Conheça a história de como começou a revolução mais importante do século XX na América Latina

O 26 de julho marca o 70º aniversário da invasão do Quartel Moncada. A data é considerada o início da Revolução Cubana, que culminaria seis anos depois com a queda da ditadura de Fulgencio Batista em 1º de janeiro de 1959.

A história do assalto ao Quartel Moncada é considerada um dos eventos históricos mais importantes das lutas sociais e revolucionárias do século XX. Foi uma rebelião contra a ditadura à qual Cuba estava submetida na época, mas, acima de tudo, foi uma rebelião contra os dogmas do possível.

“Um dos maiores legados de Fidel é que ele nos ensinou a transformar o impossível em possibilidade infinita. Com a audácia e a heresia daqueles jovens. Porque quando observamos isso, vemos hoje – talvez com um pouco de naturalidade ou facilidade – como um processo que herdamos. Um processo em Cuba que conhecemos e que nos é ensinado nas escolas há anos. Mas quando olhamos para 1953, percebemos que parecia impossível realizar uma ação como essa que pudesse ser bem-sucedida e, ao mesmo tempo, desencadear tudo o que foi desencadeado a partir daquele momento”, diz Elier Ramirez Cañedo para o Brasil de Fato.

Cañedo é doutorado em história e atualmente é vice-diretor do Centro Fidel Castro. A medida que apresenta os fatos históricos, Elier relembra anedotas sobre sua família. Ele conta que na casa onde cresceu havia um exemplar de “A História me Absolverá” assinado por Fidel. “Era o maior orgulho do meu avô”, diz com um sorriso.

Luis Cañedo García e Elena Martínez, os avós com quem Elier cresceu, estavam entre os primeiros cubanos a receber Fidel nos Estados Unidos quando ele acabara de ser libertado da prisão – pelo assalto ao Quartel Moncada – em 1955 e se preparava para buscar recursos para reiniciar a luta contra a ditadura de Batista.

“Acho que o que esse período mais nos ensina é a importância da fé na vitória e do otimismo. Mas fé e otimismo ativos, não apenas ficar de braços cruzados”, reflete Elier.

O início da rebelião: “A última enxada”

O som metálico e eufórico de sua voz inconfundível ressoava no rádio. Os estúdios da CMQ Radio haviam se tornado uma trincheira onde Eduardo Chibás lançava suas denúncias contra o regime de corrupção e espoliação que reinava na ilha. Mas naquela noite de verão, a voz de Chibás carregava um nervosismo que não era comum nele.

“O tribunal da Inquisição gritou para Galileu: ‘Mentiroso e enganador, apresente a prova de que a Terra se move ao redor do Sol! Galileu não conseguiu apresentar a prova física do fato óbvio e foi condenado, mas continuou repetindo, firme em sua convicção moral: ‘mas ela se move’”, afirmava a voz de Chibas no rádio.

Já nos seus anos de universidade, o drama da história de seu país não era estranho a Chibás. Naqueles anos de efervescência estudantil, ele se envolveu ativamente nas lutas contra o governo despótico de Gerardo Manchado. Inclusive, chegou a participar da campanha pela liberdade do líder estudantil e fundador do Partido Comunista Cubano, Julio Antonio Mella, que, junto com outros líderes de esquerda, havia sido preso por seu ativismo político. Anos depois, em 1934, Eduardo Chibás participou da fundação do Partido Autêntico, um partido que dominaria o cenário político por quase duas décadas.Naquela noite, no 5 de agosto de 1951, seu discurso eufórico ainda estava tocando no rádio: “Há cinco anos, acusei o Ministro da Educação, José Manuel Alemán, de roubar material escolar e dinheiro para o café da manhã e com isso construir um império imobiliário em Miami. O ministro Alemán e todos os seus correligionários entraram na sala gritando: ‘Mentiroso, caluniador, apresente as provas!’ Eu não podia apresentar a prova física de que eles estavam roubando dinheiro do tesouro nacional. Mas eu continuava repetindo, firme em minha convicção moral: Eles estão roubando, eles estão roubando!”.

Já em 1951, a degeneração do Partido Autêntico era completa. O que havia nascido sob o slogan “Cuba para os cubanos” e a promessa de lutar por uma renovação nacionalista e progressista logo se transformou em um verdadeiro aparato de pilhagem e corrupção.

