
Netanyahu, Gaza e agora Doha
por Maria Luiza Falcão Silva
A guerra de extermínio
Desde 7 de outubro de 2023, Gaza é palco de uma guerra que já não pode ser descrita apenas como conflito militar: é uma crise humanitária de proporções históricas. Mais de 40 mil palestinos foram mortos, segundo dados de agências da Organização das Nações Unidas (ONU), a maioria civis. Hospitais, escolas, redes de água e eletricidade foram sistematicamente destruídos.
Gaza foi transformada num território inabitável. Ainda assim, Benjamin Netanyahu insiste que tudo faz parte de uma “guerra justa”, linguagem que soa cada vez mais distorcida à medida que os crimes se acumulam e que a própria Corte Internacional de Justiça ordena cessar-fogo e abertura de corredores humanitários — ordens que Israel simplesmente ignora.
A Corte Penal Internacional (CPI) foi ainda mais incisiva: em novembro de 2024, expediu mandados de prisão contra Netanyahu e o então ministro da Defesa, Yoav Gallant, acusando-os de crimes contra a humanidade. Entre os crimes listados estão assassinato, perseguição e o uso da fome como arma de guerra especialmente contra mulheres e crianças. Trata-se de um marco jurídico sem precedentes: nunca antes um líder de um aliado estratégico dos Estados Unidos e da União Europeia havia sido formalmente acusado em Haia.
Em março de 2023, o Tribunal Penal Internacional já havia emitido mandado de prisão contra Vladimir Putin, acusando-o de crimes de guerra pela deportação ilegal de crianças ucranianas para a Rússia. Foi um precedente histórico: pela primeira vez, um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU foi formalmente acusado em Haia. O caso de Netanyahu é comparável em gravidade e expõe o mesmo dilema: a lei internacional terá força para responsabilizar até os chefes de Estado das grandes potências e seus aliados?
Do cerco de Gaza ao ataque em Doha
O ataque em Doha é a extensão dessa lógica de guerra total. Mísseis israelenses atingiram a vila onde vivia Khalil al-Hayya, o principal negociador do Hamas no processo de cessar-fogo mediado pelo Catar e pelos Estados Unidos. Hayya sobreviveu, mas seu filho e outras pessoas foram mortos. É a primeira vez que Israel realiza um ataque dessa magnitude em território catariano, país que nunca esteve em guerra com Israel e que exerce papel central de mediador desde o início do conflito.
O primeiro-ministro do Catar, Mohammed bin Abdulrahman al-Thani, classificou o ataque como “terrorismo de Estado” e prometeu que o país seguirá atuando como mediador. Mas o recado é claro: nem mesmo os negociadores estão a salvo. O que deveria ser um espaço neutro para o diálogo virou alvo de bombardeio, e a mensagem enviada ao mundo é de que não há lugar seguro nem para a diplomacia.
Gaza: um campo minado
Doha não é o primeiro episódio, mas talvez seja o mais simbólico. Em julho de 2024, o massacre de Al-Mawasi deixou 90 civis mortos em uma área designada como “zona humanitária”. Em fevereiro daquele ano, o chamado Massacre de Al-Rashid vitimou mais de cem pessoas que buscavam comida em um comboio humanitário. Em agosto de 2025, jornalistas foram atacados e mortos próximo ao Hospital Al-Shifa, numa tentativa de silenciar relatos de violações. Esses episódios mostram que não se trata de erros ou “efeitos colaterais”, mas de uma estratégia calculada de desumanização, punição coletiva e destruição de qualquer traço de normalidade.
Netanyahu, o réu e o estrategista
Benjamin Netanyahu é o rosto e o cérebro dessa política. Formalmente acusado pela CPI, ele continua a governar como se nada pudesse detê-lo. Seu cálculo é político: prolongar a guerra, enfraquecer a Autoridade Nacional Palestina, criar um fato consumado que leve os palestinos ao exílio ou à rendição. Netanyahu aposta na fadiga internacional, esperando que a comunidade global normalize o horror e aceite a ocupação como irreversível.
O contraste entre sua situação judicial e suas iniciativas públicas é perturbador. Em julho deste ano, em ato que causou perplexidade, Netanyahu indicou Donald Trump ao Prêmio Nobel da Paz, exaltando os Acordos de Abraão. A cena revela o esforço de Netanyahu de reescrever a narrativa global: transformar um conflito devastador em suposta cruzada civilizatória, transformar líderes acusados de fomentar guerras em símbolos de paz.
Os “Acordos de Abraão”, assinados em 2020 sob mediação de Donald Trump, foram apresentados como um avanço histórico para a paz no Oriente Médio ao normalizar as relações diplomáticas entre Israel, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos. No entanto, para os palestinos e grande parte da comunidade internacional, esses acordos significaram um esvaziamento do processo de paz, pois ignoraram a exigência central de criação de um Estado palestino e deram a Israel uma carta branca para aprofundar a ocupação e a colonização de territórios. Netanyahu transformou esses acordos em vitrine pessoal, apresentando-os como prova de sua capacidade de “fazer paz” sem negociar com os palestinos. É justamente esse gesto, de normalizar a violência ao mesmo tempo que normaliza relações, que torna sua indicação de Trump ao Nobel da Paz uma provocação: ambos celebram acordos que consolidam uma paz sem justiça, deixando Gaza e a Cisjordânia cada vez mais destroçados.
Reações internacionais insuficientes
O ataque em Doha provocou uma reação imediata: o Conselho de Segurança da ONU foi convocado com urgência; a Casa Branca divulgou uma rara nota de repreensão, e até líderes europeus tradicionalmente cautelosos denunciaram a escalada. No entanto, tudo permanece no campo da retórica. Nenhum país ocidental rompeu relações diplomáticas, poucos suspenderam exportações de armas, e nenhum deles se comprometeu a prender Netanyahu caso ele pise em seus territórios, como exigem os mandados de Haia.
O Sul Global, por sua vez, tem se manifestado com mais firmeza. Países do BRICS, incluindo o Brasil, pediram investigação independente e suspensão imediata dos ataques. Mas essas vozes ainda não se transformaram em uma frente diplomática coesa que possa realmente isolar Israel ou pressionar seus aliados.
O teste para o sistema internacional
O que está em jogo vai além de Gaza ou de Doha: é o próprio futuro do direito internacional. Se um primeiro-ministro acusado de crimes contra a humanidade pode viajar, discursar em parlamentos estrangeiros, assinar acordos e atacar negociadores sem sofrer consequências, qual é a utilidade de instituições como a CPI ou a própria ONU?
Chegamos ao ponto em que contar mortos não basta. É preciso agir. O cumprimento dos mandados de prisão da CPI seria um passo histórico. A suspensão imediata de fornecimento de armas, especialmente dos Estados Unidos e da Europa, salvaria milhares de vidas.
A paz não virá sozinha
O ataque em Doha é mais que um crime: é um desafio frontal à comunidade internacional. Se o mundo deseja preservar alguma credibilidade no discurso dos direitos humanos, precisa reagir com algo mais que comunicados e resoluções. É hora de transformar indignação em ação: prender os acusados, impor sanções, abrir espaço real para um processo de paz conduzido pela diplomacia e não pelos bombardeios.
Sem isso, Gaza continuará a ser um cemitério a céu aberto, Doha será apenas mais uma cidade marcada pelo medo e a palavra “paz” continuará sendo usada como disfarce para a guerra. A história julgará não apenas Netanyahu, mas também todos aqueles que, podendo agir, escolheram o conforto da neutralidade.
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN “