O atraso brasileiro não é tecnológico – é de projeto, por Celso P. de Melo

O atraso brasileiro não é tecnológico – é de projeto

por Celso P. de Melo

“O maior perigo em tempos de turbulência não é a turbulência; é agir com a lógica de ontem.” A frase, amplamente associada a Peter F. Drucker, resume com precisão o impasse brasileiro. O país continua debatendo inovação como se ainda estivesse nos anos 1990: exalta o empreendedorismo individual, celebra pequenas startups, distribui incentivos de forma fragmentada – e espera que, desse mosaico desconectado, surja um sistema capaz de gerar desenvolvimento tecnológico e enfrentar desafios sociais urgentes. Enquanto isso, o mundo reorganizou profundamente suas formas de produzir conhecimento, transformar ciência em tecnologia e integrar inovação ao projeto nacional.

Embora para nós o contraste mais evidente esteja na China, esse não é um caso isolado. Finlândia, Coreia do Sul, Japão, Estados Unidos e até países menores como Estônia e Israel já operam há décadas sob a lógica de que inovação não nasce de iniciativas dispersas, mas de políticas de Estado. Esses países abandonaram o modelo linear – no qual a ciência produz, as universidades publicam e o mercado talvez transforme descobertas em produtos – e adotaram sistemas integrados em que problemas nacionais orientam a pesquisa, a engenharia, a manufatura e o investimento público.

O Brasil, ao contrário, continua funcionando como um arquipélago. Universidades de excelência convivem com baixa articulação com a indústria. Institutos de pesquisa produzem resultados relevantes, mas sem convergência com prioridades nacionais. Temos casos de sucesso, como Petrobras, Embrapa e Embraer, mas eles se desenvolveram à margem de um sistema integrado de ciência e tecnologia, não como parte de uma arquitetura coesa. Cada ilha produz feitos relevantes, mas o país não constrói os caminhos que poderiam transformá-las em um continente.

Esse descompasso aparece com nitidez no elo central de qualquer sistema moderno: a capacidade de transformar ciência em engenharia, engenharia em plantas-piloto e plantas-piloto em manufatura. Trata-se justamente da faixa crítica dos TRLs – escala que mede o nível de maturidade tecnológica – onde ocorrem a validação tecnológica, a prototipagem em ambiente relevante e a construção de plantas-piloto. É nesse trecho intermediário, onde o conhecimento vira capacidade produtiva, que o Brasil mais falha. Produzimos conhecimento, mas não o transformamos em capacidade produtiva.

Grande parte das políticas brasileiras – científicas, industriais, regionais – simplesmente não dialoga entre si. Falta coordenação estável entre ministérios; faltam plataformas intermediárias compartilhadas; faltam instrumentos financeiros integrados. Quando um grupo de pesquisa desenvolve um sensor, uma biomolécula, um chip ou um processo químico promissor, raramente encontra um caminho articulado de engenharia, prototipagem, validação e financiamento capaz de transformar a descoberta em produto, indústria ou soberania.

A nova Estratégia Nacional de CT&I 2024–2030 reconhece temas relevantes, mas ainda não oferece o que países avançados tratam como essencial: missões nacionais claras, prioridades mensuráveis e coordenação de alto nível. O documento lista áreas amplas, porém sem encadeamentos tecnológicos ou instrumentos que integrem ciência, engenharia e indústria. A falta quase completa de metas quantitativas e indicadores de desempenho, cada qual com seus prazos definidos, enfraquece a capacidade de acompanhar de forma rigorosa o progresso obtido. A ENCTI é um avanço, mas ainda insuficiente para transformar o sistema brasileiro de inovação.

No mundo real, inovação ocorre quando ciência e engenharia, empresas e Estado caminham na mesma direção. Os grandes avanços – da chegada do homem à Lua ao desenvolvimento de vacinas em tempo recorde, passando pela criação de sistemas nacionais de conectividade avançada – surgem quando missões nacionais se tornam prioridades explícitas. Só assim é possível coordenar esforços públicos e privados em torno de objetivos concretos: reduzir a dependência de fármacos, construir autonomia em semicondutores, produzir energia limpa em escala, integrar digitalmente o território, melhorar a educação pública e enfrentar a violência urbana.

O Brasil já demonstrou que é capaz disso. A Petrobras estruturou uma missão de décadas para dominar tecnologias de águas profundas, integrando universidades, CENPES, fornecedores e engenharia nacional. A Embrapa revolucionou a agricultura tropical e tornou o cerrado produtivo. A Embraer uniu pesquisa aeronáutica, engenharia e manufatura em um projeto de Estado iniciado nos anos 1960. Sempre que o país escolheu uma missão de longo prazo e a perseguiu com continuidade, entregou resultados extraordinários. Mas essas experiências permaneceram isoladas. Não viraram política de Estado. Não foram convertidas em sistema.

Hoje, o Brasil precisa tomar uma decisão estratégica: repetir indefinidamente o modelo fragmentado, esperando que iniciativas isoladas produzam um avanço sistêmico, ou construir um novo arranjo baseado em missões nacionais, capaz de orientar ciência, indústria, infraestrutura, financiamento e formação de pessoas.

Missões não são planos setoriais. São problemas estruturantes que exigem articulação entre múltiplos campos. Educação pública exige plataformas digitais soberanas, engenharia pedagógica, conectividade universal e ciência de dados. Segurança pública requer sensores, sistemas de inteligência, interoperabilidade federativa e análise territorial avançada. Saúde depende de vacinas, IFAs, equipamentos inteligentes, vigilância epidemiológica e biotecnologia. Clima e meio ambiente pedem agricultura adaptativa, sensores remotos, modelagem climática, bioeconomia e políticas robustas de transição energética. E, em um país vulnerável a enchentes, secas, deslizamentos e incêndios, a prevenção de desastres naturais só pode existir com integração plena entre ciência, engenharia, dados e governança territorial. Nenhum desses desafios é exclusivamente “social” ou “tecnológico”: todos são sistemas complexos.

Países avançados aprenderam uma lição simples: ciência progride quando tem direção; indústria avança quando há previsibilidade; políticas públicas são mais eficazes quando ciência e tecnologia fazem parte do planejamento; e inovação só se converte em soberania quando existe coordenação de longo prazo.

O momento político brasileiro abre uma oportunidade rara. Em breve começará o debate sobre programas de governo para 2026. Se o Brasil quiser realmente reformar seu sistema de inovação, precisa trabalhar com um horizonte de 2027–2050 – duas décadas de continuidade, foco e ambição. É o tempo necessário para formar pessoas, consolidar novas indústrias, desenvolver tecnologias críticas, criar plataformas digitais nacionais, expandir centros de engenharia, integrar o território e alcançar soberania no século XXI.

Este texto não se propõe a oferecer respostas definitivas, mas a estimular uma discussão pública necessária. Representa um conjunto preliminar de ideias voltadas a pesquisadores, formuladores de políticas e cidadãos que reconhecem que ciência e inovação são elementos centrais para a construção de um país moderno, justo e soberano.

“Cada grande avanço da civilização foi consequência de uma nova forma de pensar”, lembrava John Dewey. O futuro não está dado: é construído. E se o Brasil quiser escolhê-lo, precisa começar agora.


Celso P. de Melo – Professor Titular Aposentado da UFPE, Pesquisador 1A do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências.

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