O Bar Maconhão na ditadura *

por Urariano Mota

Uma foto no Bar do Peneira, nos Quatro Cantos de Olinda, mostra o Bar Atlântico, que todos conhecemos pelo mais verdadeiro nome de Maconhão. Ele está na foto acima, casa branca e comprida, com um coqueiro à frente. A imagem é solar, mas o Maconhão era o seu espírito e carne como um vampiro, pela noite e madrugada adentro, na década de 70.

Os nomes e o que lembram não são gratuitos. O aumentativo de maconha vinha não só da extensão da casa, um grande salão que se estendia pela frente na praia, que poderia parecer talvez um largo charuto branco. Mas a semelhança não era só física. A origem mesmo vinha pela brisa do mar que soprava em ondas sobre nossas cabeças e olfato o cheiro da erva. Isso embriagava mais rápido, porque de repente estávamos todos de olhos abertos, percepção aguda para a sedução do sexo, mais aéreos, que os adeptos diriam mais relaxados. Ou em estado de excitação. Ora para cima pela vodca e cerveja, ora para baixo pelo cheiro. O perfume das jovens era o patchuli, que aprendemos depois ser uma senha do uso da maconha. 

Mas a embriaguez se fortalecia e nos derrubava a todo ser humano pela qualidade da música. Anarquistas, socialistas, porras-loucas em mistura. Não havia em todo o Recife e Olinda, um bar com radiola de ficha, a famosa wurlitzer, que tivesse um repertório tão bom quanto o do Maconhão. Não sei quem, mas acredito que Clodomiro, o dono do bar, devia ter uma assessoria muito especial para trazer somente para o Maconhgão os sucessos dos compositores que cantavam nossas vidas. O ex-gerente Peneira, hoje dono do Bar Peneira, esclarece:

“A radiola de ficha, a wurlitzer, tinha disco em formato da radiola exclusivo para o Maconhão. Em nenhum outro bar de Pernambuco se encontravam as músicas que tínhamos lá na radiola de ficha. A gente fazia as escolhas de acordo com as sugestões de alguns clientes. O técnico da wurlitzer fazia o disco no formato da radiola duas cópias pra gente. Maria Betânia, Gal.  Tudo de Chico, Gil, Caetano, Ednardo, o Pavão Misterioso”.

Ednardo – Pavão Mysteriozo – Gravação Original

O espaço entre as mesas virava pista de dança, e as leoas passavam com suas jubas aneladas, e os leões às vezes procuravam os seus iguais, a competir com as felinas que desejavam outras. 

Vampiro, o Maconhão nos sugava em nossas melhores energias. Ele queria nos reduzir à condição de libertinos pelo sexo de uma noite

“Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel
Uma mulher, uma beleza que me aconteceu
Esfregando a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu
Me falou que o mal é bom, e o bem, cruel’.

Caetano Veloso – Tigresa -Com Letra Na Descrição) – Legendas – (CC)

As tigresas passavam e o desejo sem remédio via as ondulações das suas ancas, acompanhavam com os olhos as fêmeas soberanas a caminhar na noite. Os jovens novas feras sem dentes bebiam-nas, porque apesar de sólidas não podiam comê-las. 

A esta altura, uma pergunta surge: como tal ambiente de aparência livre existia na ditadura? E a primeira resposta é que a liberação de costumes, à semelhança daquilo que se vê hoje nas novelas da televisão, era permitida. Mas tudo sob a mais disfarçada vigilância. Ali permitiam-se ousadias nos costumes, mas a sombra da repressão à liberdade de consciência era onipresente. Isso quer dizer: podiam-se tomar atitudes gays, furtivos beijos, apalpadelas de passagem, casuais. Podia-se ouvir, escutar as músicas dos compositores censurados na radiola de ficha, porque, afinal, era só um exercício de sensibilidade. A liberação era permitida sob observação. Os policias faziam de conta que cochilavam, à espera de informações. De repente mostravam a cara. Lembra Peneira:

“No dia da maior batida policial no Maconhão eu estava lá. Prenderam todo o mundo, todo o mundo que estava no bar. Foram presos amigos meus. O Batata, do Bacalhau do Batata, foi preso. Advogados, jornalistas. Cercaram o bar e levaram todos os clientes presos. Foi muita gente presa. Disseram que os clientes eram fumadores de maconha. Esse foi o pretexto.  Foi a Polícia Federal mesmo”.

