O apelo de Ben-Gvir às armas: a militarização dos colonos e a ameaça às comunidades beduínas na Área C

por Dr. Rasem Bisharat

Introdução: Da retórica de segurança à estratégia política

Quando o Ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, incentivou os israelenses a portar armas “em todos os lugares”, não estava apenas reagindo a um incidente isolado de segurança. O seu apelo reflete uma política deliberada e contínua de militarização da sociedade israelense. Desde que assumiu o cargo, Ben-Gvir supervisionou a emissão de dezenas de milhares de licenças de armas de fogo e facilitou a distribuição de armas, sendo os colonos na Cisjordânia os principais beneficiários.

A militarização dos colonos não pode ser compreendida como um mero assunto interno de segurança. Deve ser vista como parte de uma estratégia mais ampla para reconfigurar as realidades territoriais. As comunidades palestinas — especialmente as beduínas que vivem na Área C — encontram-se na linha de frente dessas políticas. Sua vulnerabilidade e falta de proteção fazem delas alvos fáceis para coerção e deslocamento gradual, seja por meio de ações militares oficiais ou pela violência armada de colonos, legitimada pela retórica governamental.

Esse processo mostra como a política israelense atual combina violência comunitária e planejamento estatal: os colonos são usados como instrumentos de pressão, deslocando gradualmente os palestinos de suas terras. Cada episódio violento torna-se uma oportunidade para acelerar projetos de anexação, minando a continuidade territorial palestina e enfraquecendo a perspectiva de um Estado viável.

A fragilidade beduína na Área C

As comunidades beduínas espalhadas pelo Vale do Jordão, Colinas do Sul de Hebron e arredores de Jerusalém vivem em condições de extrema instabilidade. Essas áreas, classificadas como Área C segundo os Acordos de Oslo, estão sob total controle israelense, deixando os residentes sem proteção significativa nem infraestrutura adequada. Essa classificação fez delas, ao longo dos anos, alvos diretos de projetos de colonização e anexação.

Relatórios da ONU, de organizações de direitos humanos e da própria Al-Baydar documentaram repetidamente o assédio sistemático contra essas comunidades: demolição de tendas e casas simples, confisco de rebanhos e equipamentos, intimidação e tentativas constantes de deslocamento forçado. Os colonos frequentemente atuam com o objetivo explícito de empurrar essas comunidades a abandonar suas terras. Por serem aldeias pequenas e isoladas, ficam expostas na linha de frente do empreendimento de colonização, enfrentando sozinhas uma máquina política, militar e econômica poderosa.

Comunidades sob ameaça direta

Alguns agrupamentos beduínos tornaram-se pontos de conflito emblemáticos na Área C:

  • Khan al-Ahmar (Jerusalém Oriental): Localizado a leste de Jerusalém, enfrenta ameaças constantes de demolição e deslocamento, tornando-se um símbolo da resistência palestina às políticas de ocupação.
  • Masafer Yatta (Colinas do Sul de Hebron): Declarada “zona de tiro” pelo exército israelense, abriga pequenas comunidades beduínas sujeitas a demolições e severas restrições de construção e infraestrutura.
  • Vale do Jordão Setentrional: Região vital para agricultura e pastoreio, cada vez mais visada por colonos que buscam controlar terras agrícolas e recursos hídricos. Ataques a moradores e propriedades são amplamente documentados.
  • Arredores de Jerusalém Oriental: Famílias beduínas enfrentam deslocamento contínuo devido à expansão de assentamentos, ameaçando sua identidade cultural e social.

Essas comunidades mostram como o assédio local se integra ao objetivo mais amplo de esvaziar a Área C da presença palestina.

A militarização dos colonos como ameaça existencial

O apelo de Ben-Gvir para portar armas deve ser entendido no contexto de sua política mais ampla. Ao flexibilizar as regras de licenciamento, ele já armou dezenas de milhares de colonos. Na Cisjordânia, isso significa mais do que “segurança”: transforma cada colono em uma força armada independente.

