A condecoração do governador Cláudio Castro com a Medalha do Mérito da Defensoria, entregue pela Administração Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro no dia 30 de maio, provocou perplexidade e revolta entre defensores de direitos humanos, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e membros da própria instituição.
A crítica também parte de dentro: “A Defensoria deve caminhar com o povo”. Defensoras e defensores públicos que atuam nas frentes de acolhimento às vítimas afirmam que a escolha da homenagem mancha a história da instituição e fere o compromisso ético de seus profissionais, que há anos enfrentam riscos pessoais e pressões políticas para dar amparo jurídico e humano às famílias afetadas pela violência de Estado.
Para os signatários de uma nota pública divulgada nesta semana [leia abaixo na íntegra], a homenagem rompe com a missão constitucional da Defensoria Pública e desrespeita diretamente as vítimas da política de segurança implementada por Castro, responsável por algumas das operações policiais mais letais da história recente do estado, com saldo trágico de dezenas de mortos, majoritariamente negros, pobres e moradores de favelas.
Durante a gestão de Cláudio Castro, foram registradas ao menos 160 chacinas em operações policiais, além da morte de 9 crianças. A maior parte dessas ações ocorreu sem qualquer forma de responsabilização ou pedido público de desculpas, o que, segundo os autores da nota, evidencia o desprezo do governo do estado pelas vidas assassinadas e o silêncio cúmplice das instituições.
Abaixo, leia a íntegra da nota pública. É possível assinar por aqui.
NOTA PÚBLICA EM DEFESA DA MISSÃO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA E CONTRA A HOMENAGEM AO GOVERNADOR CLÁUDIO CASTRO
No dia 30 de maio de 2025, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por meio de sua Administração Superior, concedeu a Medalha do Mérito da Defensoria ao governador Cláudio Castro. Esse gesto, vindo de uma instituição cuja razão de existir é a defesa dos direitos humanos e o acesso à justiça, causa profunda perplexidade, indignação e repúdio.
Dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (GENI) revelam que Cláudio Castro é responsável por três das cinco operações policiais mais letais da história do estado do Rio de Janeiro: Jacarezinho (2021), com 28 mortos; Vila Cruzeiro (2022), com 24 mortos; e Complexo do Alemão (2022), com 17 mortos. Além dessas, outras operações resultaram em chacinas emblemáticas, como as ocorridas no Salgueiro, em Manguinhos e na Maré. No total, foram 160 chacinas ocorridas em operações policiais durante o tempo em que Castro esteve no cargo de chefe do Poder Executivo. Todas essas ações tiveram em comum o uso desproporcional da força e o impacto devastador sobre populações negras, pobres e faveladas.
O Instituto Fogo Cruzado, por sua vez, revela que durante a gestão de Claudio Castro à frente do Governo do Estado, desde que assumiu como interino incluindo o período em que assumiu o cargo como governador eleito, 9 crianças perderam a vida em ações policiais. Em nenhum desses casos houve sequer pedidos públicos de desculpas, muito menos medidas efetivas de reparação às famílias atingidas. O silêncio institucional frente a essas mortes revela o desprezo do governo por vidas que, aos olhos do Estado, parecem descartáveis.
Enquanto isso, a própria Defensoria Pública do Rio de Janeiro teve papel fundamental no acolhimento das famílias atingidas pela violência institucional, realizando atendimentos emergenciais, acompanhamentos jurídicos e escuta qualificada nos territórios mais afetados. Atuou com coragem em contextos extremamente adversos, enfrentando riscos pessoais, pressões políticas e o sofrimento de lidar diariamente com os desdobramentos da violência de Estado.
Homenagear o governador Cláudio Castro, portanto, não é um ato isolado ou meramente simbólico. É uma escolha política, que fere profundamente a história de resistência da população usuária da Defensoria, mancha a reputação da própria instituição e desrespeita o compromisso de milhares de defensoras e defensores, servidoras e servidores, estagiárias e estagiários, além de terceirizadas e terceirizados, que vêm, com sacrifício e integridade, cumprindo sua missão constitucional.
Diante disso, nós, abaixo-assinados — organizações da sociedade civil, movimentos sociais, defensoras e defensores de direitos humanos, acadêmicos e personalidades públicas —, afirmamos publicamente:
• Nosso repúdio à concessão da Medalha do Mérito da Defensoria ao governador Cláudio Castro;
• Nosso reconhecimento e apoio à atuação de profissionais da Defensoria Pública que continuam fiéis à sua missão;
• Nosso compromisso com a denúncia de todas as formas de violência institucional e políticas de segurança que tratam territórios populares como territórios inimigos;
• Nosso engajamento permanente na defesa da justiça, da dignidade humana e da vida — sem exceções.
A Defensoria Pública deve caminhar com o povo, especialmente com aqueles que são historicamente alvos da violência do Estado. Qualquer desvio dessa direção é um grave alerta para todos os que acreditam na democracia, na justiça e nos direitos fundamentais.
Rio de Janeiro, 25 de junho de 2025
Assinam esta nota:
Coletivo RJ Memória Verdade, Justiça e Reparação
Comissão Popular de Direitos Humanos RJ
CPAPEC: Coletivo de Pesquisa Ativista em Psicanalise, Educação e Cultura
EFAB: Escola de Formação Alessandro Barata
Escola Psicanalítica da Escuta Periphérica
FAFERJ: Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro
FLEA: Formação Livre em Esquizoanálise
Frente contra a Barbarie
GENI: Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense / UFF
Grupotência / UFF
IEC: Instituto de Estudos da Complexidade
Instituto Fogo Cruzado
Laço Analítico/Escola de Psicanálise
Levante Popular da Juventude
Mães de Manguinhos
Mães Sem Fronteiras do Chapadão
MBP: Movimento Brasil Popular
MCMT: Mulheres Cuidando e Movimentando Territórios
MNLM: Movimento Nacional de Luta pela Moradia
Movimento de mães e familiares de vítimas da violência letal do Estado e desaparecidos forçados
Movimento Moleque
MTD: Movimento dos Trabalhadores Sem Direito
MTST: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
MUCA: Movimento Unido dos Camelôs
NUPP: Núcleo de Psicanálise e Política / UFF
Ocupação Psicanalítica / UFRJ – UFMG – UFES – UFRB
Projeto Saúde Mental nas Periferias / SP
Psi Maré
PUD: Psicanalistas Unidos pela Democracia
SAJUFF: Observatório Nacional de Saúde Mental, Justiça e Direitos Humanos da UFF
URDIR: Universidade Resistência e Direitos Humanos – núcleo de ensino, pesquisa e extensão da UERJ
Leia também: