Na segunda-feira 20 termina o prazo estabelecido pelos governos do Brasil e da China para a definição de uma lista de projetos comuns a partir dos 37 memorandos e cartas de intenções assinados pelos presidentes Lula e Xi Jinping em novembro, quando da visita do chefe do governo chinês ao País. Um fato relevante. Não seria realista, porém, esperar formulações acabadas, tanto pela dificuldade típica de projetos bilaterais quanto pelas incertezas domésticas. Sem estratégia e planejamento bem definidos do lado brasileiro, será complicado obter avanços articulados a uma perspectiva de longo prazo, avaliam economistas.
Uma evidência das indefinições é a discussão, dentro e fora do governo, a respeito de qual diretriz adotar em relação ao acordo. Alguns reivindicam uma articulação mais efetiva dos investimentos chineses no esforço de reindustrialização e descarbonização do País, outros acreditam ser mais segura uma aproximação lenta e gradual. O economista Elias Jabbour, que integrou a assessoria do Banco do BRICS, vê uma queda de braço em Brasília sobre o que deve ser a relação econômica entre os dois países. Uma parte dos técnicos do governo defende certo distanciamento em relação ao projeto Cinturão e Rota, ou Belt & Road, para não haver choque com os Estados Unidos, apontou em debate organizado pelo Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE). Segundo Jabbour, há uma expectativa, por parte da China, de que o Brasil defina seus interesses para atuar em função desse escopo.
Meses atrás, quando visitou a China, Lula sinalizou positivamente para a adesão ao Cinturão e Rota, lançado em 2013 e maior projeto de infraestrutura em curso no planeta, com 21 países latino-americanos vinculados. Pouco antes da visita de Jinping, o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, negou, entretanto, a adesão do Brasil ao plano, para logo a seguir dizer que não era bem assim, ressalta Melissa Cambuhy, coordenadora de relações governamentais do China Midia Group, conglomerado de mídia. Do lado chinês, acrescenta Cambuhy, após o encontro no Brasil restou a percepção de que não foi possível construir o cenário político para adesão ao projeto. “Ficou mais ou menos o tom de ‘vamos tentar construir esse caminho’, em uma conjuntura que inclui as consequências da eleição de Trump”. De concreto, além dos 37 memorandos de entendimento, há a abertura do mercado chinês para o gergelim, as proteínas de pescado e as uvas frescas, uma declaração de interesse da China em amplificar e qualificar essas relações e a responsabilidade do País de saber o que quer e o que pretende demandar do parceiro para atingir seus objetivos.
O Brasil tem evitado uma adesão ao Cinturão e Rota, programa de infraestrutura global dos chineses
“Eu não me prenderia muito a essa discussão de Cinturão e Rota. Na maior parte dos países latino-americanos que assinaram um protocolo de entrada nesse programa, o fato de terem ingressado não mudou a pauta da relação com a China”, ressalta o economista Carlos Medeiros, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Do ponto de vista econômico, a questão central é saber quais os projetos e pontos que o País quer discutir de fato. “As cartas de intenção são excelentes, mas isso aí não adianta. Quais são os projetos? E mais: quem são os sujeitos, as grandes empresas interessadas em entrar nessas trajetórias?”, pergunta o economista. “É evidente que uma mudança no sentido da cooperação científico-tecnológica requer investimentos públicos e expansão dos gastos em pesquisa e desenvolvimento. Claro que tudo isso bate de frente com uma política fiscal contracionista e imposta pelo mercado. Portanto, o que vai acontecer vai depender muito de resolvermos os desafios internos no enfrentamento dessas questões.”
