Nei Lopes: O Subúrbio e a Africanidade em Samba e Letra
por Daniel Costa
Tenho impressa no meu rosto
e no peito, no lado oposto ao direito, uma saudade
sensação de na verdade
não ter sido nem metade
daquilo que você sonhou
são caminhos, são esquemas
descaminhos e problemas
é o rochedo contra o mar
é isso aí, ê Irajá
meu samba é a única coisa que eu posso te dar
Samba do Irajá (Nei Lopes)
É possível afirmar, sem exagero, que Nei Lopes deu ao seu Irajá, bairro localizado no subúrbio carioca onde nasceu, e ao Brasil muito mais do que um samba, ou mesmo do que alguns sambas. Sua contribuição vai muito além da música: Nei construiu uma obra intelectual de grande porte, enraizada na cultura afro-brasileira e comprometida com a valorização das heranças africanas na formação do país. Autor de livros fundamentais sobre história, cultura e religiosidade negra, além de suas incursões pela prosa ficcional, ele se transformou em uma referência intelectual de primeira grandeza; integrando o panteão de grandes pensadores negros brasileiros ao lado de nomes como Joel Rufino dos Santos, Edison Carneiro, Muniz Sodré, Lélia Gonzalez e tantos outros que reescreveram, com coragem e erudição, os caminhos da nossa nação e do nosso povo a partir das margens. Nei Lopes não somente cantou um Rio de Janeiro de outrora, por meio de seus lugares e personagens: ele o pensou, o explicou e o reinterpretou como poucos.
A obra de Nei Lopes é marcada por uma extraordinária riqueza poética que entrelaça lirismo, memória e resistência. Seus versos transitam com fluidez entre o amor e a política, o cotidiano e o sagrado, sempre amparados por uma linguagem popular sofisticada, que resgata expressões do samba de terreiro, do jongo e da oralidade ancestral. Em canções como Senhora Liberdade, parceria com o bamba Wilson Moreira, o poeta revisita sentimentos universais com uma musicalidade marcada por cadência e imagem, transformando experiências individuais em narrativas coletivas de luta, emoção e identidade. Sua poesia carrega a densidade da história negra brasileira, desvelando feridas e celebrando legados.
A riqueza poética de Nei Lopes também se expressa de maneira singular em seu talento para a rima, fluente, natural e absolutamente inventiva. Poucos autores conseguem articular com tanta espontaneidade e precisão os sons e sentidos da língua como ele faz. Suas rimas não apenas obedecem à métrica do samba, mas ampliam suas possibilidades expressivas, evocando humor, ironia, emoção e crítica social com leveza e inteligência. Em versos como “Na tina, vovó lavou / a roupa que mamãe vestiu quando foi batizada” ou “Na Copa de trinta e oito, foi beque da Seleção / No fiasco de cinquenta, passou mal do coração”, respectivamente trechos dos sambas, Coisa da Antiga, assinada com Wilson Moreira, e O Ganzá do Seu Leitão, parceria com Cléber Augusto, percebe-se um domínio técnico que transforma cenas corriqueiras em pequenos épicos rimados. A rima, para Nei Lopes, não é só ornamentação; é fio condutor da narrativa e da memória, elemento rítmico que une tradição e invenção.
Suas composições remetem à tradição dos poetas populares, dos repentistas nordestinos, do calango mineiro e, obviamente, dos compositores das rodas de samba do subúrbio carioca, mas elevam essa herança a um nível de refinamento raro. Mesmo quando utiliza estruturas simples, há uma cadência sofisticada, ancorada em um jogo de palavras que revela, ao mesmo tempo, uma escuta atenta do povo e uma erudição que não é pedante. A maneira como lida com aliterações, repetições e trocadilhos demonstra uma intimidade profunda com o idioma, capaz de transformar samba em crônica, história em poesia, crítica em melodia. É essa capacidade quase única de rimar com beleza, precisão e intenção que faz de nosso personagem uma voz incontornável na música e na literatura brasileiras.
