A era digital renovou o conceito da divisão internacional do trabalho. No ambiente transnacional, a globalização neoliberal separou alguns países extratores e processadores de dados dos demais que simplesmente se submetem à condição de ofertantes de dados brutos. Essa relação de trocas desiguais entre dados brutos e processados restabeleceu outro estágio do subdesenvolvimento capitalista. Com a dependência externa imposta pela dinâmica desregulada das grandes corporações estrangeiras de tecnologia, as big techs, o moderno modelo de negócios da datificação tornou-se a nova fundamentação da riqueza.
Nos Estados Unidos, por exemplo, sete entre as dez maiores empresas são big techs: Alphabet (Google), Amazon, Apple, Meta, Microsoft, nVIDIA e Tesla. No passado da era industrial, as dez maiores empresas estadunidenses do ano de 1980 eram Esso, Ford, General Motors, Atlantic, Texaco, Philco, Goodyear, Cargill, IBM e General Electric.
Naquela época, o atraso de um país era notado pela inexistência de empresas industriais, sendo a relação de troca desigual localizada na pauta de exportação assentada em commodities primárias, com ênfase em recursos naturais e baixo custo de mão de obra. Na era digital, os dados brutos assumiram a forma de commodity. Isso porque, neste primeiro terço do século XXI, a datificação tem sido o meio pelo qual a governança de populações e território que predomina no mundo tem sido objeto de disputa na esfera pública cada vez mais tomada por interesses privados dominantes.
Sobre o processo atual da desinformação e difusão do discurso de ódio e debates superficiais nas redes sociais e na mídia, o filósofo alemão Jürgen Habermas destacou a novidade da dessintonia dos conceitos de razão comunicativa e democracia deliberativa (Teoria da Ação Comunicativa, 1981). Pela cultura de massa da era digital, a autenticidade do tempo e espaço na disputa das ideias que fundamentou a esfera pública nas tradicionais sociedades urbanas e industriais tem sido corroída pela nova razão comunicativa sedimentada na superação da razão iluminista da lógica instrumental.
Caso queira escapar dessa sina, o Brasil precisa investir na sua soberania digital.
Tudo isso tem contribuído para o crescente comprometimento da legitimidade da democracia liberal em transformar a realidade das maiorias sociais e eleitorais. O que se assiste é o novo contexto de comunicação das massas vulgarizadas pela oposição à avaliação racional dos conteúdos expostos pela centralidade da internet, sobretudo quando predomina o iletramento digital.
Até então, a visão iluminista asfaltava a internacionalização da organização e uso de dados oficiais por meio dos institutos nacionais de estatística. Desde 1853, com a realização do primeiro congresso de estatística na Bélgica, tornou-se possível o movimento de harmonização conceitual e padronização estatística dos dados a partir da perspectiva do Norte Global. Dessa forma, as ideias e as opiniões passaram a estar racionalmente assentadas em evidências da realidade produzidas por institutos nacionais de estatísticas a servir de orientação de decisões e políticas públicas.
Conduzida pela política de privacidade das gigantescas corporações transnacionais detentoras de descomunal capacidade tecnológica, a absorção e a extração dos dados pessoais e institucionais têm acontecido naturalmente. O resultado tem sido a reprodução ampliada das trocas desiguais entre países e intrapopulação. Pela ausência da consciência nacional sobre o novo estágio do subdesenvolvimento, o receituário neoliberal desregulatório da internet opera em países sem infraestrutura nacional de dados e ampla massificação do iletramento digital.
Com a hiperindustrialização dos serviços, o capitalismo de vigilância opera por meio do capital que avança pelo trabalho tanto pelo sub-remunerado como pelo não pago (gratuito) em servidores da nuvem (Yanis Varoufakis em Tecnoglobalismo: O Sucessor Silencioso do Capitalismo, 2024). A computação em nuvem que provém do armazenamento e memorização de uma gigantesca e pluralidade de dados brutos decorre da extração gratuita permitida pelo acesso universalizado da internet.
Seu processamento com aprendizado de máquinas consolida o modelo de negócio gerador de lucros extraordinários com a datificação. Atualmente, o fluxo dos dados produzidos no mundo supera o aporte no PIB de responsabilidade da corrente dos bens convencionais.
Sem salvaguardas digitais, o livre fluxo dos dados conformou o mercado globalizado altamente rentável a converter o próprio dado em commodity. O Brasil assume a condição de quarto maior mercado de internet e de acesso móvel no mundo, em grande medida operada pelas big techs estrangeiras e fortemente dependente das importações.
Sem informações oficiais precisas, pouco se sabe até hoje a respeito da natureza e dimensão do mercado digital, onde as grandes corporações de big tech operam livres e desreguladamente. A ausência da transparência parece esconder as informações sobre produção, vendas, ocupações, contribuição na tributação e dependência tecnológica, entre outras variáveis.
O processo de extração tecnológica dos dados brutos conduzido por corporações transnacionais de tecnologia impõe outra natureza no valor dos negócios. Os registros pessoais e institucionais tradicionalmente armazenados assumiram a forma de negócio induzido como transações financeiras, cada vez mais adequado como rentismo dos dados.
O contido conhecimento a respeito do conceito da economia digital até agora permite que o subdesenvolvimento se reproduza pelo ecossistema de dados a arruinar os laços sociais cada vez mais devastado por relações de trocas nos países meramente exportadores de dados brutos. Essa nova fonte de receita operada por big techs privadas compõe o faturamento superior ao PIB em vários países a seguir praticamente não regulada e tributada.
O resultado tem sido a potencialização de duas modificações históricas de enormes repercussões mundiais. A primeira resulta do processo de monopolização de conteúdos e informações extraídas da internet que, guardada a devida proporção, poderiam encapsular o mundo da era digital em uma nova Idade Média. Como se sabe, a antiga Idade Média durante os séculos V a XV, somente intermediada pela Idade de Ouro Islâmica nos séculos VII a XIII, concedeu extraordinário poder à Igreja Católica.
A segunda possibilidade de modificação histórica de repercussão mundial decorre do poder da grande e monopolista empresa privada a reverter o marco das relações internacionais. Tanto em 1648, com o Tratado de Westfália, que emergiu do fim da Guerra dos Trinta Anos, quanto em 1944, com o Acordo de Ialta ao fim da Segunda Guerra Mundial, o governo de populações e a partilha dos territórios obedeciam a certa ordem protagonizadora da hierarquia mundial a partir do Norte Global.
A montagem do Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados concederia horizonte à estratégia do governo brasileiro de reafirmar a soberania dos dados. Romperia, dessa forma, com a condição de produtor de commodities de dados, enfrentando a outra forma de subdesenvolvimento. •
Economista, presidente do IBGE.
Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nova commodity?”.