O estoque de capital estrangeiro no Brasil sempre foi dominado pelos Estados Unidos, mas a China passou a crescer e, embora ainda ocupe uma posição bem menor em relação aos demais países investidores, está em expansão, em especial em determinadas áreas estratégicas, em particular àquelas ligadas a infraestrutura, energia e distribuição de energia, e agora no setor manufatureiro. Uma evidência desse impulso é o anúncio das chinesas BYD e GWM do início da fabricação de carros elétricos no País a partir deste ano. A elevação dos investimentos não representa, porém, uma alteração da configuração clássica centro-periferia, do ponto de vista das relações comerciais entre as duas nações. Na balança comercial de 2023, a China exportou para o Brasil painéis solares, carros híbridos, carros elétricos, cartões de memória, peças, celulares, herbicidas e processadores, enquanto o Brasil despachou basicamente soja, petróleo, minério de ferro, carne bovina, celulose e algodão. Nos investimentos e no comércio, a direção das relações segue no rumo de manter essa configuração, se nada mudar. “O estoque de capital já investido na área de infraestrutura e seus interesses comerciais tendem a reproduzir esse tipo de padrão, que, de certa maneira, se assemelha, talvez até mais classicamente, ao que existia na América Latina, no Brasil em particular, com a Inglaterra no século XIX”, compara Medeiros.
O economista considera importante debater de modo amplo definições sobre quais as possibilidades de se implementarem estratégias visando mudar a direção da especialização econômica brasileira em primários e fazer da cooperação uma relação assentada em um comércio estratégico, e não simplesmente uma troca na direção das vantagens, dos recursos e das disponibilidades de cada lado, mas de “alguma coisa que permita um processo de mudança”. Os chineses “são muito abertos na discussão, embora tenham sempre deixado muito claro quais são os seus interesses”. O que falta, do ponto de vista brasileiro, “é entender o que é que nós, enquanto país autônomo, queremos com esta parceria. Queremos simplesmente ampliar as exportações tradicionais, incluindo agora os novos materiais desejados pela transição energética, como o nióbio? Queremos fazer apenas esta transição, ou almejamos uma parceria assentada na cooperação científica para novas indústrias e novas atividades? Isso aí é uma questão que o Brasil vai ter de definir”.
A questão mais instigante, afirma, é como construir, agora, em torno das relações econômicas entre os países, um transbordamento para uma área centrada menos em comércio e mais na cooperação científico-tecnológica, contemplada no acordo, do ponto de vista do desenvolvimento das atividades mais fundamentais das novas tecnologias, nas quais a China tem dado passos muito avançados, na digitalização e na descarbonização. Em outras palavras, identificar em qual sentido a cooperação científica e tecnológica entre os dois países poderia capacitar o Brasil a enfrentar os gargalos de infraestrutura e da digitalização e, ao mesmo tempo, criar as condições fundamentais para uma descarbonização.
Os investimentos diretos chineses no Brasil estão em expansão
Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, colunista desta revista, na questão científico-tecnológica há um espaço enorme de cooperação, se o Brasil definir os protagonistas, os sujeitos. Ao mesmo tempo, o País está à mercê de um mercado financeiro internacional que se encontra em um momento muito delicado. Talvez haja uma possibilidade de avançar no financiamento, o que é muito importante, e contar com o apoio do Banco de Desenvolvimento da China, que fez um gesto para o BNDES, com um aporte de 5 bilhões de yuans, que precisa ser aumentado. “A cooperação pode envolver isto, basta termos o nosso foco. É preciso criar os instrumentos para o avanço da economia brasileira e da relação.”
Nos últimos 15 anos, a China tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil, superando os Estados Unidos em 2009 como destino das exportações e em 2012 como origem das importações, destaca o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. Entre 2010 e 2023, a participação de produtos básicos nas exportações nativas aumentou de 44,9% para 58,9%, enquanto a parcela de bens manufaturados caiu de 39% para 28,3%. No mesmo período, as importações de manufaturados subiram de 83,1% para 84,9%. O padrão de comércio entre Brasil e China, ressalta o Iedi, assemelha-se ao modelo “centro-periferia” de um século atrás, quando o Brasil exportava produtos primários como o café e importava bens industriais. O que o País menos precisa, portanto, é reforçar tal modelo. •
Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital, em 22 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Negócio da China?’