Refém de uma plutocracia, o Brasil continua a figurar nas primeiras posições dos rankings mundiais de desigualdade social. A transferência de renda das famílias brasileiras para os bancos, por meio do pagamento de juros exorbitantes, é algo contra o qual nenhum governante ousa intervir. A falta de investimentos em áreas que poderiam garantir uma vida mais digna à população, como saúde, educação e saneamento básico, é escandalosa. As disparidades provocadas por essa opção preferencial pelos ricos crescem de forma incontrolável, propiciando situações de violência exacerbada. Fala-se constantemente no aumento do aparato policial, na aquisição de mais viaturas e novos e mais potentes armamentos, mas o cerne daquilo que realmente gera tanta violência permanece intocável, estando presente apenas nas reflexões de estudiosos de comportamento e manifestações sociais.
Neste Janeiro Branco, mês dedicado à conscientização sobre os cuidados com a saúde mental, não podemos ignorar os efeitos da brutal desigualdade no bem-estar psíquico dos brasileiros. Há muito tempo tornou-se necessário fazer uma distinção clara entre medos gerados pelo imaginário das pessoas e o medo originado da violência social – algo real, que se mantém presente de maneira indiscutível no cotidiano. O medo criado pelo imaginário, que pode ser caracterizado por algumas entidades nosológicas, como a síndrome do pânico, não pode ser equiparado, de forma equivocada, ao medo de transitar em determinados locais da cidade a qualquer horário.
O medo criado pelo imaginário pode ser tratado por especialistas, levando a pessoa portadora desse quadro a buscar novas perspectivas e alternativas de vida. Já o medo gerado pela nossa violência urbana é real e nos atinge de forma indefensável. Para ele, ainda não existe tratamento plausível, nem mesmo a ilusão de que a ampliação do patrulhamento policial resolveria a questão, trazendo a segurança tão desejada e sonhada.
Como falar em saúde mental em um cenário social no qual o salário mínimo, destinado a sustentar o trabalhador, mal cobre o aluguel de um imóvel digno? O que vemos é o salário mínimo ser utilizado apenas como referência para cálculos de emolumentos e remunerações, mas ele raramente cumpre sua verdadeira função: sustentar aqueles que dependem dele para viver. Não podemos esquecer que o capitalismo impõe a escassez, remunerando o trabalhador apenas o suficiente para sobreviver, forçando-o a aceitar condições precárias. E, enquanto isso, os capitalistas continuam proclamando a velha ladainha de que estão “gerando empregos e riqueza”, só que essa riqueza nunca é compartilhada com seus empregados.
Há alguns anos, no posto de combustível onde costumo abastecer meu carro, um dos donos apareceu com um veículo de luxo, talvez equivalente a dez anos de salário de um de seus funcionários. Perguntei, durante um café, se ele não achava aquele carro um tanto acintoso diante da realidade salarial deles. Ele respondeu que o carro representava a garantia de que os vencimentos seriam honrados e um ideal a ser alcançado por seus empregados. Era a lógica capitalista em ação, refletindo as palavras de Paulo Freire, que afirmava que o sonho do oprimido era tornar-se opressor, a menos que houvesse uma educação verdadeiramente libertária.
O sentimento de insegurança e de mal-estar não se resolve com maior policiamento, e sim com justiça social
Como falar em saúde mental quando o valor rotativo do cartão de crédito consome não apenas a renda da família brasileira, mas também sua autoestima e dignidade? Além disso, a propaganda impõe um consumismo desenfreado, sem qualquer proteção dos órgãos de defesa do consumidor. Como abordar a saúde mental em um cenário de desemprego iminente diante das oscilações econômicas? Muitos dirão que os servidores públicos não enfrentam essas preocupações devido à estabilidade no emprego, mas eles costumam receber remunerações inferiores. Não bastasse, uma multidão de desempregados ainda vagueia pelas cidades em busca de algum trabalho.
Como falar em saúde mental quando vemos o desmoronamento de nossas tradições culturais e valores de brasilidade? Assistimos à adoção de comemorações como o Halloween, sem que as pessoas compreendam o seu significado e origem, e ao crescente uso de expressões estrangeiras, como delivery, fast-food, bike, maybe e brother, que não só desqualificam nossa identidade, mas nos enfraquece cultural e moralmente.
Uma sociedade que amontoa impiedosamente milhares de pessoas nas ruas, sem qualquer proteção ou amparo, jamais pode ser considerada saudável. Em São Paulo, estima-se que cerca de 30 mil indivíduos vivam em situação de rua, um número superior ao de muitas cidades do interior. Conviver passivamente com essa realidade, tratando seres humanos como lixo descartável, é reflexo de uma sociedade doente, com níveis patológicos ainda não diagnosticáveis. Infelizmente, essa realidade não é exclusiva de São Paulo. Pelo País afora podemos encontrar situações tão ou mais aberrantes. Talvez não em números absolutos, mas proporcionalmente.
Como falar em saúde mental quando assistimos estarrecidos às perseguições e agressões contra gays, travestis, negros e praticantes de religiões de matriz africana? E como ignorar a realidade manicomial, que tranca aqueles que essa sociedade doentia classifica como “doentes mentais” em condições degradantes, à margem da dignidade humana?
Apesar das leis que regulamentam o acolhimento de pessoas em sofrimento psíquico, muitos ainda são submetidos a centros de tortura com condições medievais, onde sofrem castigos desumanos, muitas vezes por desavenças familiares ou questões financeiras. A verdadeira transformação passa pela criação de uma sociedade mais justa e fraterna. Sem enfrentar essas patologias sociais, não se pode falar em saúde mental de forma plena. •
*Psicoterapeuta existencial, lecionou em cursos de pós-graduação em Psicologia da Saúde na PUC de São Paulo e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Autor e organizador de numerosos livros na área, como A Psicologia sob Sartre, Depressão: a Dor Maior da Alma, Suicídio e as Suas Interfaces e Psicoterapia Existencial, todos pela Editora Artesã.
Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O beco brasileiro’