No artigo A promotora Kamala enfrenta o criminoso Bolsonaro (Brasil 247, 22/7/2024), o jornalista Moisés Mendes faz uma curiosa defesa de ninguém menos que Kamala Harris, vice-presidente dos EUA e que substituirá, ao que tudo indica, o atual presidente norte-americano, Joe Biden, nas eleições presidenciais marcadas para novembro. Curiosa porque não tendo muito o que dizer em defesa de uma notória agente do imperialismo, o colunista argumenta: “o confronto visto por Alter pode nos servir por enquanto com o clichê de uma mocinha contra o bandidão [grifo nosso]. Temos alguém que já foi agente da lei de um lado [grifo nosso], com todas as suas contradições, e temos um bandido do outro [grifo nosso]”.
Importado para o Brasil, o sistema enaltecido por Mendes teria entre os respectivos campos “agentes da lei” da qualidade de Moro, Dallagnol, Wilson Witzel, Marcelo Bretas. Em suas ilusões sobre como funciona o mundo real, Mendes claramente ignorou o fato de que não é ele quem define quem é ou não “bandido”.
Ainda pior, parece ter sido acometido por um coma seletivo, que o fez esquecer o verdadeiro papel dos “agentes da lei”. No Brasil, temos os belíssimos exemplos produzidos pela Lava Jato, ao passo que, nos EUA, pares idênticos empreenderam uma caçada similar a Donald Trump, valendo-se de ilações confusas para tentar tirá-lo arbitrariamente da disputa eleitoral.
Colocando mais concretamente quem são os “agentes da lei” e os “bandidos”, é preciso lembrar o que a realidade mostrou sobre essa forma absurda de sintetizar a luta política, lição completamente ignorada por Mendes, mas que a esquerda brasileira não pode se dar ao luxo de repetir. Ela não sensibiliza ninguém, exceto o que modernamente se chama de “a bolha”, isto é, o próprio círculo de influência. Entre os “de fora da bolha”, no entanto, o efeito é justamente o contrário: aumenta o apoio do “bandido”.
Seja com Lula ou com Trump, a tendência observada sempre que esse tipo de loucura é levada à diante é que o chamado “bandido” seja visto pela população não como Mendes gostaria que fossem vistos, mas como perseguidos. Em 2018, levou Lula a ter chances reais de se eleger de dentro do cárcere em Curitiba, ainda no primeiro turno.
Nos EUA, fortaleceu o trumpismo em um setor da sociedade nort-americana onde ele era fraco, a comunidade negra, a que melhor conhece o sistema de Atler enaltecido por Mendes de “agentes da lei” e “bandidos”. Com todo o histórico dessa política, só uma pessoa muito dissociada da realidade pode imaginar um resultado diferente em relação ao bolsonarismo, caso a campanha de perseguição seja implementada, como deseja uma parte da esquerda pequeno-burguesa, Mendes entre eles.
“Se não for bem assim, já nos basta agora que derrote Trump e a ameaça de permanência da extrema direita, não durante quatro anos, mas por décadas no poder. Que Kamala nos salve do que vem dos Estados Unidos como ajuda na ressurreição do bolsonarismo”.
É um absurdo completo apostar na “Dallagnol de saias” para “nos salvar da ressurreição do bolsonarismo”, mas revelador que Mendes coloque as coisas dessa forma, uma vez que expressa os preconceitos típicos da pequena-burguesia, que dizem orar pelos trabalhadores, mas o fazem buscando o socorro do imperialismo. Incrédulo da força do povo brasileiro, o jornalista espera que uma política do Partido Democrata resolva um problema criado pela política do próprio Partido Democrata. Foram articuladores políticos desta agremiação, finalmente, quem organizaram o golpe de Estado de 2016 e a extrema direita brasileira.
A única ajuda possível que se pode esperar de Kamala Harris é a de massacrar ainda mais duramente o povo brasileiro, além de preparar a artilharia do imperialismo contra a principal nação do subcontinente. Foi sob os democratas que uma onda de golpes varreu a América Latina entre 2008 e 2016. A partir da vitória de Biden, em 2020, vieram também golpistas como Milei na Argentina, Bukele em El Salvador e Noboa no Equador, para não mencionar a traição golpista de Arce contra Evo Morales na Bolívia.
Por incrível que pareça, o jornalista tem a cara de pau de citar a principal crise do planeta na atualidade, o genocídio do povo palestino na Faixa de Gaza:
“Ninguém enxerga Kamala como de esquerda ou muito fora do padrão do que seja um democrata. Nem que vá questionar a Otan, ficar amiga do Irã e interromper, logo depois da posse, o genocídio em Gaza.
Mas é possível pensar que Kamala seja alguém capaz de mudar o tom das relações com os criminosos do governo israelense e de vislumbrar novos diálogos com o mundo, em todas as áreas, das guerras ao ambientalismo.”
Baseado em que Mendes acha que “é possível pensar que Kamala seja capaz de mudar o tom das relações com os criminosos do governo israelense”, é um mistério. Financiada pelo lobby sionista, Harris já fez o contrário do que imagina o colunista de Brasil 247. Em evento promovido pelo poderoso American Israel Public Affairs Committee (AIPAC) em 2017, se orgulha de ter apoiado um pacote de US$38 bilhões “em assistência militar ao longo da próxima década”. Pode escapar a Mendes, mas na ocasião, “os criminosos do governo israelense” já ocupavam suas atuais posições no Knesset (o parlamento sionista), em especial o atual primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu.
Não custa lembrar, três anos antes do anúncio entusiasmado de Harris, o governo da então presidenta Dilma Rousseff criticou a política genocida do sionismo, refletida na matança indiscriminada de civis, cerca de 700, a maioria mulheres e crianças, já expndo uma tendência que se repetiria na atual ofensiva. O Brasil fora então chamado de “anão diplomático” pelos sionistas, por ser crítico de uma matança apoiada de maneira consciente e consequente por Harris. Eis o “tom” das relações da provável candidata democrata à Casa Branca (sede do governo americano), em quem o esperançoso Mendes deposita sua fé acrítica.
Já no que tange ao “ambientalismo”, aqui sim é possível esperar “novos diálogos”, do tipo rotineiro que os EUA dispensam aos demais países do mundo, especialmente os atrasados, porém mais duros. Como isso seria positivo ao Brasil, é difícil conjecturar, uma vez que a questão ambiental é frequentemente usada pelo imperialismo para pressionar o País e barrar qualquer tentativa de progresso na nação, como mostra a batalha no governo envolvendo a exploração de petróleo na Margem Equatorial.
É perfeitamente natural que um colunista de um dos principais órgãos de propaganda do imperialismo norte-americano, o jornal The New York Times, apele para o atraso de um povo bárbaro para defender a candidatura que melhor representa a ditadura mundial. O besteirol identitário típico, “mulher, negra, etc., etc., etc.,” longe de empolgar alguém, cada vez mais desperta uma reação contrária, o que leva à necessidade de um atrativo a mais para tornar uma promotora de justiça popular.
O curioso é um jornalista de esquerda de um país oprimido repetir a fórmula do norte-americano, desconsiderando completamente a realidade e, pior, permitindo a inserção de muita confusão no interior da esquerda brasileira. Com a perspectiva de um recrudescimento cada vez maior do conflito do País com o imperialismo, nada poderia ser pior do que permitir a proliferação de orientações importadas dos piores inimigos do povo brasileiro (e de todo o planeta, incluindo os próprios norte-americanos) no meio de nossas fileiras.