislativo e Judiciário. A principal função do controle consiste em evitar abusos de cada um dos poderes e garantir a liberdade, os direitos e o Estado Democrático.
O Brasil sempre caminhou no sentido contrário aos dois preceitos teóricos. No plano dos conflitos sociais, os movimentos sociais foram recorrentemente criminalizados e reprimidos, dificultando que as lutas por direitos pudessem exercer aquele papel de garantia da liberdade, produção de equilíbrio e instauração de boas leis. No plano institucional, o artigo 2º da Constituição estabelece o princípio de que os poderes da União são “independentes e harmônicos entre si”. Este princípio é pernicioso, pois escamoteia os conflitos, esconde os interesses institucionais em jogo e leva a práticas de conchavos e conciliações, provocando danos aos interesses populares. Criou-se a cultura da “índole pacífica do povo brasileiro”, que é um instrumento ideológico de amortecimento e repressão das lutas populares. Negros, índios, pobres e outros grupos subalternos são criminalizados.
Voltando ao plano da luta social, os movimentos populares e progressistas começaram a perder as ruas, de forma crescente, em 2013. No processo de impeachment ocorreram gigantescas manifestações da direita e das elites. No governo Temer, os movimentos sociais tentaram, mas não foram capazes de retomar a força mobilizadora.
No governo Bolsonaro, o presidente se tornou o centro mobilizador com pautas golpistas. De novo, os movimentos sociais, de modo geral, não conseguiram promover mobilizações significativas. Por fim, sob o governo Lula 3 começou um declínio das mobilizações da direita e uma anêmica retomada das mobilizações progressistas. A mais significativa foi a do repúdio à PEC da blindagem.
No plano institucional, em que pese a vitória eleitoral de Dilma em 2014, logo se seguiu uma série de derrotas causadas por dois movimentos: de um lado, uma crescente articulação golpista; de outro, uma sucessão de erros políticos do governo e dos partidos progressistas. As mobilizações de rua incidiram sobre o processo institucional, favorecendo o impeachment e as reformas regressivas do governo Temer.
Durante o governo Bolsonaro, o principal embate institucional foi entre o Executivo e o Judiciário. Bolsonaro, viabilizando uma agenda golpista e o STF e o TSE resistindo e defendendo a democracia, as eleições e o Estado de Direito. Com a derrota de Bolsonaro em 2022, a centralidade do conflito institucional mudou um dos polos: o STF permaneceu sob ataque, mas agora vindo do Congresso. Isto porque o Congresso concentrou e reagrupou as forças conservadoras e golpistas.
A tensão entre o movimento de condenação dos golpistas de 8 de janeiro e as propostas de anistia são uma faceta do conflito entre democracia e golpismo. Além desse conflito, ganhou vulto também o embate entre a corrupção parlamentar ensejada pelas emendas e pelo orçamento secreto e as investidas do STF para criar regras e transparência.
Mas a partir de 2023 cresceu o conflito entre o Executivo e o Congresso. Esse conflito se desenvolveu por dois vértices: de um lado, um Congresso sem pudor, com as forças de centro jogando na ambiguidade: nos dois primeiros anos atendendo mais pautas do governo e menos jogando com a oposição. A partir de 2025, o centro atende mais a oposição bolsonarista e menos o governo. De outro lado, um governo sem rumo político, com uma articulação política desastrosa, empilhando erros e mais erros. O governo e a maior parte dos partidos progressistas optaram em apostar em uma estratégia de despolarização num ambiente altamente polarizado. Isto foi mantendo o governismo na defensiva.
Esses são os fatores e os processos principais que provocaram um enorme desequilíbrio da república em favor das forças conservadoras e das elites conservadoras. O desequilíbrio ocorreu porque o campo popular e progressista perdeu capacidade de ação e de mobilização e a direita ganhou. As causas desse revés precisam ser examinadas. Mesmo com o comando do governo, o campo progressista e popular tem dificuldades de avançar na busca de um reequilíbrio.
O governo agrega êxitos significativos no terreno econômico e social: redução da fome e da pobreza, redução do desemprego e da inflação, aumento da renda familiar, crescimento econômico, melhora da economia no ranking global e bom desempenho nas agendas social e ambiental. Em que pese tudo isso, as últimas rodadas dos institutos de pesquisa mostram que a popularidade do governo está empacada: as avaliações negativas continuam maiores do que as positivas.
Nas pesquisas eleitorais, Lula vence em todos os cenários. Mas as diferenças não são tranquilizadoras. Mesmo com a confusão e as divisões no campo da direita e da centro-direita, tudo indica que a disputa será altamente polarizada. Na pesquisa Quaest, 59% dos eleitores afirmam que Lula não deveria ser candidato. É um número sintomático das dificuldades eleitorais de 2026. A oposição procura todas as formas para sangrar o governo. A resposta precisa vir com o aumento dos embates nas ruas e no Congresso. Acreditar na despolarização é um erro que pode ser fatal.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor deLiderança e Poder.
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