O ato em memória do 8/1 e o jogo perde-perde da comunicação
por Wilson Roberto Vieira Ferreira
Por que no ano passado Lula vetou qualquer ato em memória aos 60 anos do golpe militar de 1964? E por que agora decidiu celebrar um ato em memória aos dois anos dos atos golpistas do 8/1? Com descida da rampa e tudo! Será que não quis melindrar a caserna que ainda acredita que o golpe foi a “revolução de 64”? O fato é que, para o Governo, o 8/1 virou uma bomba semiótica do “Sim!” – tem adesão fácil, principalmente da grande mídia que abduziu o campo progressista para a pauta da “Defesa da Democracia” – cujo filme “Ainda Estou Aqui” foi o toque emocional que faltava. Enquanto Lula coloca um marqueteiro na Secom para melhorar a “Comunicação”, mais uma vez confundindo o conceito com “propaganda”. A questão é que o governo caiu no ardil mídia/Faria Lima do jogo de perde-perde na comunicação: perde defendendo uma Democracia abstrata (Democracia para quem?) para, mais uma vez se desconectar do povão, às voltas com precarização e coachs religiosos-motivacionais; e perde aderindo a uma pauta da mídia corporativa, enquanto ela toca o terror fiscal para inviabilizar a esquerda para 2026. Opção? Pensar a comunicação para além da propaganda. Pensar na pauta anticíclica da Comunicação como Acontecimento.
“Um abraço pela nossa democracia” foi o ato simbólico relativo aos dois anos dos atos golpistas do 8/1. O ápice do evento foi a descida de Lula pela rampa do Palácio do Planalto em direção ao público que o aguardava, aos gritos de “sem anistia”.
“Hoje é dia de dizermos em alto e bom som: ainda estamos aqui. Estamos aqui para dizer que estamos vivos e que a democracia está viva, ao contrário do que planejavam os golpistas de 8 de janeiro de 2023. Estamos aqui porque é preciso lembrar, para que ninguém esqueça, para que nunca mais aconteça”, prosseguiu o presidente.”, afirmou Lula.
Um evento repleto de alusões ao hype do filme de Walter Salles Ainda Estou Aqui e a premiação de Fernanda Torres com o Globo de Ouro de Melhor Atriz – também com a instituição, por decreto, do Prêmio Eunice Paiva de Defesa da Democracia. Participaram da assinatura o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski; o advogado-geral da União, Jorge Messias; e dois netos de Eunice: Chico Rubens Paiva e João Francisco Paiva Avelino.
Um evento que fez questão de ser cerimonioso, simbólico, alusivo, destacando a resiliência e força da Democracia – representada principalmente pela exibição de peças históricas depredadas no 8/1 e reconstituídas: o relógio de ouro de D. João VI, o quadro de Di Cavalcanti e outras 21 peças.
Enquanto isso, na véspera do “Abraço pela Nossa Democracia”, Paulo Pimenta deixou a Secom e será substituído pelo marqueteiro Sidônio Palmeira, responsável pela campanha de Lula em 2022.
A decisão segue na esteira da suposta crise na estratégia de comunicação do governo – apesar dos bons resultados econômicos, não consegueria melhorar a percepção da opinião pública quanto a avaliação positiva do Governo. O diagnóstico do governo é a necessidade de melhorar as estratégias de “comunicação” – aqui confundido com propaganda, como já discutimos em texto anterior – clique aqui.
O ato “Abraço pela Democracia” e o marqueteiro na Secom são eventos sincrônicos. Principalmente depois desse humilde blogueiro pensar com os seus botões e indagar: por que Lula suspendeu todos os atos alusivos ao golpe de 1964 no ano em que completava emblemáticos 60 anos, mas fez questão de turbinar atos pelos dois anos da suposta tentativa frustrada de golpe do 8/1?
Ora, poderíamos dizer que no ano passado foi “para não provocar atritos com os militares”. Tanto que o projeto do governo federal de criar um Museu da Memória e dos Direitos Humanos, focado no período da ditadura militar, também naufragou – o mesmo destino da Comissão da Verdade, de Dilma.
Mas por que agora essa preocupação desapareceu? Afinal as investigações apontam a participação ativa de generais e forças especiais do Exército, inclusive para matar o próprio presidente, o vice e ministro do STF.