Depois de vários anos fazendo parte da oposição interna, Eduardo Chibás liderou uma corajosa ruptura e fundou o Partido Ortodoxo em 1947. Com o slogan “Vergonha contra o dinheiro”, os ortodoxos se opuseram diretamente ao Partido Autêntico, que governava o país desde 1944, denunciando seus atos de corrupção como também a renúncia aos ideais originais do partido.”No domingo passado, desta mesma tribuna de orientação e combate, apresentei ao povo provas irrefutáveis da enorme corrupção do regime de Prío. Fotografias de escolas e hospitais em situação de miséria, que contrastam com a ostentação das propriedades e palácios de governantes que há pouco tempo viviam na pobreza. No entanto, apesar das contínuas depredações de Machado, Batista, Graus San Martin e Carlos Prío, a sensibilidade moral do povo cubano não foi embotada. Isso diz muito sobre a sensibilidade e a firmeza de suas virtudes. Mas minhas palavras no domingo passado não tiveram toda a ressonância que a grave situação exigia”, lamentou a voz de Chibás.

Eduardo Chibás havia se tornado uma das figuras políticas mais carismáticas e importantes da oposição cubana. O Partido Ortodoxo, seu movimento político, conseguiu reunir milhares de jovens decepcionados com o rumo político que o país estava tomando. Ele conseguiu se posicionar como uma das principais forças que poderiam disputar a presidência do país nas eleições programadas para 1952. No entanto, naquela noite de domingo, 5 de agosto de 1951, Chibas se sentiu cercado pelo poder político do país. Suas fontes não lhe haviam entregado os documentos que lhe haviam sido prometidos para mostrar como o ministro da educação estava roubando dinheiro do material escolar e do café da manhã dos alunos. Naquela noite, em seu programa de rádio, Chibás não suportou a pressão de não poder mostrar as provas mais uma vez.

“Cuba precisa acordar. Mas meu chamado de conscientização talvez não tenha sido alto o suficiente. Continuaremos clamando pela consciência do povo cubano (…). Cuba tem um grande destino reservado… mas precisa realizá-lo”, exclamou Chibás, em frente ao microfone, com uma voz que se tornara frágil.

Fora da Rádio CMQ, a noite estava tomando conta de Havana. No final de seu discurso, Chibás deu uma pitada forte em seu cigarro, fechou os olhos e apertou os molares. Do bolso interno do casaco, ele pegou seu revólver. O som seco e metálico com que Chibás disparou seu revólver retumbou pelos estúdios do edifício. A morte do principal líder da oposição ao regime mergulhou o país inteiro em um imenso estado de choque. Seu suicídio desesperado foi o “último tiro” com o qual ele pretendia despertar a consciência de sua amada Cuba.

Não é uma revolução, é um golpe

Mergulhado em um profundo impacto político, o país estava se encaminhando para uma eleição que, na época, todos os analistas consideravam um momento decisivo. Os eventos políticos reuniam centenas de trabalhadores, camponeses e estudantes que organizavam campanhas eleitorais em todos os bairros e localidades. A enorme popularidade de Eduardo Chibas e seu posterior suicídio tornaram o Partido Ortodoxo o favorito para as eleições.

Os ortodoxos apresentavam um programa democrático e nacionalista. Eles pediam a abolição do latifúndio e a distribuição de terras para os camponeses pobres. O desenvolvimento industrial do país. A nacionalização dos serviços públicos e se autoproclamavam defensores da justiça social e contra a corrupção. Esse programa fez soar o alarme tanto das minorias ricas do país quanto do governo dos EUA, que não gostou do fato de que uma força política que não estava sob seu controle pudesse vencer as eleições.

Em novembro de 1951, num bairro humilde chamado Cayo Hueso, no município de Centro Habana, o Partido Ortodoxo realizou eleições internas para decidir quem seria seu candidato a uma cadeira na Câmara dos Deputados (Parlamento). Entre os aspirantes, destacou-se um jovem advogado, recém-formado em direito pela Universidade de Havana, graças à sua oratória inflamada e à sua incansável capacidade de trabalho. Fidel Castro foi eleito como candidato do Partido Ortodoxo para concorrer a uma vaga no Parlamento. No entanto, sua campanha como candidato não durou muito tempo.

A eleição geral foi marcada para 1º de junho de 1952. Mas quanto mais se aproximava a data das eleições, mais nervosismo rondava o mundo empresarial e o alto comando militar. Todas as pesquisas davam ao Partido Ortodoxo a vitória incontestável nas eleições, deixando o Partido Autêntico em segundo lugar e a candidatura do General Fulgencio Batista em terceiro. Este último contava com enorme apoio entre as Forças Armadas e tinha ótimos vínculos com a Embaixada dos EUA.

