O Agente Secreto: A arte de contar uma história sobre histórias não contadas

O mais recente longa do diretor Kleber Mendonça Filho vem colecionando prêmios mundo afora, incluindo Cannes, e, proporcionalmente, deixando um rastro de rasgados elogios e críticas mordazes.

Ao contrário de Ainda Estamos Aqui, o filme de Mendonça Filho é uma obra inteiramente fictícia, mas que, tão ou mais que o longa do banqueiro-diretor Walter Salles, expõe dramas e elementos pouco explorados na filmografia recente sobre a ditadura militar. A começar pelo cenário: uma Recife dos anos 1970, fora do eixo Rio-São Paulo, magistralmente recriada, inclusive evocando histórias locais como a lendária “perna cabeluda”.

Longe de ser uma escolha meramente estética, a cidade se converte num personagem próprio, fornecendo um ambiente e uma atmosfera que emulam a tensão e um ar sufocante que ajudam a reproduzir os anos de chumbo. E que também vai ser responsável por algumas polêmicas, como veremos mais adiante.

Um tempo de pirraça

Logo no início do filme somos apresentados a “Marcelo” (Wagner Moura), o tal “agente secreto”. Perseguido e refugiado dentro do próprio país, não sabemos a razão pela qual ele se “disfarça”. Seria um militante político sentenciado pela ditadura? Longos minutos se passam até que seu drama pessoal seja totalmente desvendado. Só se sabe que, fugido para São Paulo, ele retorna à capital de Pernambuco em busca do filho.

Nesse meio tempo, porém, aparecem personagens que, longe de serem meros coadjuvantes, constituem peças fundamentais nesse mosaico meticulosamente montado por Mendonça. Marcelo é acolhido por uma rede de apoio e abrigado num prédio comandado pela maravilhosa Dona Sebastiana (Tânia Maria), uma senhora simpática com um passado misterioso, empunhando seu cigarro como qualquer filme noir que se preze.

No microcosmo do Edifício Ofir, uma subtrama se desenvolve, com personagens que expressam perseguidos, não só políticos, mas LGBTIs, mulheres vítimas de violência e imigrantes. Aliás, coincidência ou não, um casal de refugiados angolanos escapavam do (presume-se) MPLA, o mesmo que, nos dias de hoje, perpetua uma ditadura em Angola, reprimindo uma onda de mobilizações e perseguindo opositores.

Perseguidos: prédio onde refugiados se reuniam

Os pontos de intersecção entre passado e presente, porém, não param por aí. A corrupção e violência policial, os grupos de extermínio e, principalmente, as relações espúrias entre o setor público e privado nos fazem questionar se é realmente um filme de época.

A trama central, no entanto, envolve justamente a relação promíscua e cúmplice entre o setor privado e o Estado ditatorial, no caso, com seu braço estatal Eletrobrás. Um aspecto pouco explorado, para não dizer deliberadamente esquecido, nas representações sobre a ditadura cívico-militar brasileira nas telonas. Uma ditadura que, se foi encabeçada politicamente pelas Forças Armadas, contou com o apoio ativo de grandes empresas e multinacionais.

A extensa pesquisa que resultou no projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura” revela como grandes empresas, estatais ou multinacionais, não só se beneficiaram durante o período, como financiavam diretamente a repressão, ou convertiam-se, elas próprias, em agentes do regime, delatando e perseguindo seus trabalhadores.

Junto a isso, e não menos importante, o Agente Secreto critica o imperialismo regional, que associa o Nordeste ao atraso e subdesenvolvimento como uma espécie de condição atávica (algo explorado em Bacurau de forma mais “lúdica”). Não por acaso, uma das críticas mais contundentes ao filme veio de um professor da USP, o pesquisador e colunista de O Globo, Pablo Ortellado.

Críticas

Para o colunista, Mendonça Filho faz uma caricatura de uma Recife que, em pleno Carnaval, ofereceria uma “perspectiva libertária setentista que exalta a libido como subversão da norma opressiva”. As imagens de “gestualidades exagerada, multidões descontroladas” e “corpos suados” aparentemente incomodaram Ortellado. Seria de se perguntar, porém, se essa crítica existiria caso estivéssemos tratando do Carnaval numa Rio de Janeiro dos mesmos anos 1970, por exemplo. A opinião deste anônimo colunista aqui, no entanto, é que não.

Isso porque a segunda crítica que Ortellado desfere contra o filme seria uma suposta simplificação “esquemática” entre “um Nordeste popular, tolerante e resistente e um Sudeste capitalista, arrogante, racista e colonizador”. Parece que sentiu, né? Nessa mesma perspectiva, para o crítico, Mendonça Filho “delira com uma ditadura privatista”, num período em que o colunista classifica de “auge do desenvolvimentismo militar”. O delírio, aqui, parece vir do próprio crítico, que enxerga a relação entre o capital privado e estatal na ditadura com os olhos do neoliberalismo privatista, isso sim uma forma de simplificação e completo anacronismo.

Se por um lado na ditadura militar o país passou por um processo de industrialização, que está sendo revertido de forma acelerada nos últimos anos, por outro ele se deu de forma associada ao capital privado, e inclusive subordinado às multinacionais imperialistas. As grandes empreiteiras, como a Odebrecht, tornaram-se as gigantes que são justamente neste período. Grandes empresas automobilísticas, como Ford e Volkswagen, se instalaram na região do ABC Paulista, aproveitando-se da farta mão-de-obra migrante em meio a um descontrolado processo de urbanização. Não por acaso, ao lado desse “desenvolvimentismo”, ampliaram-se as desigualdades sociais, já que o bolo que Delfim Netto defendia que deveria crescer antes de ser repartido, nunca o foi.

Nesta mesma lógica, o colunista critica o que vê como uma “caricatura” a construção do antagonista de Wagner Moura, o alto funcionário do governo militar, Ghirotti, descrito por Ortellado como um “cafajeste que defende, sem qualquer elaboração, injustiças flagrantes e privilégios”. Faltaria aí uma “densidade dramática”. Uma crítica no mínimo estranha em se tratando de um agente da ditadura. Um filme que retratasse o torturador e delegado Fleury, conhecido por seu sadismo e métodos bárbaros de tortura, seria classificado como “caricato”? Ou o presidente da Ultragas, Boilesen, que, além de financiar a Oban, fazia questão de assistir e participar das sessões de tortura nos porões da ditadura por pura perversidade? Felizmente, este teve o fim que mereceu. Mas, enfim, qualquer tentativa de humanizar essas figuras é o que distorceria uma realidade mais bárbara que qualquer ficção.

Um filme incômodo, mas necessário

Voltando ao roteiro. Entre as várias tramas e subtramas de O Agente Secreto, o que mais pulsa e os interliga, ao menos na opinião deste leigo comentador, é justamente a questão da memória. Ou a falta dela. Mais precisamente, a tentativa de se resgatar uma história não contada. Várias histórias. A busca desesperada do protagonista por registros da mãe, seu filho pequeno perguntando sobre a recém-falecida progenitora. E, ao final, num salto temporal para os dias de hoje, a pesquisa sobre o passado, são elementos que podem ser lidos como metáforas da busca por histórias não resolvidas, problemas não solucionados e lacunas não preenchidas.

E essa ponta solta é justamente o incômodo de um país que não acertou suas contas com esse passado. Assassinos e torturadores não punidos, entulhos autoritários que resistem ao tempo, como o famigerado Artigo 142 que deu base à tentativa de golpe bolsonarista. Uma Polícia Militar que incorporou a lógica dos grupos de extermínio à sua atuação institucional.

Numa das cenas finais, um personagem central recebe um arquivo que poderia revelar os detalhes de toda a trama desenvolvida no filme. Ele hesita e guarda esse arquivo armazenado num pen-drive. Vai abri-lo quando chegar em casa? Vai jogá-lo na primeira lata de lixo que encontrar? Ficamos sem saber, gerando uma sensação de incompletude, de uma história inacabada, de tantas vidas perdidas, mães e filhos que tiveram suas vidas dilaceradas sem ao menos o direito de saber suas histórias.

Ao contrário de Bacurau, que oferece uma espécie de catarse, o que temos aqui é um anticlímax, uma sensação incômoda que não poderia ser diferente. O Agente Secreto é uma história, enfim, sobre as histórias que não foram contadas.

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