A natureza da agressão dos EUA ao nosso País é claramente intervencionista, política na origem e nos objetivos que persegue. A escandalosa coação ao Judiciário, imiscuindo-se em nossa domesticidade em nível jamais conhecido entre nações soberanas em paz, tanto quanto o “tarifaço”, atingindo em cheio nossa economia e anunciando desemprego, não se encerra em si mesma, pois muito está por vir, e o que nos espera poderá agravar-se se não encontrar a resistência de uma sociedade organizada, apta à mobilização e preparada política e ideologicamente.

Os idos de 2025 olham para 2026.

O tarifaço é a aparência que não esconde a essência.

O projeto trumpista, apoiado pelo grosso da sociedade estadunidense, pelo seu Congresso, pela Suprema Corte, é movimento que visa a fortalecer, ampliar e dar consequência à marcha da extrema-direita em todo o mundo — fantasma que não é de hoje. Ele assombra a Europa, pervade a América Latina e agora volta ao comando dos EUA, mirando o resto do mundo.

A ameaça toma os contornos de fato concreto, corre como rastilho de pólvora; sua relevância muda de qualidade quando passa a ser conduzida pela — ainda — maior potência econômica e militar dos últimos cem anos, ferida pela sua crise interna, acossada pela desindustrialização, justamente assustada com as ameaças à sua hegemonia representadas pela ascensão de uma Eurásia liderada por uma China desenvolvida e em crescimento.

Neste quadro, a lei do mais forte substitui o diálogo; a força se antepõe à persuasão ideológica, que pede tempo para frutificar: a submissão do colonizado aos interesses e à vontade do colonizador. O discurso se mostra ineficiente, e as novas circunstâncias reclamam o retorno do big stick, a doutrina que no início do século XX inspirou as relações imperiais dos EUA com a América Latina, nada diversas das relações das grandes potências europeias com suas colônias — e do que foi, entre nós, no Império, a preeminência inglesa.

Não se trata, pois, de mero acaso sua vinculação com a extrema-direita brasileira e, mais precisamente, com o bolsonarismo, hoje um movimento de massa. Muito menos podem parecer desarrazoados os braços dados ao sionismo e a associação ao genocídio do povo palestino. Os EUA levam a cabo verdadeiro bullying contra o humanismo e a paz — valores sempre secundários para o autoritarismo que se transfigura em fascismo, o destino a que sempre nos condena o capitalismo em crise. A ascensão da extrema-direita é, assim, produto do processo histórico, e o Brasil se apresenta, pela sua economia, pela sua população, pelo seu território, pela sua liderança, como peça importante a ser conservada como território de segurança.

A internacional neofascista encontra no Brasil de hoje um espaço de penetração facilitado pelo vira-latismo de nossa classe dominante e pelo excepcionalismo de uma direita entreguista que investe contra a nação — logo ela, que tanto gosta de bater no peito, fazer continência e gritar o amor à pátria, trajando a amarelinha da CBF. Estranha horda de “patriotas”, que faz continência à bandeira dos EUA e nas passeatas estende com orgulho a bandeira de Israel, para registrar seu aplauso ao sionismo e a seus horrendos crimes. No plenário da Câmara dos Deputados e nos palanques dos comícios seus próceres, como o governador de São Paulo, se exibem com o boné vermelho de Trump onde se lê MAGA, ou Make America Again.

O partido de Jair Bolsonaro expulsa de seus quadros um deputado federal que ousa criticar Trump quando este nos ataca. Que faz aqui — e em Washington — a família do capitão? Que faz aqui a maioria parlamentar que controla o Congresso? Que fazem o PL e seus similares? Que fazem aqui os governadores dos mais importantes estados da Federação? Nada se deve esperar das chamadas elites, do grande capital internacionalizado, de um empresariado rentista sem visão de País e nação.

