O arroz e o patrimônio histórico, por Felipe Bueno
As visões de mundo dos motoristas profissionais têm sido oportunidades de estudos de caso de sociologia e antropologia há muito tempo, em qualquer lugar do mundo. Já passei um longo congestionamento em Lisboa ouvindo impropérios contra os romenos; em Paris, recebi aulas
sobre o submundo e ofertas de descontos em vários de seus produtos; em Buenos Aires, fui agraciado com várias palestras sobre as razões dos fracassos de cada um dos então presidentes, de Menem a Fernandez. Em Lima, geralmente não há a chance de escutar muita coisa, dada a quantidade de buzinas. Em Roma…bem, em Roma não ouvi nada; sempre estive mais preocupado com a peculiar relação que os habitantes da Cidade Eterna têm com as leis de trânsito.
É claro que no Brasil as conversas trazem um sabor todo particular. Por exemplo: dia desses, em São Paulo, num domingo de pouco trânsito mas no qual um dos poucos congestionamentos tinha a nossa participação, meu condutor esbravejava com o fato de a obra do Metrô – que causava as obstruções parciais – estar suspensa por determinação do órgão responsável pelo Patrimônio Histórico por causa de achados arqueológicos ligados à existência de um quilombo no bairro da Bela Vista.
“Essas coisas de patrimônio histórico não valem nada”, sentenciou o sujeito. “É de arroz na mesa que o povo precisa”.
Por um momento, meu espírito se deslocou de meu corpo e fugiu do banco de trás do automóvel parado. Deixou a São Paulo cada vez mais lotada de studios e prédios de fachadas espelhadas e passou pela Itália e pela Grécia, só esses dois países, porque a viagem não durou muito e seriam necessários poucos exemplos para rebater o comentário obtuso do meu companheiro de viagem.
Nações com grande potencial turístico fundamentadas (não só, mas em volume considerável) no patrimônio histórico vivem hoje, aliás, um paradoxo do excesso: em português bem claro, estão tentando se livrar do turismo em demasia, um turismo que gasta milhares de euros nas lojinhas dos museus mas não faz ideia da antiga finalidade do Fórum Romano ou da Acrópole de Atenas.
Pergunto-me, arriscando na alma uma resposta: caso ganhasse uma estada de uma semana na Bota, meu motorista ficaria comovido e tiraria uma selfie com um gladiador cenográfico ou ignoraria toda aquela riqueza, deixando a velharia para lá, cuidando apenas de encher a pança de vinho e fettuccine?
Como se o objetivo do cuidado com o patrimônio histórico fosse apenas ganhar dinheiro de estrangeiros apressados! Cultura e memória forjam civilizações, evitam repetições de erros, são sustentáculos de futuros promissores. E além de todas essas coisas supérfluas que “não valem nada”, sem dúvida garantem o arroz – ou o risoto e a moussaka de cada dia.
Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.
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