“Batista é uma figura extremamente complexa na história cubana. Embora seus pais tenham lutado pela independência, ele provinha de uma família muito pobre ao ponto de entrar para o Exército como meio de subsistência. Chegou ao posto de coronel e, entre 1934 e 1940, foi o principal responsável pela repressão aos comunistas e socialistas. Depois se tornou presidente – constitucionalmente eleito – entre 1940 e 1944”, resume Elier Ramírez Cañedo.

Finalmente, no dia 10 de janeiro de 1952 – apenas quatro meses antes das eleições gerais – Fulgencio Batista liderou um golpe de Estado contra o governo constitucional. Com o argumento de que somente o Exército poderia assumir o governo no contexto da grave crise que afetava o país. A intenção de Batista era apresentar o golpe como uma “revolução”. No entanto, Batista suspendeu as eleições gerais e todas as garantias constitucionais.

“A primeira resposta de Fidel ao golpe de Estado foi uma resposta legal. Fidel, como advogado, foi à Suprema Corte e demonstrou a natureza inconstitucional desse golpe, como ele rompeu com toda a ordem constitucional do país. E como também era legal, de acordo com a Constituição, ter uma resposta armada. Para realizar uma revolução em Cuba contra essa ordem imposta pela força”, explica Elier Ramírez Cañedo, acrescentando que “Fidel argumenta contra a ideia que Batistas quer apresentar e diz: ‘isso não é uma revolução, é um golpe’”.

Resistência ao golpe

Desde o início do golpe, Fidel adotou uma atitude muito crítica em relação à liderança do Partido Ortodoxo. Ele acusou a agremiação de não ser fiel ao legado de Chibas e de não tomar medidas para resistir ao golpe.

“Fidel percebeu que a liderança do partido estava apenas emitindo comunicados contra o golpe, mas não estava trabalhando para mobilizar o povo. Enquanto o Partido Autêntico havia entregado o poder quase sem nenhuma resistência”, diz Frank Josué Solar ao Brasil de Fato.

Solar é um jovem e prolífico pesquisador cubano. Ele tem doutorado em história e é chefe do departamento de história da Universidade de Oriente. Há anos ele vem pesquisando a história dos movimentos revolucionários em Cuba. Para ele, é importante ressaltar que, apesar da paralisia das principais forças políticas do país, o povo cubano não se resignou diante do golpe. Em Santiago de Cuba, ocorreram as primeiras mobilizações contra Batista, que depois se espalharam pelo resto do país.

“Principalmente dentro do Partido Autêntico, começaram a se formar organizações clandestinas armadas. Mas nenhuma delas cumpriu a promessa de iniciar a resistência armada. Sempre havia rumores de que iria fazê-lo, mas o tempo passou e não deu em nada. Enquanto isso, a maior parte da liderança dos ortodoxos estava paralisada ou, na melhor das hipóteses, dizia que tinha que esperar que os autênticos fizessem algo antes de agir”, acrescenta.

Nesse contexto, um grupo de jovens se rebelou contra a inércia política dos principais partidos que estavam de braços cruzados diante do golpe de Estado. No dia 1º de maio de 1952, em meio às mobilizações do Dia Internacional dos Trabalhadores, Fidel Castro conheceu Abel Santamaria, com quem 15 meses depois lideraria o assalto ao Quartel Moncada.

“Fidel, seus companheiros e todos os que o acompanharam não se viam como algo diferente do Partido Ortodoxo, ou como um novo movimento à parte da ortodoxia. Mas como a base da ortodoxia, passando por cima da liderança e sendo leais ao legado de Chibas. É assim que Fidel e seus companheiros se veem, ou seja, é a verdadeira ortodoxia de Chibas e não a liderança que permaneceu, que é tímida, que é passiva, que é moderada, que não quer confrontar, que não quer fazer uma luta armada contra a ditadura”, conclui Frank Josué Solar.

O assalto

Durante semanas, o apartamento de Abel Santamaria tornou-se o ponto de encontro dos jovens que estavam sendo recrutados para formar a resistência à ditadura. Nesses dias, Abel e Fidel entrevistaram quase 1.200 jovens – a grande maioria proveniente dos setores sociais mais pobres – na mais estrita clandestinidade. Muitos deles vinham da juventude ortodoxa, mas jovens militantes do Partido Comunista – como Raúl Castro, irmão de Fidel – também se juntaram a eles.

Organizaram o grupo de combatentes em células de não mais de 10 pessoas. Essas células não se conheciam entre si. Enquanto o financiamento de todos os preparativos – a compra de uniformes, armas, transporte etc. – era feito com as contribuições solidárias de cada um dos participantes. Pessoas muito humildes que vendiam o pouco que tinham com a convicção de contribuir para o movimento.

