“Palavras são palavras, nada mais que palavras”. Assim discursava Walfrido Canavieira, prefeito da fictícia Chico City, criação de Chico Anísio.
Obrigo-me a discordar do ilustre demagogo: palavras têm um peso medonho…
Vejam essas, que figuram no Projeto de Resolução do 16.º Congresso do PCdoB: “O socialismo é a alternativa necessária e viável”. Meu São Jãozim Mazonas das Pororoca! Toneladas do que pensar…
Confesso que, logo que li, titubeei: Como assim, necessária e viável? Pareceu-me, de saída, que dois conceitos excludentes habitavam a mesma frase: o socialismo como inevitabilidade histórica, presente em necessária; e o socialismo como possibilidade dentre outras (evitável, portanto), figurado em viável.
Fui ao dicionário Houaiss. Nele encontro, para viável, acepções que vão, desde as noções de realizável, exequível (possibilidades), às de caminho pavimentado, transitável e condições amadurecidas…
Volto ao texto do 16.º. Releio , tresleio e leio outro tanto. Concluo por um entendimento: o de que o socialismo é não só a (assim mesmo com artigo definido) alternativa ao capitalismo, necessária (inevitável) porque, como demonstra Marx, é a negação necessária objetivamente imposta às contradições do próprio capitalismo – contradições essas que nosso documento comprova, não somente confirmadas na atualidade, como agudizadas –, como é a alternativa viável: exequível na atualidade porque amadurecidas as contradições do sistema mundial do capital (lembremos de Lênin, em seu Imperialismo etc.), comprovado o seu sucesso (vide a China socialista) e delineado o caminho, no Brasil, para a conquista do poder operário e popular que encete a marcha da construção econômica e social reclamada pelos trabalhadores e a Nação.
Se esse entendimento está correto, sugiro que, em todo o Projeto de Resolução, se uniformize a expressão “o socialismo é a alternativa necessária e viável”. Há trechos em que aparece “o socialismo é uma alternativa etc.”, e não “a alternativa”. Um indefinido no lugar de um definido faz toda a diferença. Há outros em que a ordem se inverte: no lugar de “necessária e viável”, “viável e necessária”. A ordem dos tratores, neste particular, pode levar ao comprometimento do viaduto… Ou seja: a colocação dos termos também tem seu peso simbólico.
Por que, de saída, encafifei? E por que esses aparentes preciosismos? Por conta da pendenga entre inevitabilistas e evitabilistas (ou possibilistas). O inevitabilista aqui, à mínima suspeita de possibilismo, ainda que fruto de um cochilo sem maldade, salta, peixeira em riste, no meio do salão. Aos avessos a exageros, peço humildes desculpas militantes.
Possibilistas advogam que o socialismo é possível, não inevitável, embora alguns o admitam necessário, não na perspectiva filosófica dialético-materialista, na qual necessário significa inevitável – ou seja, determinado pelas imanentes contradições objetivas do fenômeno. A necessidade admitida pelos possibilistas paira no campo da ética de um humanismo difuso. Por outro lado, consideram que a ideia de inevitabilidade leva à inação e à elisão do sujeito historicamente determinado.
Ora… Não há possibilidade de o capitalismo cair de maduro sem a ação humana – porque é essa ação humana que é necessária (ou inevitável). São as contradições econômico-sociais que amadurecem, e não… frutas. Sendo econômico-sociais, são contradições humanas, objetivas – entre classes de humanos, no caso. É inevitável que contradições dadas entre essas classes levem à luta entre elas, até a superação, a ruptura necessária.
A questão da inevitabilidade do socialismo liga-se ao papel da classe operária (produtora de sobrevalor) como o sujeito social, eleito pelas condições históricas da época do capitalismo, cuja missão incontornável é destruir este capitalismo e implementar sua democracia/ditadura de classe.
Via de regra, o possibilismo põe em dúvida o papel de vanguarda da classe operária na luta transformadora. Fetichizando as naturais transformações do processo produtivo capitalista e a consequente mudança no perfil e no tamanho da classe operária (mudança que se opera desde a origem do sistema), muitos apostam em novos atores sociais (“burguesia nacional”, classe média, excluídos, precarizados, “nova classe trabalhadora”, etc).
O capitalismo, apesar de sua crescente financeirização, já vislumbrada n’O Capital de Marx, segue sendo um sistema caracterizado pela produção e acumulação de mercadorias, unidades portadoras do valor oriundo do trabalho social humano. Há uma classe de homens e mulheres que, com o seu trabalho, produz esse valor na forma de mercadorias, e há outra classe de humanos que se apropria privadamente deste valor e dele extrai lucro, condenando os primeiros, e outras classes de humanos, às instabilidades e agruras do sistema dominado e regido pelo capital financeiro.
Segue, pois, existindo uma classe de produtores de mais-valia (proletários, operários, trabalhadores – importa menos seu nome do que seu conteúdo de classe), que, pela posição que ocupa no processo produtivo
presente, por menor que seja seu tamanho numérico e por mais diferente que se mostre seu perfil, segue, objetivamente, sendo a classe mais avançada da sociedade – creia ela ou não; tenha ou não consciência disso; queira ou não esse ou aquele.
A ação hodierna infligida pelo capital contra os trabalhadores – ação econômica, política, social, ideológica; coercitivo-opressiva, repressiva, desviante ou sedutora – demonstra a centralidade da classe operária e dos demais trabalhadores, ao mesmo tempo, na manutenção/reprodução e na derrocada do capitalismo. Parece não haver dúvidas, para as classes dominantes, do papel de vanguarda, econômica, social e política, dos operários face à humanidade. Daí seu esforço em impedir que eles se reconheçam como classe em si e cheguem à consciência de classe para si – vale dizer: à consciência da necessidade de ruptura com o regime do capital.
Essa batalha ideológica em torno da consciência da classe operária, e das demais classes subalternas ao capital, é parte integrante irrecusável da luta de classes, e assume foros de luta política travada no mundo, assimetricamente, entre a vanguarda das classes dominantes e a vanguarda dos trabalhadores.
A centralidade da forma de luta política está em seu conteúdo de luta pelo poder de Estado, e no fato de ser a arena propícia para minar a dominação burguesa e acumular forças no campo dos trabalhadores para se promover a ruptura. Daí a importância da estratégia e das táticas políticas como meios de acumulação de força e caminho para o socialismo. Daí a consigna de que a revolução proletária e seu partido se constroem pela política, e não por pregação revolucionarista.
Veja-se o Projeto de Resolução: Partindo de uma análise percuciente do estágio atual da luta de classes no mundo, com inevitáveis impactos no Brasil, identifica a necessidade de se constituir um renovado programa de reformas nacionais e democráticas estruturais que unifique a esquerda, propicie aliança com a centro-esquerda e o centro, e mobilize o apoio da maioria dos brasileiros, de modo a isolar a extrema-direita e a direita entreguista, para que as forças progressistas vençam as eleições de 2026 e constituam um governo que abra caminho para um projeto nacional de desenvolvimento soberano, que rompa com a lógica imperialista e rentista, incentive a industrialização, valorize o trabalho, amplie a democracia e promova direitos sociais.
O que intentam os comunistas? Criar melhores condições para a luta pelo objetivo estratégico dos proletários brasileiros e seus aliados – objetivo que está além das tarefas nacionais e democráticas, mas que não prescinde delas, uma vez que pertencem ao processo de ruptura e à fase preliminar da transição do capitalismo para o socialismo – necessário, e viável.
Elder Vieira é escritor e servidor público, professor da Escola Nacional João Amazonas, e membro do Comitê Municipal e do Comitê Estadual de São Paulo.