A obra musical que Nei Lopes vem construindo no decorrer de sua trajetória é marcada pela diversidade em temas, personagens e referências culturais. Figuras como Tia Eulália, Seu Leitão e a própria Vovó, presente em Coisa da Antiga, ganham vida em canções que valorizam o cotidiano suburbano, os saberes populares e a história oral dos terreiros, das rodas de samba e das comunidades negras. Com humor, crítica e reverência, Nei retrata cenas da vida brasileira com um olhar aguçado e sensível às desigualdades sociais, aos apagamentos históricos e às contradições do país. Assim, não é exagero algum afirmar que sua obra é um verdadeiro documento poético e musical que articula cultura, história e resistência negra com brilhantismo.
Nascido no bairro de Irajá, zona norte do Rio de Janeiro, em 1942, Nei Lopes foi o décimo terceiro filho de Eurydice de Mendonça Lopes, dona de casa, e Luiz Braz Lopes, pedreiro. Desde muito cedo, a música fez parte de sua vida. Sua primeira grande influência foi a própria mãe, que costumava cantar sambas de Sinhô. O ambiente familiar também contribuía para a aproximação do nosso personagem com a música: um tio tocava flauta, o padrinho era violonista e um dos irmãos, Zeca, trabalhava como crooner em uma orquestra.
Sua infância também foi marcada pelo contato com manifestações religiosas afro-brasileiras. A casa, oficialmente católica, era frequentada por entidades espirituais que “aconselhavam e protegiam” a família, segundo seu relato. O menino que observava os rituais com certo temor se tornaria, décadas depois, um iniciado no Culto de Ifá, tradição iorubá que influenciaria decisivamente sua obra intelectual. O interesse pelas filosofias africanas também surgiu ainda na infância, consolidando-se mais tarde por meio do contato com o candomblé, o tambor, as danças, os cânticos e a teatralidade dos rituais. Contudo, foi o estudo das tradições iorubás e da história africana que lhe forneceu as ferramentas conceituais para pensar o Brasil. Para Nei, o conhecimento humano está contido em um “livro não escrito” que habita o Oráculo Ifá e se renova nessa tradição.
Formado em Direito, Nei Lopes chegou a atuar na área por cinco anos. Depois, experimentou a publicidade, até que, em 1972, teve seu primeiro samba, Figa de Guiné, uma parceria com Reginaldo Bessa, lançado pela cantora Alcione. A música revelou-se como seu verdadeiro caminho. Ainda na década de 1970, ao lado de seu maior parceiro, Wilson Moreira, e de grandes nomes como Candeia, fundou o Grêmio Recreativo de Arte Negra Quilombo. Porém, sua relação com o carnaval remonta à juventude. Aos 14 anos, Nei encantou-se com os Acadêmicos do Salgueiro, escola que despontava como uma agremiação revolucionária, tanto estética quanto politicamente, no carnaval carioca. Em 1963, desfilou pela primeira vez, quando a agremiação saiu com o enredo “Xica da Silva” e o samba composto pela dupla Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho, experiência que descreve como uma das maiores emoções de sua vida. Posteriormente, integrou a ala de compositores e a velha guarda da escola. Também fez parte da diretoria da Unidos de Vila Isabel.
Apesar de sua estreita ligação com o carnaval, Nei Lopes não se abstém de criticar os rumos tomados pelas escolas de samba. Essa crítica também se manifesta em sua análise sobre o universo carnavalesco. Desde os anos 1980, ele distingue o “samba”, como gênero musical, da “escola de samba”, enquanto forma de organização social e expressão comunitária. Em seu primeiro livro, denunciou as transformações provocadas pela inserção definitiva das agremiações na lógica do mercado. Por um período, afastou-se dos desfiles para mergulhar no samba de terreiro e em parcerias com nomes como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Fundo de Quintal, onde pôde compor sambas críticos e bonitos ao mesmo tempo: de denúncia e de amor.
Recentemente, tem se reconectado às escolas, ao perceber o surgimento de enredos combativos, voltados à valorização da religiosidade afro-brasileira. “Isso é muito bom, e me dá mais vontade de voltar ao meu Salgueiro”, afirma. No entanto, ressalta que a força desses enredos não deve se restringir ao Carnaval. “Tem que gerar filmes, peças teatrais”, diz, embora reconheça que o campo da cultura ainda é dominado por expressões que não dialogam com as vivências negras. A luta, ele admite, é desigual, pois é difícil resistir sem acesso à educação, saúde, emprego e segurança pública.
