No princípio, era a mulher. A representação mais antiga de um ser humano, a Vênus de Hohle Fels, encontrada na Alemanha, é uma mulher exageradamente fértil. Essa figura foi a primeira de uma série de estátuas paleolíticas que destacam seios, quadris largos e a vulva.

Nas primeiras histórias, a Terra era feminina e a humanidade tinha sido criada por mulheres, como as deusas Nüwa, da China, e Kagaba, a “mãe criadora”, da Colômbia.

Não demorou, porém, para que os deuses masculinos chegassem com força. Nüwa tornou-se esposa ou irmã de Fuxi, o criador masculino, e, nas histórias norte-americanas, um Velho criador aparece sentado sobre a Terra feminina. A criadora feminina independente, como nos revela a pesquisadora Mineke Schipper, foi, pouco a pouco, se tornando a esposa do deus.

Seu livro, The Shrinking Goddess (A Deusa Encolhida) oferece um relato fascinante e revoltante de como o corpo feminino foi visto e tratado ao longo do tempo em mitos, lendas e textos espirituais de todo o mundo.

“Em alguns lugares, as próprias figuras masculinas criaram a vida”, escreve Mineke. Ela cita como exemplos uma lenda do Congo, onde o deus ­Bumba vomita a humanidade, e o deus egípcio Atum, que se masturba, coloca o sêmen na boca e o cospe para gerar nova vida.

Mineke fala sobre um panteão de deusas rebaixadas, criadoras femininas descartadas e Evas de segunda classe: “O primeiro ser humano criado é, frequentemente, um homem. A esposa é criada a partir de uma parte pequena do corpo do homem. Ou Deus cria o homem com a mão direita e a mulher com a esquerda”.

Paleolítico. A representação mais antiga de um ser humano, a Vênus de Hohle Fels, encontrada na Alemanha, é uma mulher exageradamente fértil – Imagem: iStockphoto

Para a autora, essas histórias refletem uma tentativa das civilizações antigas de corrigir o que consideravam a injustiça essencial: apenas as mulheres terem o poder de gerar vida. “É como se dissessem: isso já é demais”, afirma Schipper.

Essa inquietação em relação ao fato de que as mulheres precisam ser silenciadas acompanha Mineke desde a infância. Nascida na Holanda, numa família de cinco irmãos, ela sempre questionou as diferenças e semelhanças de gêneros e as expectativas sobre o comportamento de meninos e meninas.

Sua mãe, uma mulher convencional, ensinava existirem dois caminhos: o dos homens e o das mulheres, sendo o caminho feminino menos interessante, mas necessário. Mineke, desde muito pequena, entrou em conflito com essa visão. Aos 11 anos, recusou-se a usar saia para o jantar.

O interesse da pesquisadora pela tradição oral começou quando ela morava na República do Congo. Ela e o marido se mudaram para o país em 1964 para trabalhar como professores universitários numa época turbulenta, marcada pela violência após o assassinato do ­primeiro-ministro Patrice Lumumba. Apesar do caos, a experiência teve para ela um caráter formativo.

“Você é jovem, não tem experiência, então aprende em poucos meses”, diz. Imersa em uma nova cultura, ela desenvolveu um interesse por provérbios. “Os provérbios, como disse, acho que o romancista Chinua Achebe, são o óleo de palma com o qual as palavras são comidas”, prossegue ela.

Mineke passou então a coletar os provérbios que ouvia e incentivou seus alunos a fazer o mesmo. As pesquisas foram compiladas em um programa de rádio que ela própria define como caótico.

“Você não pode viver em um corpo feminino e não notar as maneiras como ele é exaltado, objetificado, temido e vilipendiado”, diz a autora

Quando teve o primeiro filho no Congo, Mineke e o marido foram surpreendidos pelos vizinhos que foram agradecê-los pelo nascimento da criança: eles haviam contribuído com uma “nova energia” para a comunidade. “Achei muito bonito”, conta Mineke. Esse gesto, que representava uma sabedoria comunitária e tradicional, aumentou seu interesse pelas visões culturais sobre o corpo feminino.

A partir daí Mineke Schipper foi se aprofundando nos estudos sobre como o corpo feminino é percebido ao redor do mundo. “Você não pode viver em um corpo feminino e não notar as maneiras como ele é exaltado, objetificado, temido e vilipendiado”, observa.

O corpo feminino é fetichizado de várias formas, desde a gravidez e a amamentação até as formas como os legisladores tentam restringir os direitos reprodutivos das mulheres. Isso inclui práticas como a mutilação genital, a obsessão com os padrões corporais e até o rastreamento de ciclos menstruais.

A pesquisadora acredita que esse tratamento do corpo feminino é algo antigo e transcultural. Historicamente, no entanto, os antropólogos – eles também majoritariamente homens – não investigaram as tradições femininas, contribuindo para que essas percepções ficassem marginalizadas.

De volta à Holanda, com dois filhos pequenos e uma carreira acadêmica em Literatura Comparada, Mineke deu prosseguimento às pesquisas sobre as representações culturais de mulheres, coletando provérbios sobre o tema.

Durante mais de uma década, ela compilou provérbios de diferentes culturas. Esse trabalho culminou no site e no livro Women in Proverbs Worldwide, com mais de 15 mil provérbios. Entre os temas que mais a intrigaram, nesse conjunto, estão as metáforas usadas para descrever as mulheres e a maneira como o valor e a virtude são atribuídos a elas.

Foi avançando nessa trilha que ela chegou àquilo que nos oferece em The Shrinking Goddess. Na obra, Mineke explora a maneira como o corpo feminino é visto, desde o hímen e a vulva até a menstruação e a gravidez. Ela argumenta que esses mitos refletem medo, inveja e uma apropriação da biologia feminina.

No que diz respeito aos seios, especificamente, Mineke aborda o “deus que amamenta” (El Shaddai), presente no judaísmo primitivo, nas pinturas de Cristo com seios femininos no século XII, e no deus indiano Prajapati, que dá a si mesmo seios para alimentar suas criações.

Representações. O quadro The Birth of the Milky Way, de Rubens, e a deusa hindu Parvati são algumas das imagens analisadas pela pesquisadora – Imagem: Redes sociais

“Não é incrível como a imagem dos seios mudou?”, ela se maravilha. A amamentação, antes vista como uma função de nutrição, foi gradualmente transformada em um objeto de desejo, levando ao desconforto em torno da prática. “Como você ousa mostrar seu seio?… Você vai contra a imagem erótica do seio”, diz ela.

Também bastante explorados são os mitos em torno da vagina e da vulva. A autora conta que sua avó chamava a vulva de “mistério”, refletindo o medo e a admiração que ela gerava. Em várias culturas, amuletos e rituais eram usados para invocar proteção ou salvação, considerando a vulva como o portal da vida.

No entanto, com o tempo, a vulva passou a ser vista com terror, simbolizando a morte, como no mito da “vagina dentata”, onde ela é descrita com dentes. Para Mineke, isso é uma sublimação das ansiedades sexuais masculinas: “São tantas histórias… Imagine ter de fazer sexo pela primeira vez e acreditar que há piranhas lá dentro? Ansiedades terríveis”.

Embora muitas mudanças tenham ocorrido nas últimas décadas, a autora observa que a violência contra as mulheres e os preconceitos persistem. Muitas mulheres ainda lutam para se sentir à vontade com seus próprios corpos, especialmente em um mundo que as despreza. Mineke chama atenção para a crescente tendência de cirurgias cosméticas na vulva, como uma tentativa de adaptar o corpo feminino a padrões externos, como os da pornografia.

Apesar disso, ela acredita que o progresso é possível. Ela mesma vivenciou um grande avanço em relação à igualdade­ de gênero e vê seu relacionamento com o marido, morto em 2020, como uma verdadeira parceria. Isso não significa, porém, que não precisamos seguir colocando em xeque nossas ideias sobre sexo e gênero, especialmente quando se trata das experiências da transgeneridade.

Ela acredita firmemente que a melhor forma de desconstruir tabus é falando abertamente sobre sexualidade e corpo: “Toda a humanidade tem essas partes do corpo. Quanto mais falarmos sobre isso, menos estresse teremos”. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No princípio, era a mulher’

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 20/02/2025