No ano passado, o Brasil registrou mais de um milhão de casos em que mulheres foram vítimas de algum tipo de violência — tais como homicídio e feminicídio (tentados e consumados), agressões, ameaça, perseguição, violência psicológica e estupro. Com exceção dos homicídios, todas as modalidades de crime cresceram. Boa parte dessas vítimas é de meninas negras e são alvos de violência sexual em suas próprias casas.
As tentativas de homicídios aumentaram 9,2%, com 8.372 vítimas, assim como as de feminicídio, com 7,1% e um total de 2.797 mulheres. As ameaças saltaram 16%, tendo ao menos 778,9 mil registros.
Ainda compõem esse cenário de terror o sensível aumento nos casos de estupro, de 6,5%, somando quase 84 mil vítimas — isso corresponde a um caso a cada seis minutos. Se for considerado o período entre 2011 e 2023, esse tipo de violência, uma das piores que existem, cresceu impressionantes 91,5%.
As informações fazem parte do Anuário 2024 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que tem como fonte dados colhidos junto aos órgãos de segurança dos estados.
Quando se coloca uma lupa para compreender o perfil das vítimas de estupro, a situação é ainda pior: 76% eram pessoas vulneráveis, 88% do sexo feminino e 52% negras. A grande maioria, 61,6%, tem até 13 anos; 32,5% entre 10 e 13 anos; 18% entre cinco e nove anos e 11% entre zero e quatro anos.
Ao analisar esses e outros dados sobre a violência que atinge as mulheres, Isabella Matosinhos, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta, no anuário, algumas teorias que ajudam a entender esse cenário.
Entre elas, está a noção da pedagogia do poder e da crueldade, desenvolvida por Rita Segato, “segundo a qual a violência de gênero não é apenas um ato isolado de agressão, mas sim uma expressão de poder e controle que está profundamente enraizada nas estruturas patriarcais da sociedade”.
Outra teoria citada é a dos ciclos de violência, que evidencia padrões cíclicos no comportamento abusivo, além da teoria do backlash, segundo a qual “a violência contra as mulheres pode aumentar em resposta aos avanços dos direitos e da igualdade de gênero, como uma reação de resistência e tentativa de reverter esses progressos”.
“Algo que existe em comum em praticamente todas essas teorias é a noção de que a violência contra a mulher foi naturalizada na sociedade. A tal ponto que os dados que trazemos aqui não exaurem o fenômeno”, escreve Isabela.
A pesquisadora lembra que “existe uma parcela da violência que não entra nas estatísticas oficiais, por razões diversas como desconfiança nas instituições, fatores psicológicos como medo e culpa, burocracia e dificuldade do acesso a serviços, entre outros”. Ou seja, os números pode ser subdimensionados, de maneira que a realidade pode ser ainda pior.
Ao Portal Vermelho, o coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, David Marques, destaca ainda que o fato de os homens serem os principais agressores “demonstra o quanto é importante que, além de fazer um debate público amplo, como vem acontecendo, sobre a situação de violência contra meninas e mulheres no país, a gente faça com que os homens participem desse debate”.
Ele completa dizendo que “nós, homens, precisamos deixar de naturalizar determinados comportamentos que provocam violência; precisamos conseguir perceber isso de modo a que a chave do enfrentamento desse tipo de violência não seja apenas de acolhimento, mas também de prevenção”.
E conclui: “Na medida em que a gente conseguir que mais homens mudem o comportamento, a gente pode estar avançando na prevenção à ocorrência de várias dessas modalidades de violência”.
Ainda segundo o Anuário, também houve crescimento de 9,8% nas agressões decorrentes de violência doméstica, que somou ao menos 258,9 mil casos registrados. E os casos de violência psicológica saltaram 33,8%, com 38,5 ocorrências.
Os casos de stalking, ou perseguição, também tiveram um sensível aumento, de 34,5%, com 77 mil registros, e as ameaças totalizaram 778,9 mil casos, aumento de 16,5% em relação ao ano anterior.
Conforme observado pelo Anuário, “se, por um lado, as taxas de maus-tratos diminuem com o correr da adolescência, por outro, aumentam, para o grupo etário de 14 a 17 anos, os casos de lesão corporal em contexto de violência doméstica. Os casos quase triplicam de um grupo etário para outro, passando de 34,5 para 90,8 por 100 mil habitantes na respectiva faixa etária”.
Notícia um pouco melhor, mas que ainda mostra um quadro assustador para a infância e a adolescência brasileiras é a queda no número de mortes violentas intencionais (MVI). “Em 2023, 263 crianças e 2.036 adolescentes foram vítimas de MVI no Brasil, totalizando 2.299 vidas interrompidas precoce e violentamente. Em comparação com a taxa do ano anterior, a variação decresceu 7,6%, de 5,1 para 4,7 por 100 mil crianças e adolescentes de 0 a 17 anos”, anota o relatório.
Segundo o levantamento, o homicídio doloso constitui a maior parte de MVI para ambas as faixas etárias. A grande maioria das vítimas está entre os 12 e os 17 anos, com 1.670 casos (aproximadamente 87% do total de homicídios dolosos).
Enquanto para crianças de zero a 11 anos, a casa é o local mais comum para as MVIs (44%) — sendo a violência doméstica um fator de risco decisivo para este tipo de crime nessa faixa etária —, no caso dos adolescentes de 12 a 17 anos, a via pública é o local predominante das mortes violentas, concentrando 62% dos casos.
O Anuário chama atenção para o número de mortes decorrentes de intervenção policial na faixa etária de 12 a 17 anos (338 casos), o que representa 16,6% do total de mortes violentas intencionais de adolescentes. “A intervenção policial é, portanto, a causa de cerca de uma a cada sete mortes violentas intencionais de adolescentes no país, indicando a urgência de monitorar e transformar a abordagem e o uso da força das polícias brasileiras”.
Também nestas faixas, o racismo estrutural se faz presente: a maioria das crianças vítimas de MVI é negra, representando 70% dos registros; no caso dos adolescentes, a disparidade é ainda mais acentuada, com 85% das vítimas sendo negras.
“No caso das MVI, estamos diante de um cenário que exibe com crueza a desumanização que o racismo produz. Das ruínas de Gaza ao Complexo da Maré, é conhecido o perfil das vidas que são preteridas e que parecem não estar à altura de gerar comoção para que esse triste quadro se reverta”, conclui o Anuário.