Inaugurado há mais de cem anos, o Canal do Panamá conecta 170 países, 2 mil portos e 180 rotas marítimas, além de gerar milhares de empregos e permitir o transporte de milhões de toneladas das mais diversas mercadorias. Estratégica para o mercado internacional, a administração do gigantesco complexo cabe a uma das menores nações do mundo, uma vez que, desde 2000, o governo panamenho controla o espaço, após a assinatura de um tratado com os Estados Unidos, principal financiador da construção do famoso corredor interoceânico.
“O que poucos sabem é que esse acerto foi uma conquista de uma luta de mais de quatro décadas de jovens, estudantes, profissionais e movimentos sociais que exigiam que no Panamá fosse hasteada uma só bandeira. Estávamos sob a ditadura de Omar Torrijos, de caráter repressor, mas que promoveu mudanças sociais como a reforma agrária e a construção de escolas”, lembra o economista Omar Sandino.
Exatamente esse acordo, estabelecido ainda na década de 70 do século passado pelos presidentes da época, foi colocado em xeque por Donald Trump, que promete retomar o controle do canal, à força, se preciso. Dias depois de o futuro presidente dos EUA reclamar das taxas alfandegárias e da suposta influência chinesa na área, parlamentares republicanos apresentaram um projeto para a compra do canal, que não está à venda. “Há preocupação devido às ameaças, mas não medo. O povo panamenho estará unido em torno desta causa. Sinto que a guerra maior de Trump é com a China. Somos um país neutro, com relações diplomáticas com todas as nações”, afirma Samuel Oviedo, empresário panamenho que mora na Flórida, mas mantém contato permanente com familiares em sua terra natal. A construção do canal, lembra Oviedo, denunciada mais tarde pelo emprego de mão de obra escravizada, custou a vida de mais de 20 mil trabalhadores. Durante os anos de administração norte-americana, o acesso a muitos setores era proibido aos panamenhos.
O atual presidente do país, José Raul Mulino, reagiu às ameaças de Trump. Mulino ressaltou a soberania do Panamá e a importância do canal para a economia local. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o empreendimento gera mais de 50 mil empregos diretos e indiretos e responde por 23% da arrecadação federal. “Obviamente, as declarações de Trump nos deixaram em alerta. Somos a empresa mais relevante do país e boa parte da sociedade nos vê como exemplo”, afirma o capitão de Marinha Rogelio Adan, que trabalha há dez anos dando suporte e garantindo a segurança das embarcações. A respeito da suposta presença massiva de chineses, diz não entender a origem dos boatos. “Qualquer um que for ao local perceberá que isso não faz sentido.”
Os panamenhos controlam a passagem há 25 anos
Há, claro, críticas à administração do canal e à aplicação da receita gerada pelo fluxo de navios. “Circulam dois tipos de opinião, uma de viés nacionalista, de unidade, para nos colocar contra a ingerência estadunidense. Outra acredita que a situação foi provocada pelo mau uso do dinheiro e da pouca transparência dos diversos governos panamenhos na aplicação desses recursos”, comenta o advogado Roberto Lucero. “Por esse motivo, muitos dizem que não vão defender uma empresa que só serve às elites nacionais.”
Uma das imagens em circulação nas redes sociais mostra um grupo de conselheiros e empresários. Abaixo, pergunta-se se eles estarão na linha de frente contra uma possível investida externa. O canal funciona como um ente autônomo, espécie de empresa pública independente ligada ao Estado.
O Panamá foi o último país da América Latina a sofrer uma invasão dos Estados Unidos, em 20 de dezembro de 1989. Na ocasião, sob o pretexto da morte de um soldado estadunidense em território panamenho e do fato de a população viver sob ditadura, desembarcaram 25 mil soldados, segundo dados extraoficiais. “Estava em casa quando começou a invasão, víamos muito fogo. Meu esposo era militar da força aérea e foi morto em combate. Pouco se fala desses homens que defenderam a pátria”, recorda a engenheira Trinidad Ayola, presidente da Associação de Familiares e Amigos das Vítimas de 20 de Dezembro.
Até hoje não se sabe quantos panamenhos foram mortos durante a invasão e presença das forças norte-americanas até meados de 1990. A associação estima ao menos 350 baixas, além de outros 5 mil feridos ou afetados pela operação militar. “A presença dos Estados Unidos deixou muitas sequelas. Existem, inclusive, zonas entre o Atlântico e o Pacífico contaminadas por dejetos radioativos e químicos que causam danos humanos e ambientais até hoje. Durante a Segunda Guerra Mundial, chegamos a abrigar mais de 130 bases estadunidenses, dada a nossa posição geográfica”, observa o historiador Gilberto Marulanda. “Desde a última invasão, os grupos mais conservadores e neoliberais se impuseram e nos tornamos uma das nações mais desiguais do mundo.”
Segundo o Ministério da Economia, um em cada cinco cidadãos vive em situação de pobreza. O Panamá é um dos principais paraísos fiscais do mundo e tem o dólar como moeda corrente. Não bastassem os problemas sociais e climáticos – estima-se que o país possa perder até 2% do território até 2050, em virtude do aquecimento global e da subida do nível do mar –, surge agora o temor de uma nova invasão ordenada por Washington. “A ameaça do uso da força por Trump não pode ser subestimada, dada as mais de 13 intervenções militares que sofremos de 1856 aos anos 1990. Por outro lado, é uma oportunidade para gerar consciência e memória em temas tão sensíveis e muitas vezes esquecidos”, diz Sandino. •
Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital, em 22 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No quintal de casa’