Para os beduínos, encontros cotidianos podem agora escalar em violência letal. Um pastor passando perto de um assentamento ou utilizando terras disputadas pode provocar confrontos armados. Casos documentados mostram que colonos que criaram postos agrícolas no Vale do Jordão e ao redor de Jerusalém frequentemente recorrem à violência para expulsar palestinos. Com armas legitimadas pela política estatal, esses confrontos ganham um caráter existencial.

Nos últimos meses, os colonos intensificaram ações: queima de tendas, destruição de plantações, envenenamento de rebanhos e intimidação de famílias. Sob incitação oficial e maior acesso a armas, tais incidentes podem evoluir para tiroteios diretos ou ataques organizados no estilo de milícias. O colono deixa de ser apenas protegido pelo exército para se tornar um executor ativo de metas estatais, com cobertura legal e política.

Violência como instrumento de deslocamento

A militarização dos colonos serve a um propósito político claro. A violência contra comunidades beduínas não é incidental, mas um mecanismo eficaz de deslocamento coercitivo. Ao criar um ambiente de medo e insegurança, os colonos forçam os residentes a deixar suas terras e migrar para Áreas A e B, abrindo caminho para o controle israelense.

Essa abordagem está alinhada com os planos de anexação — parciais ou totais — defendidos pelo governo de direita. Em vez de expulsões militares abertas, que gerariam críticas internacionais, o assédio liderado por colonos funciona como “deslocamento não oficial”, enfraquecendo gradualmente a presença palestina e reduzindo o custo diplomático. O discurso de Ben-Gvir fornece cobertura política para um processo de limpeza étnica em câmera lenta.

Resultados esperados e repercussões internacionais

No plano interno, os próximos meses provavelmente verão um aumento nos casos de deslocamento forçado. Famílias beduínas vulneráveis, especialmente sob ameaça direta, podem abandonar suas terras em busca de segurança em áreas urbanas. Isso corresponde exatamente ao objetivo demográfico das políticas israelenses na Área C.

No cenário internacional, as comunidades beduínas sempre despertaram atenção especial. O caso de Khan al-Ahmar, em que UE e ONU intervieram contra a demolição, ilustra bem essa preocupação. Com a militarização dos colonos e a escalada da violência armada, a diplomacia palestina terá fundamentos mais sólidos para denunciar Israel por limpeza étnica gradual. Essa narrativa pode pressionar países europeus e do Sul Global a adotar posições mais firmes, desde o reconhecimento do Estado palestino até medidas punitivas contra Israel.

Conclusão

O apelo de Ben-Gvir para que os israelenses portem armas em todos os lugares simboliza a fusão entre violência e estratégia estatal. A militarização dos colonos, especialmente na Área C, fornece ao governo um instrumento para avançar objetivos territoriais sem depender totalmente do exército — reduzindo críticas internacionais enquanto acelera a anexação no terreno.

As comunidades beduínas, já frágeis, são as primeiras vítimas. A presença de colonos armados, legitimados politicamente, transforma o medo diário em uma ferramenta de deslocamento. Trata-se de um plano coordenado para despovoar a Área C, cortar a continuidade territorial da Cisjordânia, enfraquecer a Autoridade Palestina e inviabilizar a solução de dois Estados.

No cenário internacional, as violações persistentes — especialmente contra comunidades emblemáticas como Khan al-Ahmar — oferecem à diplomacia palestina narrativas poderosas de limpeza étnica. Isso pode levar alguns países a adotar medidas mais duras ou acelerar o reconhecimento da Palestina.

Em última análise, o que acontece hoje na Área C é a materialização prática de uma estratégia dupla: violência comunitária combinada com política governamental para garantir colonização e anexação. Cada confronto, por menor que seja, alimenta um processo maior de redesenho da geografia palestina segundo uma visão unilateral israelense. Nesse caminho, a segurança e a estabilidade dos palestinos permanecem distantes, enquanto Israel explora cada incidente para justificar novos passos de anexação e impor realidades difíceis de reverter.

Por Dr. Rasem Bisharat – Comissário de Relações Externas da Organização Al-Baydar para a Defesa dos Direitos dos Beduínos e Aldeias Alvo

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Last Update: 11/09/2025