O samba e o carnaval continuam no centro de sua narrativa e de sua militância intelectual. Lopes observa que as grandes transformações nas escolas se intensificaram a partir da década de 1970, quando a música perdeu espaço para a cenografia e o poder dos compositores foi reduzido. “Na ficção, antecipei no tempo essa discussão. Antigamente, os grandes líderes eram Paulo da Portela, Cartola, Mano Elói; todos compositores”, lamenta.
Apesar de, como já dito anteriormente, ter formação em Direito e Ciências Sociais pela antiga Universidade do Brasil (atual UFRJ), essa formação, embora rica, deixou inquietudes em Nei Lopes, que não encontrava respostas nas explicações eurocentradas então predominantes no currículo universitário. Por isso, buscou nas bibliotecas e nos encontros da vida os conhecimentos que não encontrava em sala de aula. Passou a estudar profundamente as culturas africanas e a diáspora negra, tornando-se um dos mais respeitados pesquisadores do tema no Brasil, experiência que foi fundamental para sua consolidação como intelectual e escritor.
Dessas inquietações surgiram obras essenciais, como Bantos, malês e identidade negra (1988), O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical (1992), Enciclopédia brasileira da diáspora africana (2004) e Ifá Lucumí – O resgate da tradição (2020). Esta última marca a redescoberta do culto a Orunmilá, que Nei conheceu após uma viagem a Cuba no início dos anos 1990. Ele define essa vivência como um divisor de águas. A aproximação com a santería cubana lhe deu “régua e compasso”, na expressão de Gilberto Gil, que também já gravou composições suas.
De volta ao Brasil, Nei foi peça-chave na retomada da tradição do Oráculo Ifá, considerada extinta no Rio de Janeiro desde a morte de Tia Ciata, em 1924. Tornou-se sacerdote e viu a continuidade de sua fé se materializar no neto, nascido em 1999, que superou uma grave doença e hoje é reconhecido como um dos babalaôs mais respeitados de sua geração.
Reconhecido com o título de doutor honoris causa por quatro universidades públicas brasileiras (UFRGS, UFRRJ, UERJ e UFRJ), Nei Lopes afirma ver mais “resiliência” do que “resistência” no povo negro brasileiro. “Ou melhor: teimosia”, diz, com o humor melancólico de quem carrega a lucidez dos mestres. Aos quase 83 anos, não esconde a frustração com os modismos e a superficialidade que ainda cercam o interesse pelas culturas africanas. “Vejo mais animação do que ações efetivas. Mais modismo do que resultados”, resume.
Para ele, esse esvaziamento tem raízes históricas. A separação do Egito do restante da África, tantas vezes naturalizada nos livros didáticos, expressa um projeto colonial. Ao desqualificar antigas civilizações negras como Mali, Gana e Songhai, o pensamento eurocêntrico tentou apagar a sofisticação filosófica, científica e política do continente africano. A estratégia final do supremacismo, observa Nei, foi justamente apagar o saber africano. Nesse processo, descolar o Egito da África foi um passo fundamental.
Ainda assim, Nei Lopes não se rende ao desencanto. Em sua trajetória, o samba, a escrita e a fé caminham juntos. Com sua voz grave, sua pena afiada e sua escuta atenta aos ancestrais, ele segue ensinando que o conhecimento não cabe somente nos livros, e que o axé da palavra pode ser tão poderoso quanto o toque do tambor. Como um verdadeiro griô, Nei Lopes é ponte entre tempos e territórios, entre o passado roubado e o futuro imaginado, entre a memória negra e a utopia possível.
Se sua trajetória enquanto escritor e pesquisador é de grande relevância, sua contribuição musical é ainda mais vasta: são mais de 350 composições gravadas por artistas como Beth Carvalho, Alcione e João Nogueira. Com Wilson Moreira, firmou uma das parcerias mais fecundas da história do samba, sintetizada no antológico álbum A Arte Negra de Wilson Moreira e Nei Lopes (1980). Para Nei, a parceria musical é um encontro de complementaridades: “quando a gente encontra no parceiro qualidades e oportunidades que nos faltam”, resume.
