O amigo português (I)
por Izaías Almada
Conheci Lisboa no ano de 1973, ainda nos meus tempos de teatro, quando para lá viajei integrando o elenco de “Cemitério de Automóveis”, peça de Fernando Arrabal, dirigida pelo argentino Victor Garcia. A iniciativa foi da atriz Ruth Escobar, de origem portuguesa, e que viveu no Brasil por muitos anos.
Foi uma experiência maravilhosa, pois até aquele momento eu não conhecia a Europa. Por lá fiquei seis meses, com ligeiras esticadas a Madrid e Paris.
De volta ao Brasil, com o passar dos anos, troquei o teatro pela publicidade e regressei a Lisboa em 1984, agora com o propósito de lá abrir uma produtora de filmes publicitários, onde permaneci por um ano.
A ideia não vingou, pois a possibilidade de se tornar um bom negócio ainda não amadurecera: Portugal só entraria oficialmente para Comunidade Econômica Europeia em janeiro de 1986.
Fiz nova tentativa em 1991. Dessa vez sem a intenção de ter a produtora, mas de trabalhar como free-lance para produtoras e agências de publicidade portuguesas. Desta vez vivi em Portugal durante cinco anos inteiros, voltando ao Brasil em 1996 por motivos pessoais e não profissionais.
Ao todo, portanto, morei por quase seis anos na terra de Camões, Fernando Pessoa e Zeca Afonso.
Nas três oportunidades foi possível conhecer pessoas e criar amizades, sendo que uma delas, em particular, criou raízes com o passar dos anos.
Como toda amizade que se consolida de tempos em tempos passados juntos, mas também de grandes períodos de distanciamento geográfico e eventuais discordâncias aqui e ali, fomos – cada um por seu lado – amadurecendo e desenvolvendo nossas atividades artísticas.
Esse amigo chama-se Luís Filipe Rocha, advogado de formação e cineasta de profissão. Nosso primeiro contato, em 1973, foi na apresentação da peça de Arrabal num circo de lona montado em Cascais, freguesia praieira distante meia hora de Lisboa.
Luis foi destacado pelo cineasta José Fonseca e Costa, já falecido, para captar imagens do espetáculo, pois era intenção de Ruth Escobar fazer um documentário sobre o evento. O que foi conseguido, por sinal. E eu, indicado por Ruth para acompanhar o Luís nas filmagens.
Terminado o trabalho, combinamos ir para Paris. Eu estava ansioso para conhecer uma cidade milenar, famosa em muitos aspectos que marcaram a história da humanidade e o Luís, que já conhecia a cidade, para “fugir à tropa”, como era comum se referir àqueles portugueses que eram contrários em ir defender o colonialismo português em África. Fomos de trem, comboio como dizem por lá, passando pela Espanha.
Em Paris, começamos a escrever um documentário cinematográfico sobre Fernando Pessoa e que apresentaríamos ao Instituto Português de Cinema na época, o IPC, com a intenção de conseguirmos verbas para a sua realização.
Voltamos a Lisboa no final daquele mesmo ano e enviamos o trabalho a concurso. Para nossa surpresa o projeto seria aprovado se concordássemos em fazer diversos cortes no roteiro, considerados subversivos pelo regime ainda salazarista. Marcelo Caetano era o primeiro ministro.
Não concordamos com a censura e perdemos a oportunidade de fazer um interessante trabalho cinematográfico sobre Pessoa.
O mais curioso dessa história, contudo, foi o encontro que o Luis teve com um militar, seu conhecido, que exercia funções no governo, justamento na área da cultura e que, vejam só, foi o tal “censor” do roteiro.
Era um homem do Partido Comunista Português e que para não atrair suspeitas em aprovar um argumento “subversivo” viu-se constrangido aos tais cortes. Rimos um bocado.
Esse encontro se deu entre o final de 1973 e os dois primeiros meses de 1974, onde já eram fortes os rumores vindos d’além-mar de que os militares portugueses não estavam nada satisfeitos com a continuação do regime salazarista e das guerras coloniais.
Luís, ainda na sua preocupação de não “fazer a tropa” (pertencer às forças armadas por um tempo) e se ver obrigado a combater em África, veio para o Brasil no início de 1974 e trabalhou comigo na montagem carioca do espetáculo teatral “Fernando Pessoa”, onde muito ajudou.
(CONTINUA)
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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