Nomear o indizível, redizer o autoritarismo contemporâneo

por Eliseu Raphael Venturi

A tarefa de nomear um fenômeno de posições nas relações políticas exige mais do que taxonomia — requer precisão simbólica que, geralmente, uma expressão fechada, embora funcione na comunicação, acaba por dissolver sentidos envolvidos na posição dos sujeitos aderentes àqueles discursos. Talvez mais importante seja mesmo uma capacidade de dizer o que elas tentam não parecer.

Por isso, algumas conjugações e adjetivações parem apropriadas para pensar os modos de operação dessa política que se apresenta em trajes democráticos, mas carrega no gesto o desejo de revanche.

O primeiro deles é autoritarismo emocional. A política que apela não à razão pública, mas ao ressentimento íntimo. Não ao argumento, mas à ferida aberta. Sua força está em mobilizar afetos pré-políticos — medo, raiva, orgulho ferido — para justificar o recuo das garantias coletivas. Nesse cenário, a escuta é substituída por gritos, e o dissenso se converte em ameaça.

Outro nome possível: reacionarismo performático. Uma política que encena sua própria insubordinação, mesmo quando ocupa o centro do poder. Atua como se fosse oposição, mesmo sendo governo. Dramatiza a decadência do mundo para poder salvá-lo com punhos de ferro. É a política do espetáculo do colapso — uma nostalgia encenada que transforma o presente em ameaça e o passado em refúgio idealizado.

Em terceiro lugar, surge o populismo revanchista. Não se trata apenas de uma liderança carismática ou da retórica do “nós contra eles” — mas de uma vontade explícita de punição. Esse populismo não deseja inclusão, mas correção. Quer silenciar os que ousaram falar, revogar os direitos que permitiram emergências inesperadas, e inverter os marcos da memória coletiva em nome de uma justiça ressentida.

Há ainda o conservadorismo insurrecto — um paradoxo necessário. Essa corrente não deseja conservar, mas reverter. Ela se move contra o pacto democrático em nome de uma ordem simbólica imaginária, onde tudo estava no lugar “certo”. Opera como insurgência, mas para reimpor hierarquias. O que se apresenta como resistência é, na verdade, um impulso de restauração autoritária com verniz rebelde.

Por fim, o fundamentalismo identitário: aquele que fixa o sujeito a uma essência nacional, religiosa, social ou étnica, excluindo o diferente como ameaça ontológica. Esse fundamentalismo se disfarça de defesa da família, da fé, da tradição — mas na prática, organiza a linguagem para negar a existência de tudo o que escapa ao seu regime de pureza.

Esses nomes alternativos não são meros exercícios de estilo. Eles nos ajudam a capturar o núcleo ético e afetivo dessa política. Uma política que opera a partir de um conjunto articulado de ideias e estratégias: um nacionalismo exaltado, que transforma a pátria em vítima; um moralismo punitivo, que simplifica o mundo entre inocentes e inimigos; um antiinstitucionalismo seletivo, que desacredita as regras quando estas não favorecem seus aliados; uma desconfiança metódica da ciência e da imprensa, em nome de verdades “reveladas”; e, acima de tudo, um ressentimento simbólico, que transforma perda de privilégio em linguagem de opressão.

Esse campo ainda combina economia liberal com valores autoritários — liberdade de mercado, mas controle sobre corpos, saberes, afetos. E o faz através de uma performance de vitimização: apropria os signos da exclusão para se apresentar como o verdadeiro injustiçado, o silenciado, o censurado.

Talvez a maior astúcia dessa tendência política atual seja sua capacidade de escapar da nomeação. Por isso, nomear importa. Não se trata de rotular, mas de desvelar.

É preciso dizer o que esse discurso faz, como ele se move, o que ele oculta sob a gramática da liberdade. Dizer “tendência política atual” é um começo. Mas em tempos em que o léxico é campo de guerra, encontrar os nomes certos é também uma forma de resistência simbólica.

Afinal, quem nomeia não apenas descreve o mundo: delimita o possível, traça as margens do comum, restitui à linguagem a sua função política. E, com ela, reabre o espaço para aquilo que o autoritarismo quer interditar: a convivência na diferença.

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.

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Last Update: 10/06/2025