Nascimento da Burguesia e do Empreendedorismo Popular

por Fernando Nogueira da Costa

A burguesia, enquanto grupo social urbano, não-nobre e ligado à atividade econômica mercantil, surge gradualmente na Europa ocidental a partir do século XI. Consolida-se nos séculos XII a XIV, com o renascimento do comércio e o fortalecimento das cidades. O termo “burguês” vem de bourg (francês) ou burg (alemão) com referência a uma cidade murada ou um centro urbano.

Os primeiros burgueses surgiram, na Europa Ocidental, em Cidades-Estados autônomas. Na Itália, em Veneza, Gênova, Florença e Pisa, comerciantes marítimos e banqueiros floresceram com o comércio mediterrâneo e as Cruzadas.

Bruges e Antuérpia são duas cidades na Bélgica, mais precisamente na região da Flandres. Bruges é conhecida pela sua arquitetura medieval e canais, enquanto Antuérpia é um importante centro portuário. Lá, burgueses foram empreendedores em manufaturas têxteis e intermediação entre o norte e o sul da Europa.

Na Alemanha, precisamente na Hansa Germânica, cidades comerciais estabeleceram rede de comércio marítimo no Báltico e no Norte. Na França e na Inglaterra, centros como Paris, Lyon, Londres e cidades da Normandia tinham mercados locais e conexões externas.

Essas cidades se tornaram espaços autônomos de sociabilidade, regulação e poder econômico. Com direitos próprios (cartas de franquia), isentavam os burgueses de certos tributos feudais.

A origem da riqueza burguesa se deu em comércio local: feiras, mercados e circulação de produtos entre campo e cidade. Depois, surgiu o comércio de longa distância com rotas mediterrâneas, bálticas e mais tarde atlânticas, especialmente após o século XV.

A partir do artesanato, houve ganho de escala com manufaturas urbanas de tecidos, metais, vidros e produtos artesanais com maior valor agregado. Desde então, tornou-se importante a mediação de câmbio e crédito: práticas de financiamento comercial, câmbio de moedas e letras de câmbio.

Uma pergunta-chave é: onde os burgueses guardavam ou aplicavam o dinheiro acumulado? Antes dos bancos institucionais (séculos XI–XIII), guardavam dinheiro em cofre pessoal ou com ordens religiosas como os Templários ou os Hospitalários.

Os Cavaleiros Templários, também conhecidos como Ordem do Templo, eram uma ordem religiosa e militar medieval, fundada em 1118 para proteger peregrinos cristãos com destino a Jerusalém, considerada a Terra Santa. Ao longo dos séculos, a Ordem do Templo cresceu em tamanho e influência, tornando-se uma força militar e financeira  prévia aos bancos surgidos no início do século XV.

A Ordem dos Cavaleiros Hospitalários, também conhecida como Ordem de São João de Jerusalém ou Ordem de Malta, era uma organização de cavalaria que surgiu durante as Cruzadas. Essa ordem tinha como objetivo cuidar dos peregrinos em Jerusalém, mas também participou de várias batalhas e desempenhou um papel importante na história da Europa.

Os burgueses também investiam na aquisição de imóveis urbanos para garantir renda com aluguéis – assim como os argentinos ricos investem em imóveis dolarizados em preços e aluguéis. Aplicavam na manutenção de estoques comerciais e financiamento de expedições. Reinvestiam no próprio comércio, como capital circulante, ou seja, compras à frente, crédito a fornecedores.

Com o gradual surgimento das casas bancárias, nos séculos XIII–XIV, passaram a utilizar casas de câmbio e de banca em cidades como Florença, Lucca e Veneza das conhecidas famílias dinásticas Bardi, Medici e Peruzzi. Utilizavam letras de câmbio para transferências seguras entre cidades. Emprestavam ao Estado ou compravam títulos de dívida pública local, principalmente em repúblicas mercantis como Florença.

Os instrumentos financeiros eram ainda rudimentares. Em “sociedades em comandita”, investidores (sócios ocultos) aplicavam capital em viagens marítimas, partilhando riscos e lucros. Veja o filme O Mercador de Veneza (2004), baseada na peça teatral do autor inglês William Shakespeare, uma comédia trágica escrita entre 1596 e 1598.

