A principal razão para que as sociedades aceitem as restrições do Estado consiste em que este garanta os direitos dos cidadãos. Esta é a pedra fundamental do Estado republicano e democrático, o seu princípio e fim. Isto porque, se a sociedade fosse deixada ao seu bel-prazer, se veriam o domínio dos mais fortes e a instauração do espetáculo da violência, da devassidão, da corrupção e da miséria. O Estado republicano e democrático tem o dever de inibir a violência e o domínio dos mais fortes e, além de garantir a liberdade, deve prover a sociedade com bem-estar, equidade e justiça.

A atual legislatura do Congresso Nacional, sob o comando de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, é uma das mais afoitas da história em promover abusos e privilégios, além de violar direitos. Basta citar alguns exemplos notórios: o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, a tentativa de criminalizar os usuários de drogas, as investidas contra os movimentos sociais, a desavergonhada iniciativa de anistiar os partidos, e por aí vai.

Mas o mais escandaloso e inescrupuloso abuso do Congresso está nas emendas secretas. Na medida em que essas emendas sonegam informações sobre sua finalidade, seu destino, sua rastreabilidade, sua fiscalização e a prestação de contas da sua execução, representam um golpe contra a Constituição, principalmente contra o artigo 37. Ele determina que a administração direta ou indireta de qualquer um dos Três Poderes, nas esferas da União, dos estados e dos municípios, deve obedecer aos “princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Todos esses princípios são violados pelo tal orçamento secreto.

As emendas secretas são atos desonestos e contrários ao interesse público, aos interesses de todos os cidadãos e cidadãs. Ao atentar contra o interesse público e violar a Constituição, os deputados e senadores que validam essa prática cometem crime de responsabilidade.

Em uma república democrática, o poder é exercido em nome do povo. Ao agir contra os direitos da cidadania sacramentados na Constituição, os senadores e deputados quebram o pacto com os eleitores e, consequentemente, perdem a própria legitimidade política. Trata-se de crime de responsabilidade por se configurar como um crime político-administrativo grave, mediante conduta lesiva e indesejável dos parlamentares, que deveriam ser os primeiros a zelar e salvaguardar a Constituição e a ordem jurídica. Não se trata de um mero erro interpretativo. É uma ação deliberada, visando auferir benefícios políticos e, quiçá, benefícios pecuniários, já que nada se sabe dessas caixas-pretas. Os parlamentares deveriam ser punidos de alguma forma. Mas, infelizmente, o Congresso é o reino dos privilégios, dos engodos e da impunidade.

O Congresso escuda-se em duas palavras contidas na Constituição para cometer abusos e violar direitos. Uma é mal interpretada e a outra, malposta. A Carta Magna diz que os Poderes são “independentes e harmônicos”. A palavra “independentes” é mal interpretada, pois não existe independência absoluta entre eles. Os federalistas norte-americanos, fundadores do constitucionalismo republicano-democrático moderno, foram enfáticos em dizer que cada poder deve exercer as suas funções precípuas, mas que mantêm uma relação de ingerência parcial de um em relação às funções do outro.

A palavra malposta é a que se refere à ideia de que são “harmônicos”. Não são nem devem ser harmônicos. Os poderes são conflitivos pelo princípio dos freios e contrapesos, pois um deve limitar os abusos de poder do outro. James Madison, redator da Constituição dos EUA, é lapidar em afirmar que se deve dar a cada um dos poderes “os meios constitucionais necessários e os motivos pessoais para resistir aos abusos dos outros”. A ambição deve controlar a ambição, sabendo que não se trata de algo lisonjeiro à natureza humana. Mas a própria existência do Estado é a maior crítica à natureza humana.

No caso concreto, o Supremo Tribunal Federal tem o dever de salvaguardar a Constituição e impedir que ela seja violada pelos demais poderes. Quando o ministro Flávio Dino estabelece regras para as emendas parlamentares, está acionando um comando constitucional de controle contra outro poder que viola a Constituição. O STF não só tem o direito de colocar freios aos abusos do Congresso, mas tem o dever de fazê-lo. Querer retaliar a Corte, ameaças recorrentes dos chefes das duas Casas Legislativas, é mais um abuso inaceitável do Congresso, dos seus dirigentes e dos deputados e senadores que embarcam nessas ilegalidades e imoralidades.

Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No reino da imoralidade’

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Última Atualização: 15/08/2024