O artigo de Ademar Lourenço, publicado no sítio Passa Palavra, intitulado Iceberg Incel: conheça o mundo que a série “Adolescência” mostra, busca explorar o fenômeno da série homônima, que aborda o universo dos chamados “incels”, ou “celibatários involuntários” em português, retratando um jovem de 13 anos que comete um crime supostamente influenciado pela internet. Apontando-a como o principal vetor de propagação do ódio, Lourenço diz:

“O Iceberg Incel é um dos maiores perigos do mundo digital. Cada professor, cada pai, cada mãe e cada militante feminista deve conhecer a linguagem, os símbolos e comportamentos dessa rede masculinista. Não adianta ‘não querer divulgar’. Temos que conhecer os sinais de quem pode estar submergindo nesse imenso bloco de conteúdo doentio. Isso pode salvar vidas.”

Primeiramente, a ideia de que a internet é a causa principal da violência e do ódio misógino é uma falácia. A atribuição de fenômenos sociais complexos a um único fator tecnológico ignora as condições materiais que geram a crise social. A violência escolar, por exemplo, é um produto da cultura norte-americana mais antiga até mesmo do que o rádio.

Dados históricos mostram que tiroteios em espaços acadêmicos nos EUA ocorrem desde meados do século XIX, quando a única forma de comunicação era a mesma desde a época dos romanos: a carta. No século XX, um caso notável foi o massacre da Universidade do Texas, em 1966, no qual Charles Whitman matou 14 pessoas, em um momento de turbulência social marcado pelo início da crise econômica que se aprofundaria de maneira explosiva na década de 1970.

Da mesma forma, um dos mais famosos acontecimentos do gênero, o Massacre de Columbine (1999), longe de ser um evento isolado ligado à internet, ocorreu em um momento de gestação da crise econômica que explodiria em 2008. Esses episódios refletem não a influência de algoritmos, mas a desestabilização social inerente ao capitalismo em declínio.

O que caracteriza períodos de aumento de violência, como as décadas de 1960 e 2000, é a intensificação da crise social nos países imperialistas. Nos anos 1960, os Estados Unidos enfrentaram mobilizações estudantis, o surgimento de movimentos como os Panteras Negras e também a desvalorização do dólar, levando ao colapso do acordo de Bretton Woods.

Esse cenário de instabilidade econômica e política criou um terreno fértil para a loucura de determinados setores da população, incluindo atos de violência. Da mesma forma, Columbine coincidiu com o início de uma nova crise econômica global, amplificada pela especulação financeira e pelas pressões sociais.

Os monopólios de imprensa, ao darem ampla publicidade a esses eventos, não apenas criou um clima de histeria para justificar medidas repressivas, mas também atraiu a atenção de indivíduos já desestabilizados pelo caos social. Atribuir tais fenômenos à internet, como faz Lourenço, é escamotear o fato de que a crise estrutural do regime econômico e político tem consequências muito mais amplas, afetando não apenas a economia, mas a cultura e a própria psicologia das pessoas. O autor continua:

“As hashtags são palavras-chave que ajudam os algoritmos das redes sociais a ‘entender’ os gostos das pessoas. Se alguém ouve vídeos sobre a banda Iron Maiden e nesse conteúdo tem a hashtag #heavymetal, o algoritmo vai registrar o gosto do usuário por este estilo musical.

É aí que começa o problema. O usuário começa a receber não apenas vídeos sobre Iron Maiden, mas também sobre a banda Cannibal Corpse, que tem um ritmo mais frenético e fala de temas mais sombrios em suas letras. O maldito algoritmo ‘sabe’ que o usuário quer algo parecido com o que já curtiu, compartilhou e comentou. Mas o conteúdo deve ser cada vez mais intenso para manter o usuário na rede social.”

Em primeiro lugar, é preciso destacar que o autor claramente não tem familiaridade com a forma de funcionamento dos algoritmos das principais redes sociais da internet. Plataformas como Facebook e Instagram da Meta e Youtube (da Alphabet, dona do Google), longe de indicarem conteúdo mais “extremo”, fazem o contrário: os escondem. No Youtube, por exemplo, se a plataforma indicasse o Cannibal Corpose como um conteúdo extremo, no mínimo, a banda cairia em uma zona cinzenta chamada “borderline” e enfrentaria sérias dificuldades para se manter na rede.

Isso esclarecido, ao culpar os algoritmos e a internet, adota uma política teológica típica do conservadorismo: em uma sociedade supostamente “maravilhosa”, onde não haveria guerras, violência ou repressão, a origem do “mal” deve ser externa, como um vírus que contamina um sistema perfeito. Essa visão não apenas é ingênua, mas também perigosa, pois legitima campanhas de censura promovidas pelas grandes corporações tecnológicas e pelo imperialismo.

A ideia de que os incels formam uma “rede sofisticada” que ameaça a sociedade carece de evidências estatísticas robustas. Não há dados que comprovem que representem um grupo numericamente significativo ou que suas ações sejam a principal causa de violência contra mulheres. Rotular todo incel como um potencial assassino é uma forma de não abordar as condições que geram frustrações em uma escala social significativa.

Finalmente, a análise de ignora o papel da própria imprensa capitalista na amplificação desses fenômenos. A publicidade dada a eventos como Columbine, com documentários como Tiros em Columbine de Michael Moore, serviu para tornar a violência um fenômeno cultural, atraindo a atenção de pessoas em contextos de crise. A campanha para proibir armas nos EUA, por exemplo, acabou gerando um efeito contrário, ao dar visibilidade a atos violentos e criar um ciclo de imitação. Esse processo não é causado pela internet, mas pela pressões oriundas de um sistema econômico decadente, que precisa de tragédias para justificar aumento da repressão e do controle social, como mostra o 11 de Setembro e a subsequente política de Guerra ao Terror.

A verdadeira causa da violência e do desespero social está na decomposição do capitalismo. A crise econômica condiciona crises políticas, sociais e culturais, afetando a psicologia das pessoas e destruindo perspectivas de vida estável.

Setenta anos atrás, era possível prever um futuro com estudo e trabalho onde, se bem a vida fosse medíocre, havia alguma segurança. Hoje, a incerteza domina, e a especulação financeira transforma a sociedade em um cassino. Culpar a internet ou os incels pelas consequências dessa crise mais profunda é desviar a atenção da luta de classes, da necessidade de enfrentar o imperialismo e o capitalismo em declínio, e a partir daí, resolver o problema, atuando na raiz.

É preciso rejeitar considerações tolas que despolitizam os problemas sociais e longe disso, pioram a forma de resolvê-los, na medida em que promovem a censura e dificultam a reação das massas. A esquerda não deve adotar esse método tipicamente direitista de responsabilizar indivíduos ou grupos por fenômenos da vida social, mas buscar a compreensão desses fenômenos nas estruturas sociais, isto é, nas classes em confronto, em um Estado onde uma delas exerce sua ditadura, porém com dificuldade crescente. Falar em “masculinismo”, “incels” e extravagâncias do gênero, e livrar o imperialismo da responsabilidade pela crise social só irá aprofundá-la.

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Last Update: 18/05/2025