Ao abandonar a advocacia para se dedicar à música popular, relembra que, embora a decisão pudesse parecer ousada à época, foi, para ele, uma escolha certeira. “Foi a decisão mais acertada da minha vida. Deixei a advocacia para viver da minha criação intelectual, mas sem abandonar o Direito.” Como compositor, teve canções gravadas também por Martinho da Vila, Chico Buarque, Zeca Pagodinho e Dudu Nobre.
Seu primeiro álbum de destaque, A Arte Negra de Wilson Moreira e Nei Lopes (1980), lançado pela EMI-Odeon, já demonstra o compromisso com uma musicalidade enraizada na tradição do samba de terreiro e na memória ancestral africana. Esse trabalho, considerado um marco no samba contemporâneo, foi seguido por Negro Mesmo (1983), obra solo em que Nei aprofunda sua pesquisa musical e lírica sobre o universo negro-brasileiro, lançada pelo selo Lira Paulistana/Continental. Em 1985, retomou a parceria com Wilson Moreira em O Partido Muito Alto de Wilson Moreira e Nei Lopes, pela EMI-Odeon, reafirmando a força do partido-alto como expressão do samba autêntico. Nesses álbuns, a simbiose entre os dois compositores se revela tanto na estrutura rítmica quanto na escolha temática, que valoriza o cotidiano, a resistência e a ancestralidade.
Já nos anos 1990, Nei amplia seus projetos autorais com Zumbi 300 Anos – Canto Banto (1996), lançado pela gravadora Saci. O álbum é uma verdadeira homenagem à história e à cultura dos povos bantu, compondo um mosaico sonoro e político que reafirma seu compromisso com a memória da diáspora africana. Três anos depois, lançou Sincopando o Breque (1999), pelo selo CPC-UMES, em que mergulha com maestria no subgênero do samba que dialoga com o teatro de revista, o humor e a crítica social. Nos anos 2000, sua produção seguiu intensa. De Letra & Música (2000), pela Universal Music, reúne canções que evidenciam sua versatilidade como letrista e cantor, reafirmando sua relevância no cenário da música popular ao dividir as faixas com grandes nomes da MPB. Partido ao Cubo (2004) e Chutando o Balde (2009), ambos pelo selo Fina Flor, dão continuidade a esse percurso, demonstrando sua capacidade de renovar a linguagem do samba sem perder o vínculo com suas raízes e seu engajamento político.
No ano em que completou 80 anos, reafirmou sua importância como um dos maiores nomes da música popular brasileira com o lançamento do livro Academia de Letras (Editora Contracorrente), uma coletânea de 500 páginas que reúne grande parte de suas composições. A publicação, verdadeiro tesouro da música brasileira das últimas cinco décadas, é enriquecida por notas explicativas escritas pelo próprio autor, nas quais ele contextualiza momentos históricos, curiosidades e detalhes sobre suas colaborações musicais.
Para um perfil completo do nosso personagem, não se pode deixar de abordar seu trabalho como dicionarista. Com uma vasta bibliografia voltada à história e cultura africanas e afro-brasileiras, como, por exemplo, o Dicionário da Antiguidade Africana, a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, o Novo Dicionário Banto do Brasil e o Dicionário da História Social do Samba (este último escrito em parceria com Luiz Antonio Simas), Nei Lopes se define como um autor movido por missão e prazer. “A invisibilidade do meu povo e a inferiorização dos nossos valores me incomodam muito”, afirma.
Como lexicógrafo autodidata, Lopes publicou sete dicionários e uma enciclopédia, totalizando mais de 30 mil verbetes. Seu pioneiro Dicionário Banto do Brasil (1999) teve 250 verbetes incorporados ao Dicionário Houaiss. Já o Dicionário da História Social do Samba (2015), escrito com Luiz Antonio Simas, foi agraciado com o Prêmio Jabuti ao desconstruir o mito da origem exclusivamente carioca do gênero musical. Sua metodologia combina pesquisa acadêmica, sustentada por uma biblioteca de cerca de 3 mil volumes, incluindo raridades como um dicionário francês-quicongo do século XIX, com a vivência nas comunidades. “Sou um bibliômano que ouve os morros e terreiros”, resume. Essa abordagem híbrida resultou em obras fundamentais como a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (2004), com 9 mil verbetes, e o já citado Dicionário da História Social do Samba, que se tornou referência no campo dos estudos do samba e da cultura afro-brasileira.
