Não se trata de quem governa, mas da Colômbia e de como as regras para o Sul Global são escritas, por Katherine Vargas Vargas

Não se trata de quem governa, mas da Colômbia e de como as regras para o Sul Global são escritas

por Katherine Vargas Vargas

Gustavo Petro e Donald Trump cruzaram declarações fortes nas últimas semanas. O presidente dos Estados Unidos acusou publicamente o presidente colombiano de estar ligado ao narcotráfico, e anunciou o corte de ajuda econômica, a imposição de sanções e um endurecimento da política em relação à Colômbia. Não o fez ao final de uma investigação judicial nem a partir de uma sentença, mas em declarações políticas e mensagens nas redes sociais, no contexto de uma campanha mais ampla de seu governo que inclui sanções formais do Departamento do Tesouro e operações militares contra supostas lanchas do narcotráfico no Caribe e no Pacífico.

Os efeitos não ficaram no discurso. Os Estados Unidos descredenciaram a Colômbia como parceira confiável na “guerra contra as drogas”, cortaram parte da ajuda, anunciaram sanções pessoais contra Petro, sua família e altos funcionários, e revogaram o visto do presidente. Desde Bogotá, o governo respondeu qualificando essas decisões como um “ataque à soberania” e uma agressão que ultrapassa qualquer desacordo legítimo em matéria de política antidrogas.

Dentro do país, no entanto, boa parte da conversa pública ficou presa na lógica do “a favor” ou “contra” Petro. Para alguns setores opositores, as palavras de Trump são lidas quase como uma confirmação externa de suas críticas ao governo, e por isso são celebradas ou relativizadas. Para parte do oficialismo, por outro lado, tudo é interpretado como uma reação previsível de um governo estrangeiro de direita diante de um presidente incômodo. Em ambos os casos, o foco está colocado nas duas figuras, em suas biografias, em seus estilos, em seus erros. Trump contra Petro. Petro contra Trump.

O problema dessa leitura é que reduz uma questão de fundo, a forma como a Colômbia é tratada internacionalmente, a uma briga pessoal. Gostemos ou não do governo, Gustavo Petro não é, neste momento, apenas um indivíduo: encarna a chefia do Estado colombiano. Quando um mandatário estrangeiro o acusa de liderar o narcotráfico e usa essas palavras para justificar sanções, cortes de ajuda, operações militares e o descredenciamento do país como aliado, a mensagem não fica nele. Afeta a imagem da Colômbia, seu peso na região, sua capacidade de negociar e, em última instância, a vida concreta de muitas pessoas que dependem de programas financiados com essa cooperação.

A partir de uma perspectiva de direitos humanos, não se trata de proteger Petro da crítica; trata-se de que, mesmo quando criticamos um governo, as regras do jogo continuam importando. Acusar um presidente estrangeiro de ser um criminoso sem submeter essa acusação a mecanismos de prova, contradição e decisão imparcial não fortalece a luta contra as drogas, ao contrário, enfraquece o princípio básico de que até os poderosos têm direito ao devido processo. E se aceitamos que essa regra deixe de ser aplicada quando se trata da Colômbia, amanhã pode deixar de ser aplicada para qualquer outro país do Sul Global que seja considerado incômodo.

Além disso, há um custo interno. Quando Trump anuncia que “corta” a ajuda à Colômbia ou que tomará “ações muito sérias” contra “ele e seu país”, não é o presidente quem deixa de receber programas de desenvolvimento rural, substituição de cultivos ou apoio a comunidades vulneráveis. São territórios já golpeados pela desigualdade, camponeses, comunidades negras e indígenas, processos locais de paz e organizações sociais que sentem primeiro os cortes. Converter esse cenário em motivo de celebração, só porque o sancionado é um presidente com o qual não estamos de acordo, é perder de vista quem termina pagando a conta.

Tampouco se trata de idealizar a relação histórica com os Estados Unidos. A Colômbia viveu décadas de uma política antidrogas centrada na fumigação, na militarização e na lógica do inimigo interno, com impactos graves sobre comunidades rurais e sobre a própria democracia. Mas uma coisa é questionar criticamente esse modelo, como fizeram organizações sociais, acadêmicos e vítimas, e outra muito diferente é naturalizar que a principal potência do mundo possa rotular nosso país como se fosse um narcoestado, só porque não gosta do governo de turno. Aí a discussão deixa de ser sobre políticas e passa a ser sobre hierarquias: quem tem direito de apontar e quem está condenado a baixar a cabeça.

Por isso é tão problemático que, no debate interno, às vezes pareça que falamos de Petro como se fosse um cidadão qualquer que pudesse ser insultado de fora sem consequências. Não é. É o presidente democraticamente eleito, por mais discutível que seja para alguns sua gestão. Defender a investidura não significa deixar de criticar o governo; significa traçar uma linha clara diante dos ataques externos que deslegitimam as instituições colombianas sem passar pelos canais jurídicos e diplomáticos que o direito internacional estabelece.

Talvez, no meio da polarização, precisemos recuperar uma ideia simples: é saudável e necessário discutir, protestar, exigir mudanças e até pedir a renúncia de um presidente se assim considerarmos. Mas outra coisa muito diferente é aplaudir que, de fora, se nos trate como se fôssemos incapazes de nos governar como país e precisássemos ser disciplinados a golpes de sanção e de discurso. Podemos e devemos discutir Petro em chave colombiana. O que não deveríamos fazer é esquecer que, enquanto isso, o nome que está em jogo nessa disputa não é apenas o dele: é o nosso.

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