“Piensa en la ambición inútil de fijar momentos. Piensa em todas las veces que vio gente tratando de guardarse algo fresco para siempre. De ganarle una batalla – alguna – al passo del tiempo. Todos pierden.” – Tiempo muerto, Margarita García Robayo

Estava em Bogotá. Era 2017 e procurava um livro de escritora colombiana; a capa me capturou. Livros são assim; muitas vezes temos a impressão de que nos escolhem num jogo de sedução em que o acaso e as coincidências definem o que será lido. A imagem, baseada em desenho do designer catalão Enric Satué, ilustra um terrário – micro-habitat geralmente usado para vários tipos de plantas – que encapsula, feito bolha, o que pode ser visto como um casal heterossexual e duas crianças. O abro agora e exercito meu castelhano enferrujado enquanto o som da TV invade a leitura silenciosa com notícias da violência espetaculosa infringida aos imigrantes latinos já nos primeiros dias do governo do extrema-direitista Donald Trump.

Sobre a autora

Margarita García Robayo nasceu em Cartagena de las Índias (Colômbia) em 1980 e, aos 18 anos, se mudou para Buenos Aires onde consta que vive até hoje. É autora das novelas Hasta que pase um huracán (2012), Lo que no aprendi (2013), Tiempo muerto (2017) e Educação sexual (publicada na Revista Piauí em 2020). Também é autora de vários livros de contos e recebeu o Prêmio Literário Casa das Américas 2014.

Língua afiada: sobre preconceitos, desamor e desenraizamento

Lucia e Pablo são um casal latino-americano – ela venezuelana; ele colombiano – que ascendeu socialmente e compõe uma típica família de classe média residente na região de New Haven, em Connecticut, cidade natal da prestigiada Universidade de Yale. Com formação acadêmica, dois filhos pequenos e um autofágico desejo de sucesso, enfrentam a crise terminal de seu casamento. Escrito na terceira pessoa e alternado com as vozes dos protagonistas, já nas primeiras páginas causam desconforto as caracterizações recheadas de preconceitos de classe contra outros latinos e pobres. O desdém permanente à empregada doméstica dos pais da protagonista denota uma das facetas da personagem Lucia, que escreve textos sobre questões de gênero em revista feminina famosa e se apresenta como progressista em relação à diversidade de orientações sexuais.

Por sua vez Pablo é professor numa escola secundária voltada aos latinos e não esconde um profundo desinteresse por seus alunos, o que é compartilhado por outros personagens secundários. Em sua “crise de meia idade” deseja escrever uma novela com traços heróicos em relação à sua região originária, ao mesmo tempo que se sente ressentido pelo suposto isolamento que sua mulher impôs após o nascimento dos gêmeos.

As recordações nebulosas de situações constrangedoras que construíram o distanciamento – uma zona de desinteresse mútuo entre ambos – deixam escapar, com maestria e sarcasmo, o uso de tiques de discriminação racial e de classe típicos de uma pequena burguesia pretensiosa e arrogante. A linguagem mordaz e muitas vezes sem qualquer traço de compaixão com as limitações alheias revela o desejo doentio de se distanciar de possíveis conexões na condição de imigrantes. Nesse jogo de identidades fluidas, muitas das discussões entre o ex-casal refletem as distintas formas de se relacionar com seu “passado latino”. Pablo passa uma ideia de recomposição com sua origem, mesmo que a noção de pátria seja confusa e carregada de contradições. Mas é Lucia que a rejeita firmemente, cuja história pessoal passa por mudanças permanentes com sua família de origem pequeno-burguesa abastada. Quando perguntada por seus filhos de 7 anos sobre de onde ela vem, responde rapidamente – “De aqui, de nossa casa”. Cabe destacar também o quanto a questão da maternidade/paternidade está presente na novela e de certa forma surge como uma âncora para o vazio existencial dos personagens.

Piscina vazia em Nem Haven

De tantas imagens possíveis de se construir através do talento de Margarita Robayo, talvez a da piscina inflável murcha me surja como síntese desse lar desfeito em New Haven, em pleno feriado de 4 de julho. Pablo a olha, murcha no pátio. Iria inflá-la para as crianças que agora estão distantes, num apart-hotel em Miami. Mas nada me causou mais impacto do que os momentos em que o pequeno Tomás verbaliza, sem travas na língua, seu sentimento de asco ao se deparar com russos, venezuelanos e negros: – No me gustan…

A negação e aversão ao diferente emergem na criança como subproduto dessa fuga para lugar nenhum, para esse tempo que morre.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 31/01/2025