Por que dentro dessa agenda da defesa da Democracia, não há espaço a atos contra o Golpe de 1964?
E mais: por que gradativamente o simbolismo do filme Ainda Estou Aqui lentamente está se deslocando da ditadura militar 1964-85 para o 8/1?
Do ato burocrático ao não-acontecimento do 8/1
A primeira resposta pode ser buscada no próprio evento: burocrático e esvaziado. Movimentos sociais não foram mobilizados, além de ausência do presidente do STF (a corte decidiu fazer um ato próprio) e nem os presidentes do poder legislativo – estão mais preocupados em fazer seus sucessores, razão pela qual não quiseram participar de um “evento de Lula” e azedar apoios à direita do espectro político.
Levando a constatação de que o conceito de Democracia, à qual a esquerda quer se agarrar, é abstrato e relativo – afinal, Democracia para quem? De qual Democracia estamos falando?
Talvez Lula acredite que uma boa estratégia de propaganda da Secom venda qualquer coisa… até geladeira para esquimó.
A segunda resposta é ontológica. Tem a ver com a própria natureza dos acontecimentos. Para entendermos essa resposta temos que partir de dois pressupostos:
(a) O golpe de 1964 foi um acontecimento real, histórico: foi um golpe empresarial-militar orientado por interesses multinacionais-associados – geopolíticos, econômicos etc. Historicamente dramático por abortar o projeto nacionalista e desenvolvimentista do capitalismo não-dependente. E mais: um golpe que não foi televisionado.
Claro que a TV brasileira da época não tinha links ao vivo. Estamos nos referindo à ontologia do acontecimento: um evento que irrompeu na madrugada entre 31 de março e 1 de abril, fazendo o jornalismo correr atrás da história. Um acontecimento tão histórico que se tornou traumático: a “cena primitiva” (Freud) da história brasileira recente.
(b) Ao contrário, o 8/1 foi aquilo que definimos como não-acontecimento: com o apoio logístico militar e de extrema-direita (que, sim, conquistaram o Estado no verdadeiro golpe militar: o golpe militar híbrido, cujo ápice foi a vitória de Bolsonaro, em 2018 – um golpe paradoxalmente “democrático”, com voto, urna e tudo…), açodou uma multidão de espécimes do Brasil Profundo a invadir e depredar prédios federais convenientemente vazios e desprotegidos.
Tudo transmitido ao vivo, pela TV, numa tarde preguiçosa de domingo – modus operandi das jornadas em verde-amarelo daqueles domingos que resultaram no golpe militar híbrido. Não-acontecimento: aquele que é pensado, planejado e executado para conseguir determinado rendimento midiático – a mais-valia semiótica.
A mais-valia semiótica da “Defesa da Democracia”
E qual foi a mais-valia semiótica? Aquilo que vimos no dia 8: a adesão da esquerda e do campo progressista à agenda da defesa da Democracia que virou uma espécie de bomba semiótica do “Sim!” – causas de fácil adesão, daquelas que ganham imediata unanimidade – principalmente da grande mídia.
Qual o ardil dessa mais-valia semiótica? Estratégia diversionista e dissuasiva para tirar do foco da opinião pública o verdadeiro golpe que está em andamento: o terrorismo fiscal da Faria Lima. Por que um “golpe”? Porque tem o objetivo de inviabilizar Lula ou um possível sucessor à esquerda. Finalmente conseguir entronizar no governo o capitalismo de choque ao estilo Milei – objeto do desejo de 10 em cada 10 faria limers da banca financeira.
Vimos uma pequena amostra nos quinze últimos dias do ano passado: enquanto a grande mídia falava em “defesa da Democracia”, em questão de dias a grande mídia, seus articulistas e comentaristas, alinhados a correntes mais nefastas do setor financeiro conseguiram criar a percepção de um cenário autorrealizável de derrocada econômica, do avanço inescapável e descontrolado das taxas de inflação supostamente motivado pela “gastança” do governo.
Em poucos dias, com ajuda do bate bumbo midiático, tomaram o país como refém, especularam com o dólar e chantagearam o governo a dar “boas” respostas para o mercado – desindexar o salário-mínimo e acabar de vez com os BPC seria um ótimo começo de conversa…
Continue lendo no Cinegnose.
Leia também: