
Por Isabela Cunha*
Da Página do MST
Entre os saberes das plantas e os cuidados dedicados ao corpo e à alma, o Setor de Saúde do MST no Paraná e em todos os estados do Brasil é notadamente formado por mulheres. São mães, avós, filhas, mulheres mais velhas e mais jovens, que juntas dão conta de organizar a militância para um cuidado zeloso, de si e do outro, cuidado que compreende a totalidade dos seres humanos. Entre essas mulheres guerreiras e cuidadosas, uma companheira foi muito especial, Luíza Rodrigues, a Dona Luíza, de quem nos lembramos neste Dia Nacional da Mulher Negra, Latinoamericana e Caribenha.
Dona Luíza foi uma importante militante do estado do Paraná. Lembrada principalmente por sua contribuição para a criação do Setor de Saúde no Estado, ela foi assentada no Assentamento Dom Helder Câmara, em São Jerônimo da Serra – PR, mas viveu muitos caminhos e batalhou muitas lutas antes e depois de se tornar assentada da Reforma Agrária Popular.
Segundo contam suas netas, Dona Luíza perdeu a mãe aos sete anos de idade, e desde muito cedo precisou trabalhar. “Desde muito pequena, ela teve que trabalhar na casa de donos de fazenda na região onde seus pais moravam. A mãe trabalhava nas lidas da casa do patrão e Luiza já cuidava das crianças”, relata Maria Izabel Grein, em pesquisa realizada sobre a história de vida da companheira.
Dona Luiza, como era chamada, acampou com as filhas em um acampamento do MST em Paranapoema, região noroeste do Estado do Paraná, e foi acampar mesmo contra a vontade de seu pai. “Na época, ela já trabalhava em hospitais, como faxineira, e meu bisavô não queria que ela fosse acampar, por preconceito com o movimento”, conta Gabriela Luiza Vitorino Mendes, neta de dona Luíza. Mas com decisão e opinião, que também foram suas marcas, Dona Luíza se juntou à luta do povo Sem Terra, e lutou a vida toda.
“Ela era aquela pessoa, mochila nas costas, levava o kit militante, ia para todas as atividades, independente de onde estivesse, não tinha tempo ruim, não tinha chuva, não tinha nada”, conta a companheira Eliane Alves Paes Pires, que também dirigiu o setor de Saúde do estado e militou com Dona Luísa.


Luta pela terra, luta pela vida
Luiza foi acampada em diversas comunidades na região noroeste do Paraná. No início dos anos 2000, enfrentou com as famílias da região a violência dos jagunços, pistoleiros dos fazendeiros e da Polícia Militar, que deixou marcas de sangue em muitas famílias. “Neste processo de violência deflagrado pelo governo Lerner perdemos Sétimo Garibaldi, Sebastião Camargo, Antonio Tavares”, relembra Maria Izabel Grein. “E nossa companheira Luiza estava ali, curando as feridas, fazendo um chá, reorganizando as famílias e animando para que ninguém desistisse da luta”, completa.
Foi depois de um desses despejos, que Dona Luiza se mudou para São Jerônimo da Serra. Segundo Eliane, o novo acampamento onde Luiza chegou “era muito precário, com realidade severa de fome, desnutrição, e muita lombriga nas crianças”, diz. “E a Dona Luiza sempre fez a articulação junto com a pastoral da criança para garantir a sopa. Esse sopão que ela fazia pras crianças no acampamento foi uma forma de salvar muitas vidas”, avalia.
Luta por educação e por formação
Segundo a companheira, Dona Luiza era uma mulher semi-analfabeta, mas isso não a impediu de conduzir as discussões e de contribuir inclusive com a formação dos militantes da saúde. “Ela teve uma participação muito forte na discussão para a conquista dos nossos cursos no Paraná, e a nível nacional também”, conta Eliane. Entre os processos formativos que tiveram a participação de D. Luiza em sua construção, ela destaca atividades em que recebia médicos cubanos para trabalho nos tempos-comunidade, a construção dos cursos de saúde, dos cursos de técnico em saúde comunitária e também o curso de formação de técnicos em meio ambiente.
Luiza ainda batalhou pelo acesso à educação no assentamento Dom Helder Câmara, batalhando diretamente pela construção da escola da comunidade. “A luta envolveu Conselho Tutelar, Ministério Público, Governo do Estado e Município, até que a escola foi efetivada no assentamento”, conta Izabel Grein.
Luíza ainda participou de seminários internacionais ao longo de sua vida como militante,com trabalhos realizados até na Alemanha, junto à Comissão Pastoral da Terra. “Ela escrevia, ela sabia ler com bastante dificuldade, mas o pouco que ela sabia, como ela mesma dizia, ela sabia aproveitar muito”, relembra Eliane.