Nei Lopes é também um crítico ferrenho do ensino eurocêntrico. Desenvolveu uma pedagogia baseada no resgate civilizatório das matrizes africanas. Para ele, iniciar a abordagem da história negra a partir da escravidão é traumatizante. “Começar pela diáspora traumatiza os jovens negros. Mostro aos jovens as grandes civilizações do Mali, Songhai e Congo”. Seu Dicionário Escolar Afro-Brasileiro (2006) nasceu dessa urgência didática, buscando promover uma educação mais plural e afirmativa.
Nei Lopes possui um domínio raro das palavras, escrevendo com a mesma cadência com que compõe suas melodias. Sua escrita é ritmada, mas nunca superficial; aborda com profundidade temas como a cultura negra e as mazelas sociais, incluindo a corrupção. É um dos grandes intelectuais da cultura brasileira. Sambista, poeta, escritor, pesquisador e babalaô, articula com rara sabedoria os saberes das ruas, dos terreiros e das bibliotecas. Com os pés fincados no chão do subúrbio e a mente voltada às cosmovisões africanas, Nei construiu um legado que atravessa a música, a literatura, a filosofia e a religiosidade, firmando-se como uma referência incontornável do pensamento afro-brasileiro contemporâneo.
Sua obra não se trata de um simples retorno ao passado, mas de uma reatualização viva da ancestralidade. Para Nei, esse conceito, tantas vezes banalizado, deve ser compreendido como a transmissão de experiências e saberes positivos entre gerações. “Um patriarca desonesto, egoísta, malfeitor, não transmite coisas boas aos netos, bisnetos, tetranetos”, adverte. A ancestralidade, portanto, não é apenas uma questão de linhagem, mas uma herança ética: uma pedagogia da vida que resiste à mercantilização e à espetacularização.
Entre a pesquisa, a literatura e a música, Nei Lopes construiu uma obra coerente e potente, que valoriza as raízes africanas do Brasil e oferece uma crítica lúcida e fundamentada das exclusões ainda presentes na sociedade. Seu trabalho é, ao mesmo tempo, um ato de resistência e uma celebração da cultura negra. Trata-se de uma missão que ele segue desempenhando com elegância, coragem e erudição. Sua discografia não é somente uma sucessão de álbuns, mas sim um verdadeiro projeto cultural de afirmação e reinterpretação da história negra no Brasil por meio da música. Em cada disco, sua voz, sua escrita e seu canto tornam-se instrumentos de luta, memória e beleza.
Diante de tamanha produção, seja na música, marcada por soluções poéticas e rimas elaboradas e insólitas, seja na ficção ou em seu trabalho como dicionarista, Nei Lopes já há muito tempo mereceria uma cadeira cativa na Academia Brasileira de Letras, fundada por Machado de Assis. No entanto, o que se pode esperar de uma instituição que, além de abrigar membros com trajetórias bastante questionáveis, envolveu-se recentemente em uma polêmica ao anunciar a criação de um avatar digital do próprio Machado? Na época de seu lançamento, a decisão foi amplamente criticada por promover o “embranquecimento” do escritor, um homem negro, nascido em uma família pobre no Rio de Janeiro do século XIX. Embora a Academia insista em ignorar a contribuição de Nei Lopes e de tantos outros intelectuais negros, é fato que o povo já o consagrou. Sua obra fecunda, que articula música, literatura e conhecimento ancestral, ocupa com legitimidade o lugar que as instituições tradicionais ainda hesitam em reconhecer.
Encerro este perfil com alguns versos de Samba de Eleguá, pois, assim como Eleguá, senhor das encruzilhadas e guardião dos caminhos, Nei Lopes abre portas com a palavra. Ele conduz o samba e o saber negro pelas trilhas da memória, da resistência e da fé.
Samba é de Eleguá
Como a régua é de medir e de traçar
Como a trégua é o momento de parar
E a mágoa é pra calar.