A burguesia que aqui reside na maior parte do tempo só tem olhos para a constância de seus lucros e não hesitará em mudar de rumo, ramo ou país — como já anunciaram uma grande metalúrgica gaúcha fabricante de armas e a Embraer, de malas prontas para migrarem para os EUA. A montadora de aviões (erguida e viabilizada, como se sabe, com dinheiro do contribuinte brasileiro) já anunciou investimentos de 500 milhões de dólares em suas instalações na Califórnia, para onde pretende levar o projeto do KC-390, apresentado como maior avião militar já fabricado na América do Sul.

Esta é a resposta do grande empresariado nacional ao tarifaço.

As lideranças empresariais reclamam de nosso governo uma negociação que ele sempre buscou — sem êxito — e exigem que o presidente Lula tome a iniciativa de procurar Trump e, preferencialmente, seja atencioso e prestativo. O conceito de dignidade nacional é ignorado pela elite aqui instalada.

Os EUA, com o tarifaço — mas principalmente com sua justificativa, abusivamente reiterada por Trump — já intervieram na política brasileira. Estamos ainda distantes do ponto de chegada, mas está evidente que a operação em curso olha para o processo político e eleitoral brasileiro. O objetivo é intervir na história, seja invertendo os números do apertado pleito de 2022, seja transformando em sucesso a frustrada intentona de 2023, seja interferindo nas eleições de 2026. Seu alvo é assegurar a consolidação do projeto neofascista, interrompido com a eleição e posse de Lula, eventos fundamentais, mas insuficientes para garantir a consolidação de nossa democracia, tão frágil e tão ameaçada, hoje, não menos eu ontem.

Há uma disputa institucional, há um confronto na sociedade, e há a registrar o avanço da extrema-direita, no limite de conquistar uma nova maioria — a nuvem negra que se anuncia desde 2018 e chegou tão perto de se transformar em realidade em 2022. E, porque ganhamos as eleições presidenciais, cuidamos de esquecer que havíamos perdido a disputa na maioria dos Estados e no Congresso.

A resistência neofascista e a intervenção dos EUA indicam o que deverão ser as eleições do próximo ano (uma disputa, a rigor, já iniciada), quando as forças populares enfrentarão um bloco de direita e extrema-direita organizado: como sabemos, não lhe falta base popular, nem o conforto oferecido pelo apoio da maioria dos governadores, da maioria dos prefeitos, da maioria esmagadora de deputados estaduais e federais, da maioria dos senadores, da velha imprensa, o apoio político e financeiro da Faria Lima e, agora, o apoio ativo, explícito e incondicional dos EUA (que terá faltado ao putsch de 2023).

Um quadro que traz um incômodo sentimento de déjà vu a quem acompanhou as eleições de 1962 e viveu os idos de 1964.

Por contraditório que pareça, contudo, muito passamos a dever aos EUA, ao trumpismo e a esse intervencionismo. Trump escancarou a natureza do imperialismo (inclusive com a manipulação grosseira do conceito de Direitos Humanos, que Washington nunca teve tão pouca moral para invocar). Assim, foram postas na ordem do dia questões descuradas pela esquerda brasileira desde que passou a flertar com o neoliberalismo. Por ingenuidade política, deformação teórica ou mesmo por comodismo, supôs estar no poder — e supôs ainda que a conciliação ideológica era o caminho mais simples para nele permanecer. Esqueceu-se de que há uma coisa chamada consciência de classe, valor bem cultivado pela classe dominante. Ideologia não é brinquedo…

Assim, ganhamos, mas com limitadas condições de governança, de que derivam graves riscos à institucionalidade democrática. A maioria parlamentar de hoje é (e não é preciso qualquer esforço para ver) ainda mais reacionária, obtusa e irresponsável do que aquela que decretou o impeachment da presidente Dilma Rousseff, “corrigindo” o resultado das eleições de 2014. Aprende com as lições da história quem quer.

Na última semana, o chorume neofascista paralisou as atividades do Congresso para protestar contra a decretação da prisão de Bolsonaro, criminoso contumaz. Com isso, o bolsonarismo  impediu a votação de ao menos um projeto de interesse da população: a isenção de IR para quem ganha até 5 mil reais. O deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) repudiou a ação do bando, mas ironizou: “Deputados do PL terem se autoimposto a colocação de esparadrapos na boca, eu acho uma boa medida. É uma ação voluntária para contribuir com a paz.”