O personagem-título é o mercador Antônio, e não o agiota judeu Shylock, personagem mais importante e célebre da obra. Shylock, na cena do Judeu contra o dito Mercador, exige cortar uma libra de sua carne, oferecida como garantia do empréstimo, caloteado pelo fracasso das navegações aventureiras.

Cartas-partidas e contratos de risco marítimo passaram a ser formas primitivas de seguros e de financiamento comercial.

Conhecimento interessante é a respeito da relação com o Poder e com a Igreja. A burguesia comprava privilégios jurídicos e fiscais dos senhores feudais ou do rei, garantindo isenções e proteção.

Em contrapartida, financiava catedrais, confrarias, missas e ordens religiosas, acumulando capital simbólico e legitimidade espiritual. Muitos burgueses se tornaram credores de reis e nobres. Isto lhes garantia influência crescente, mas também risco político.

Em síntese, veja o quadro abaixo com a gênese da burguesia e aplicação de capital.

Elemento Características
Onde surgiu? Cidades comerciais da Europa Ocidental (Itália, Flandres, Alemanha, França)
Quando? A partir do século XI, com consolidação no XIII–XIV
Origem do capital Comércio local e internacional, manufaturas, câmbio, crédito
Onde aplicavam? Estoques comerciais, imóveis, expedições marítimas, letras de câmbio, dívidas públicas, Igreja
Instituições de apoio Casas bancárias italianas, ordens religiosas, guildas urbanas, cartas de franquia
Forma de acumulação Predominantemente reinvestida no circuito mercantil e urbano

A burguesia nasceu, assim, como classe urbana mercantil, mediadora entre sistemas econômicos diversos (feudo, cidade, mar). Sua acumulação se ancorou em redes, instrumentos jurídicos e formas financeiras incipientes.

O termo “burguês”, enquanto conceito histórico e analítico, não está anacrônico, mas sua aplicação exige precisão diante das transformações contemporâneas do capitalismo. A emergência do trabalhador “empreendedor de si mesmo” — como motorista de aplicativo, entregador de plataforma ou anfitrião no Airbnb — não corresponde ao burguês clássico, pois não detém o controle dos meios de produção nem exerce poder de comando sobre o capital alheio.

Na tradição marxista e weberiana, o burguês é o proprietário do capital porque organiza a produção com fins de lucro, compra força de trabalho (emprega) e controla os meios de produção e decide sobre a alocação do excedente. Nesse sentido, o burguês é estruturalmente um dominador no processo produtivo, embora em sua origem tenha sido um outsider das castas tradicionais.

O “empreendedor de si mesmo” é uma nova forma de subordinação. O trabalhador ao dirigir para Uber, entregar para o Rappi ou alugar pelo Airbnb não é dono da plataforma, nem controla as regras do mercado no qual opera. Arca com os custos fixos do “negócio” (carro, combustível, manutenção, impostos) e está submetido a algoritmos, avaliações e flutuações de demanda — sem estabilidade ou proteção trabalhista.

Sua “autonomia” é altamente condicionada e precarizada, em um ambiente competitivo e desregulado. Logo, a ideologia do empreendedorismo camufla uma nova forma de exploração, agora disfarçada de “liberdade”.

Podemos distinguir entre a verdadeira burguesia contemporânea, acionista das plataformas, investidora, detentora de ativos digitais e imóveis para rentismo, e o neoproletariado digital composto por microempreendedores compulsórios, trabalhadores informais sob regulação algorítmica. A “fuga do assalariamento” não implica emancipação, mas uma mudança na forma de exploração, agora por meio do capital simbólico, tecnológico e financeiro.

O termo “burguês” continua crucial para a crítica da estrutura de poder do capitalismo, mas precisa ser historicizado por meio do entendimento de sua gênese urbano-mercantil. Desse modo, poderá ser atualizado ao distinguir o capitalista de plataforma do trabalhador autônomo digital.

Uma questão-chave é: deve ser criticada a ideologia do “empreendedorismo popular” como fosse uma falsa alternativa de mobilidade social? Os marxistas não necessitam rever seus conceitos diante desta nova realidade popular?


Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected]

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Last Update: 19/05/2025