Neoliberalismo como construção do idiota

Por Rodrigo Medeiros*

Após ler o livro ‘A construção do idiota’ (2024), editado pela Da Vinci Livros, decidi cumprir a promessa feita ao seu autor, Rubens Casara, escritor e juiz de direito. Conheci Casara na Livraria Da Vinci, no Rio de Janeiro, em setembro do ano passado. Naquele momento, pude conversar com ele sobre alguns aspectos da respectiva obra e sobre o momento político brasileiro. Irei abordar alguns pontos relevantes que selecionei no livro e fazer alguns breves comentários. Recomendo aos interessados a leitura do livro.

Seria, afinal, possível desenvolver o programa neoliberal sem a construção de um imaginário coletivo aderente? Logo no primeiro capítulo do livro, Casara abordou o processo de idiossubjetivação. De acordo com o autor, “a idiotice é a postura, por excelência, do sujeito neoliberal que atua egoisticamente a partir de cálculos de interesse que visam exclusivamente o lucro ou a obtenção de alguma vantagem pessoal”. O idiota, palavra de raiz etimológica grega que significa “privado”, é uma pessoa sem compromisso com a vida pública. Reduzir a participação e o interesse coletivo na vida pública faz parte do processo que constrói idiotas úteis nas cidades para o desenvolvimento do programa neoliberal.

Para Casara, “idiotas, portanto, são as pessoas que abdicam de projetos coletivos ou de ações políticas voltadas para o bem comum, porque são detentoras de uma subjetividade empobrecida que interdita o pensamento reflexivo visando a obtenção de vantagens pessoais”.

A construção do idiota é um processo de dominação ideológica presente no capitalismo neoliberal, cujo programa começou a ser elaborado a partir da segunda metade dos anos 1930 e que se difundiu globalmente após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e principalmente após a dissolução da União Soviética, em 1991, com o fim das experiências do socialismo real. “Fim da história” para alguns, pois a “ameaça comunista” havia terminado. O Estado de bem-estar social capitalista do pós-Segunda Guerra havia perdido a sua utilidade de contenção.

Não há mesmo alternativas ao neoliberalismo e sua distopia civilizatória baseada no darwinismo social e na banalização das desigualdades sociais extremas? Temos que aceitar ainda hoje que não há alternativas, como dizia Margaret Thatcher? Conforme ponderou Casara, “idiotas, inocentes ou não, sempre foram úteis àqueles que pretendem dominar e explorar outros seres humanos”. Empobrecer a linguagem, a discussão pública e simplificar os problemas causados pelo programa neoliberal, responsabilizando individualmente os mais frágeis, as vítimas do sistema, são táticas bem conhecidas dos ideólogos do neoliberalismo.

De acordo com o autor, “para compensar o caos social produzido pela adoção de medidas neoliberais, os detentores do poder econômico estimulam promessas e discursos que satisfazem um imaginário que projeta o retorno a um passado idealizado de segurança”. Passado este que nunca existiu de fato. O sociólogo Zygmunt Bauman chamou esse tipo de retorno ao passado de “retropia”. Alguns chamam de reacionarismo, ou de populismo reacionário.

Rubens Casara compreende que vivemos em um tempo no qual “a pessoa trabalhadora tornou-se cada vez mais manipulável e dispensável”. Poderíamos considerar este tempo como a modernidade líquida sob a hegemonia do programa neoliberal: privatização; desregulamentação de mercados; um Estado mínimo para os trabalhadores e os mais vulneráveis; finanças públicas ortodoxas na busca do equilíbrio fiscal, independente da fase do ciclo econômico e das consequências sociais; bancos centrais sob o controle dos financistas de mercado, apartados das necessidades sociais e dos ciclos eleitorais.

A perspectiva “reformista” que restou seria a aplicação de um choque neoliberal de desresponsabilização, desvinculação e desestatização? Tal abordagem antissocial se aproxima da conhecida “banalidade do mal” identificada por Hannah Arendt no nazismo.

Nesse sentido, o autor afirmou que “a idiossubjetivação, esta produção de subjetividade ao neoliberalismo, cresce junto aos fenômenos de extensão da democracia liberal (democracia meramente formal) e do aumento do poder das empresas”. Para manter o sistema capitalista vigente, em crise permanente, a democracia liberal conseguirá resistir aos avanços das novas formas de fascismo?

Privatizações e desregulamentações são pilares fundamentais das políticas neoliberais, promovidas ideologicamente sob a premissa de que a gestão privada é inerentemente mais eficiente do que a pública. Este enfoque não raro aumenta a desigualdade, pois beneficia desproporcionalmente os agentes econômicos mais fortes e penaliza aqueles menos capazes de competir em igualdade de condições.

Além disso, a política de austeridade fiscal costuma levar à redução de investimentos públicos em áreas essenciais, como saúde e educação, impactando negativamente a qualidade de vida de vastos segmentos populacionais. O programa neoliberal tende a favorecer as grandes corporações e indivíduos de alto poder aquisitivo, exacerbando as desigualdades preexistentes e criando barreiras adicionais para a mobilidade social.

Apesar do relativo bom desempenho recente da economia brasileira, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) calculou que “em dezembro de 2024, o salário mínimo necessário para a manutenção de uma família de quatro pessoas deveria equivaler a R$ 7.067,68 ou 5,01 vezes o mínimo de R$ 1.412,00”. A informalidade laboral se manteve elevada no patamar de 39% para um mercado de trabalho estruturalmente precário.

Em diversos contextos, grandes concentrações de riquezas, faltas de oportunidades e de acesso a recursos básicos por parte da maioria da população se mostraram historicamente capazes de gerar um sentimento de injustiça e revolta popular. Manifestações contemporâneas do fascismo têm sido observadas em vários países, inclusive no Brasil. Essas manifestações têm impactos profundos na sociedade, levando a divisões e polarizações cada vez maiores.

Em síntese, Rubens Casara afirmou que “os processos de produção da subjetividade neoliberal precisam demonizar o comum para assegurar a negociabilidade ilimitada inerente às relações sociais neoliberais”.

A ideia de um crescimento econômico ilimitado em um planeta finito também integra o quadro ideológico hegemônico. A Organização Meteorológica Mundial, por sua vez, informou que 2024 foi o ano mais quente da história. Há registros de uma escalada dos efeitos do clima na saúde humana e nos preços dos produtos agrícolas.

A atual crise climática representa um dos maiores desafios globais contemporâneos, caracterizada pelo aumento acelerado das temperaturas médias do planeta, eventos climáticos extremos crescentes e a alteração dos padrões climáticos em diversas regiões, com consequências sociais negativas.  

Na propaganda cotidiana do neoliberalismo, a mídia ocupa um papel central como vetor de disseminação de ideais políticos e econômicos que incentivam a desregulamentação e a privatização. As empresas de comunicação muitas vezes se alinham aos interesses corporativos, promovendo uma narrativa que promove o darwinismo social e a minimização dos gastos públicos.

Esta aliança impacta a forma como as políticas públicas são debatidas e percebidas pela população, fortalecendo a hegemonia de um pensamento antissocial em detrimento de uma diversidade de vozes e perspectivas críticas, essenciais para uma democracia mais robusta, participativa e inclusiva.

*Rodrigo Medeiros é professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) e editor da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (Rinterpap).

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Last Update: 04/03/2025