“No início, a ideia de Fidel e Abel era formar um grupo próprio que lhes permitisse se envolver em um processo mais amplo de resistência armada. Mas, com o passar das semanas e a constatação de que as promessas de revolta dos grupos existentes eram repetidamente descumpridas, eles decidiram agir por conta própria”, explica Solar.

“A ideia era tomar o quartel (Moncada), tomar as armas – porque a ideia de Fidel não era tomar um quartel para tomar o poder. Era tomar o quartel para desencadear e iniciar uma rebelião popular armada. Com isso, ele rompeu com todos os esquemas anteriores, mais conspiratórios, mais vanguardistas, que pensavam que com um grupo de civis seria possível tomar alguns centros de poder e, com isso, controlar o poder. Não. A ideia de Fidel era iniciar uma insurreição popular armada. E para isso ele teve que tomar um quartel com armas para entregá-las ao povo”, acrescenta.

A noite escolhida foi 26 de julho porque era Carnaval. Isso permitiu que o contingente de combatentes se deslocasse para a cidade de Santiago sem levantar suspeitas. Além disso, o povo de Santiago havia demonstrado uma enorme capacidade de lutar contra a ditadura ao realizar grandes mobilizações.

O plano foi planejado com maestria e perfeitamente cronometrado. Nas primeiras horas do dia 26 de julho de 1953, todos os combatentes se reuniram na fazenda Siboney, a poucos quilômetros de Moncada. Era a primeira vez que todos os membros se viam. Munidos de coragem, eles ouviram o plano pela primeira vez. Fidel repassou os detalhes. Quando estavam prestes a sair, um membro do grupo, o poeta Gómez García, leu o “Manifesto de Moncada”.

No silêncio da noite, suas palavras ressoaram: “Camaradas, podemos vencer em algumas horas ou ser derrotados; mas de qualquer forma, camaradas, ouçam-me, o movimento triunfará!”.

O grupo de combatentes foi dividido em três grupos. Abel Santamaria ficou encarregado de tomar um prédio próximo ao Moncada, enquanto Fidel assumiu a tarefa de entrar no quartel militar. Vestidos como oficiais, eles se dirigiram ao objetivo em 16 carros. Às 5h20 da manhã, o grupo liderado por Fidel chegou ao destino. Tudo estava indo de acordo com o planejado até que um imprevisto aconteceu no caminho. Uma patrulha de dois soldados que passava pela área inesperadamente se chocou com o grupo de Fidel e abriu fogo, alertando o Exército de que algo estava acontecendo. O fator surpresa foi subitamente frustrado.

Cerca de 48 combatentes conseguiram se esconder e depois fugir com a ajuda do povo de Santiago. 9 agressores caíram em combate e cerca de 52 foram capturados. A ditadura ordenou o assassinato ilegal de vários dos combatentes que haviam sido presos. Ao mesmo tempo, foi desencadeada uma enorme repressão em todo o país.

Condene-me, não importa. A história me absolverá

“Raúl Castro diz que nos primeiros momentos eles não sabiam quem havia sobrevivido. Fidel não sabia se Raúl havia sobrevivido e vice-versa. Quando eles se encontraram pela primeira vez fora da prisão, Raúl diz que ficou impressionado. Porque ele viu um homem que havia saído de uma vitória. De cabeça erguida, transmitindo otimismo, transmitindo confiança. Mesmo sem saber o que aconteceria com suas vidas”, relata Elier Ramírez Cañedo.

Fidel Castro atua como seu próprio advogado no processo contra ele. Sem a possibilidade de consultar provas, revisar materiais ou manter comunicação com seus colegas. É por meio de sua própria defesa, em sua alegação, que Fidel está determinado a transformar sua derrota militar em um triunfo político. Sua alegação fica conhecida com o nome de “A história me absolverá”.

“A história me absolverá” se torna o documento político inicial da revolução. Uma grande denúncia do regime militar da ditadura de Batista, uma das mais sangrentas da história da América Latina. Lá, Fidel acusa o regime que o estava processando e apresenta um programa para os pobres e trabalhadores de Cuba”, acrescenta Cañedo.

Em meio a essa batalha desigual, Fidel foi condenado a 15 anos de prisão. Foi a pressão popular que conseguiu tirá-lo do cárcere em 1955. Em seu apelo perante o tribunal, Fidel explicou o que se tornaria uma constante em sua atividade política: “Para o povo, cujos caminhos de angústia são pavimentados com enganos e falsas promessas, não íamos dizer: ‘Vamos lhes dar’, mas: ‘Aqui o tem, lute agora com todas as suas forças para que a liberdade e a felicidade sejam suas!’”.

Informações: Brasil de Fato.

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Última Atualização: 26/07/2024