A Saúde Popular, a maior das batalhas
A ação de Luiza Pires no Estado do Paraná atravessou setores, coletivos e brigadas. Ela atuou na educação, foi dirigente de brigada, fez sopa para alimentar as crianças,contribuiu em conselhos municipais, cultivou café orgânico em seu lote, participou de seminários interacionais, criou filhos, filhas, netas e netos. Mas há algo que sempre se destaca na fala das suas companheiras: o seu trabalho para a formação do setor de saúde no Paraná.
“No período entre os anos 90 e 2000, quando iniciou o setor de saúde estadual, ela já estava presente, fazendo parte desse momento”, conta a companheira Marlene Alonso Sales Faustino, do Setor de Saúde. “Nós fazíamos, principalmente, o trabalho com as plantas, trabalho de prevenção das doenças, ela foi a pessoa que fez isso tudo, que dava início nas tarefas, um trabalho que realmente iniciou o setor”, reflete.
Eliane também conta que a partir de um saber pessoal, construído ao longo de sua vida, Luiza ajudou a dar forma para o setor que nascia. “A pressão de defesa do SUS, das terapias alternativas, do remédio,a Luíza conhecia muito, ela sabia tratar”, conta Eliane.
“Então ela ficou na executiva do setor por um bom tempo, depois, quando firmou a direção, aí outras companheiras assumiram, mas ela sempre estava na executiva que, na época, nós chamávamos a executiva do setor de saúde e gênero”, relata Eliane.
Luiza Pires: uma memória Viva de luta e alegria
Luiza faleceu no ano de 2024, vítima de um AVC que a deixou por um tempo com limitações nos movimentos. Ainda assim, sua memória de luta e de força perduram entre companheiros, como memórias de muita decisão, firmeza, mas também de alegria, de vida, de cuidado e companheirismo.
“A grande qualidade desta mulher em toda a sua trajetória de vida foi a capacidade de acolher as pessoas, de cuidar das pessoas, sempre alegre e disposta para mais uma missão”, relembra Izabel.
“Ela foi aquela mulher negra, mulher guerreira, mãe de três filhos, filhas, sempre foi dirigente, sempre esteve na linha de frente, nunca teve medo de enfrentar a luta e sempre com muita sabedoria” diz Eliane.
“Falar a história da Luísa é muito importante, porque a gente não deve deixar morrer a história dela.A perda dela pra nós foi como tirar um pedacinho do nosso setor, então a gente tenta sempre estar lembrando, né? Porque ela sempre foi uma guerreira, uma batalhadora”, diz Marlene.

Recentemente, o Setor de Saúde do MST no PR organizou um curso de formação cuja turma levou o nome de Luiza Pires. Agora, cada espaço de Saúde Popular organizado pelo coletivo do Setor, em encontros, feiras, atividades do Movimento, levará o seu nome. E mais recentemente, um de seus companheiros de luta lhe escreveu um poema, que partilhamos aqui, para sempre lembrar dessa mulher, mãe, avó, lutadora, Luiza Pires, que plantou sementes e cuidou de pessoas deixando na continuidade da luta a sua memória e a sua presença:
“Luiza
Exemplo de simpatia
Exemplo de humildade
Companheira lutadora
Aguerrida, batalhadora
Uma amiga de verdade.
Dona Luiza querida
Viemos Homenagear
Por tudo que representou
Por onde você passou
Sempre iremos lembrar.
Entrou para o movimento
Começou nova história
Poema, querência do Norte
Sem ligar para a própria sorte
Indo em busca da vitória.
Passou por muitos lugares
Aprendendo, ensinando virtude
Segurando em cada mão
Cuidando cada irmã e irmão
Cuidadora da saúde.
Irmã, mãe e companheira
A família conduzia
Ensinando a ter fé
Firmando o passo no pé
Canseira não se havia.
Ocupou muitas trincheiras
Que a luta sugeria
Abraçava com ternura
Com pitadas de bravura
Semblantes de alegria.
Tinha tristeza também
Errava como ser humano
Mas ser duro e fraterno
Fagulhas de amor materno
Dava voltas ao desengano.
Chorava se era preciso
Mas com exemplo ensinava
De cada lágrima que caía
Outro sorriso nascia
Pra gente que ela amava.
Sem formação acadêmica
De farta sabedoria
De cada ideia que plantou
Boas plantas germinou
E o saber resplandecia.
Diante a tantos preconceitos
Ajudou a combater
Não negar a etnia
Lutava com maestria
Pro direito assim valer.
Poderíamos falar muito
Páginas de livro encher
Falar de você Luiza
A história nos autoriza
As falhas reconhecer.
Poderíamos e deveríamos cuidar mais
Enquanto tu tinhas vida
Pra quem tanto ajudou
Poucos de nós se levantou
Nossa atitude foi tímida.
Reconhecemos aqui
Falha da coletividade
Não diminui os sentimentos
Seguimos em movimento
Sem culpa, sem vaidade.
Ninguém vive para sempre
Sabemos, reconhecemos
Luiza deixou seu legado
Não fica só no passado
Com seus exemplos aprendemos.
Onde estiver, Luiza amada
Receba nosso carinho
Receba de coração
De cada irmã, de cada irmão
Seguiremos seu caminho.
Luiza está presente
Não esqueceremos jamais
Cultivando os saberes
Alimentando os viveres
E os valores ancestrais”
(Pedro Auri Faustino, 2025)
*Militante do Setor de Comunicação e Cultura do MST no PR
**Editado por Erica Vanzin