Naquele ambiente, acreditem, era uma ousadia os shows do ator e dançarino Pernalonga no bar. Como fala Peneira, na época gerente do Maconhão:

“Pernalonga chegava lá e dava show, fechava (era sucesso absoluto de público). A gente discutia quase todo o dia. ‘Eu gosto daqui’, ele dizia.. E ficava. Pernalonga fumava todas, tomava todas, misturava todo tipo de coisa, e tomava conta da pista do bar imitando Carmen Miranda. Subia num banco e cantava e dançava. Era show”. Ele cantava em um dos seus números musicais: 

“Mamã, mamã, mamãe, eu quero, mamãe, eu quero
Mamãe, eu quero mamar!
Dá a chupeta, ai, dá a chupeta
Dá a chupeta pro bebê não chorar!”

Carmen Miranda – Mamãe eu quero (HD)

Para as fotos de Pernalonga numa exposição, o grande fotógrafo Xirumba pôs a legenda: “Bar Maconhão, onde a cultura fervia Ao som da Radiola de Ficha , Teatro, Show e muitos Bolero nos Baseados. Com Vocês Perna Longa um Ator das Olindas”

Pernalonga foi um dos pioneiros do movimento de teatro de revista Vicencial Diversiones, um marco da resistência política e cultural nos anos 70 em Pernambuco. Foi morto, mais adiante, com uma facada na perna em 2000. Perdeu muito sangue e agonizou por horas na rua, sem que ninguém o socorresse. Medo da Aids. O artista chegou morto ao hospital.

E neste momento volta a hora maior da história do Maconhão. O que a memória objetiva de Peneira fala é recuperada de um ponto de vista literário pelo escritor Marco Albertim no romance “Conspiração no Guadalupe”. Marco Albertim deu vida íntima às noites da ditadura no Bar Maconhão. E numa reflexão daqueles anos da noite da cidade de Olinda, no livro os casais se formam e se desfazem.  Eles são amálgama de militantes socialistas e notívagos boêmios. O que vale dizer, políticos contra a ditadura, mas nada ortodoxos, porque feitos do barro da experiência. Como aqui:

“Os quatro cruzaram-se a dois metros um casal de outro. Maújo, àquela altura, julgava Gertrude e Caetano um casal; por sua comodidade com Chica, pela esperança de que a ex-parelha não ficasse deserdada de todo. Seria capaz de sentar na mesma mesa com os quatro juntos, cada par apostando na felicidade do outro; com ou sem o efeito de daiquiris…”

No romance de Marco Albertim há o reconhecimento e a legitimação criadora dos bares da noite de Olinda no tempo da repressão fascista.  

“O Estrela e o Maconhão têm em comum o apodrecimento do ar. Maújo e Chica o sorviam mudos, atenuando indistintas culpas. Acudia-os a sonoridade remota da rumba. Do lado de fora, dois casais tramavam o delírio noutro retiro, em cama multicor, como os olhos chispando liamba”.

Marco Albertim escreveu como ninguém sobre o Maconhão na noite de Olinda. Pela natureza do narrado é a Olinda com os seus intelectuais, artistas, jovens, álcool e fumo também. Esse Maconhão foi o bar de histórias antológicas de quedas, fracassos e encontros. Nele, certa vez um amigo desejou ser solidário a uma professora, que embriagada se deitara ao lado de um cachorro sarnento no chão. Ele pediu que ela se levantasse daquele lugar sujo onde jazia ao lado do cachorro. E ela, rápido, com o sarcasmo no espírito e na boca amarga:

– Por quê? Está com inveja?

Aquilo era o Maconhão, mais conhecido pelo nome civil de Bar Atlântico. . Foi destruído depois, ao lado do Fortim de Olinda, Fortim de São Francisco, ou Fortim do Queijo.

&Vermelho O Bar Maconhão na ditadura – Vermelho

Urariano Mota – Escritor, jornalista. Autor de “A mais longa duração da juventude”, “O filho renegado de Deus” e “Soledad no Recife”. Também publicou o “Dicionário Amoroso do Recife”.

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Last Update: 01/06/2025