Samba é de Eleguá
Como a água é de beber e de lavar
Como a língua é pra comer e pra falar
Como a légua é caminhar
Eleguá é viajeiro
Mensageiro de Iorubá
Como o samba é timoneiro
Do pandeiro e do ganzá
Eleguá é meu tambor
Como o samba também é
Ele é guarda de meu corpo,
Meu caminho e minha fé
Samba de Eleguá (Nei Lopes)
Daniel Costa é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C. Kolombolo diá Piratininga
Obras de Nei Lopes:
a.Bibliografia
Primeira antologia de novos poetas do Rio de Janeiro. Org. César de Araújo e Walmir Ayala. Rio de Janeiro: Solombra, 1975.
O samba, na Realidade. Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1981.
Malês: o islã negro no Brasil. In Afro Diásporas, Ano 3, nº 6 e 7, abril/dez. de 1985.
Cultura banta no Brasil, uma introdução. In Afro Diásporas, Ano 3, nº 6 e 7, abril/dez. de 1985.
Casos crioulos. Rio de Janeiro: CCM Editora, 1987.
Bantos, Malês e Identidade Negra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988.
O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical. Rio de Janeiro: Pallas, 1992.
Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1996.
Incursões sobre a pele. Rio de Janeiro: Artium, 1996.
171, Lapa-Irajá – casos e enredos do samba. Rio de Janeiro: Folha Seca, 1999.
Zé Kéti, o samba sem senhor. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
Guimbaustrilho e outros mistérios suburbanos. Rio de Janeiro: Dantes/RIOARTE, 2001.
Logunedé: santo menino que velho respeita. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
Sambeabá: o samba que não se aprende na escola. Rio de Janeiro: Folha Seca; Casa da Palavra, 2003.
Novo dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 2003.
Enciclopédia brasileira da diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
Terras de palavras. Org. Fernanda Felisberto. Rio de Janeiro: Pallas: Afirma, 2004.
Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: SENAC Rio, 2005.
Partido-alto, samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
Dicionário escolar afro-brasileiro. São Paulo: Selo Negro, 2006.
20 contos e uns trocados. Rio de Janeiro: Record, 2006.
O Racismo explicado aos Meus Filhos. São Paulo: Agir, 2007.
Dicionário literário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2007.
Histórias do Tio Jimbo. Belo Horizonte: Mazza, 2007.
História e cultura africana e afro-brasileira. São Paulo: Barsa-Planeta, 2008.
Mandingas da mulata velha na cidade nova. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.
Questão de pele. Org. Luiz Ruffato. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.
Oiobomé. Rio de Janeiro: Agir, 2010.
Dicionário da antiguidade africana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
Esta árvore dourada que supomos. São Paulo: Babel, 2011.
Dicionário da hinterlândia carioca. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
A Lua Triste Descamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
Poétnica. Rio de Janeiro: Mórula, 2014.
Dicionário da História Social do Samba. Com Luiz Antonio Simas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
Rio negro, 50. Rio de Janeiro: Record, 2015.
Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Org. Eduardo de Assis Duarte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, vol. 2.
Nas águas dessa baía há muito tempo: contos da Guanabara. Rio de Janeiro: Record, 2017.
O preto que falava iídiche. Rio de Janeiro: Record, 2018.
Meu lote. Org. Marcos Fernando. Rio de Janeiro: Numa, 2019.
Agora serve o coração. Rio de Janeiro: Record, 2019.
Afro-Brasil reluzente: 100 personalidades notáveis do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
Academia de Letras. Org. Marcus Fernando. São Paulo: Contracorrente, 2022.
A Lua Triste Descamba. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2023.
Tia Ciata, a grande mãe do samba. Com Rui de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2024.
Salgueiro: o “Quilombo” Moderno. Com Leonardo Bruno. Rio de Janeiro: Outras Expressões / Mórula, 2024.
2.Discografia
Tem gente bamba na roda de samba – Continental, 1973
A arte negra de Wilson Moreira e Nei Lopes – EMI-Odeon, 1980
Negro mesmo – Lira Paulistana/Continental, 1983
O partido muito alto de Wilson Moreira e Nei Lopes – EMI-Odeon, 1985
Zumbi: 300 anos cantando Banto – Saci, 1996
Sincopando o Breque – CPC-Umes, 1999
De letra & Música – Universal, 2000
Partido ao cubo – Fina Flor, 2004
Chutando o balde – Gravadora Fina Flor, 2009
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