Lamentavelmente, não se trata de um raio em céu azul o avanço do pensamento e da ação da direita e da extrema-direita. O processo político que nos inquieta seria inviável sem nossa colaboração, ainda que involuntária: a política é produto da luta social, à qual renunciamos, deixando de desempenhar o papel fundamental de vanguarda. Mas, se não nos faltar ânimo, sobrarão condições objetivas de enfrentar o desafio, com a retomada da luta ideológica.

O trumpismo, com sua agressividade tóxica, nos oferece a oportunidade de discutir o interesse nacional, de falar em nação e em nacionalismo, retomar a defesa de nossas riquezas naturais, voltar a falar em imperialismo — pois ele, em lento declínio, arreganha os dentes — e denunciar seu papel corrosivo. É a oportunidade de encontro da sociedade com o País, o despertar da consciência de pertencimento a um projeto comum.

Seremos, afinal, uma Nação, e em torno desse sentimento poderemos construir uma nova maioria nacional, progressista, apta a enfrentar o maior dos desafios da nacionalidade: a desigualdade e a injustiça social estampadas na segunda maior concentração de renda do mundo.

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Aviso aos navegantes – Há mouros na costa.

Tem gente com fome 1 – É difícil, e talvez inútil, tentar identificar o que há de mais horrendo e repugnante em um genocídio. Mas o lento assassinato de civis desarmados pela desnutrição forçada choca especialmente. Assim, gravaram-se na memória da humanidade as imagens de corpos esqueléticos dos prisioneiros de Auschwitz – uns ainda vivos, outros jogados em pilhas de cadáveres, como se nem humanos fossem. O horror se repete com o genocídio, em curso, dos palestinos de Gaza, que além dos bombardeios covardes (assistidos por uma “comunidade internacional” inerte e desmoralizada) enfrentam, agora, a escassez de remédios, água e alimentos imposta pelo estado de Israel. E repetidas vezes são atacados pelos terroristas de Tel Aviv quando se aglomeram na busca desesperada de ajuda humanitária! Relembremos Primo Levi: “Destinados a uma morte quase certa, resta-nos uma única opção, que devemos defender a qualquer custo, justamente porque é a última: a de não permitir que nos façam virar um ‘nada.”

Tem gente com fome 2 – Nesse cenário de horror, deveria ser dada atenção especial ao relatório SOFI 2025, lançado no último 28/07 durante a abertura do UN Food Systems Summit +4, na Etiópia. O documento destaca que, embora o número de pessoas com fome no mundo tenha se estabilizado após o pico da pandemia, ele continua em patamar preocupantemais de 730 milhões de pessoas estavam em situação de fome crônica em 2024, com Ásia e África concentrando cerca de 90% desse totalQuanto ao Brasil, um ansiado anúncio positivo: o País foi oficialmente retirado do Mapa da Fome da ONU, menos de três anos após haver retornado ao ranking, na longa noite bolsonarista.

Tem gente com fome 3 – Evidentemente, os dados dignos de festejo não podem nos fazer esquecer que a desnutrição ainda afeta milhões de brasileiros, e que o País tem diante de si o desafio de melhorar a qualidade da alimentação do seu povo, hoje repleta de ultraprocessados. Mas essa vitória já mostra um caminho a ser perseguido e aprofundado: a combinação de políticas de incentivo à geração de emprego e valorização do salário-mínimo, combinadas à manutenção de benefícios como o Bolsa Família e o BPC, e apoio à agricultura familiar. Além do repúdio ao fascismo. O necessário sentido de urgência é dado pelo verso do poeta, multiartista e militante comunista pernambucano Solano Trindade, que adverte: “tem gente com fome”.

(Com a colaboração de Pedro Amaral)

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Last Update: 06/08/2025