Ainda estou chocada com o relato da arquiteta Ingrid Santa Rita, participante do reality Casamento às Cegas, sobre os abusos sexuais sofridos durante o seu relacionamento com o personal trainer Leandro Marçal. Ingrid, com coragem, expôs as agressões que sofreu e, diante dos outros participantes, questionou Leandro sobre os atos praticados por ele.
Ela não disse com todas as palavras, ele fugiu do assunto; nós entendemos: foi estupro.
Em um malabarismo constrangedor, Leandro abusou da versão de que ele e Ingrid tinham “problemas sexuais”. Emendou dizendo que estava “tentando resolver”. Era abuso, foi estupro.
É importante pontuar que, devido ao “não”, tudo é abuso. Isso se estende também às relações conjugais. O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) informou que, entre 2011 e 2022, 1 a cada 8 casos de estupro foram cometidos por cônjuges ou namorados. Certamente subnotificados, esses dados sequer existiam até pouco tempo atrás. Isso porque nossa legislação a respeito de crimes contra a mulher é tão frágil quanto jovem. O que aconteceu com Ingrid foi estupro. Estupro marital.
Quantas queixas de dor durante a penetração não são, na verdade, um pedido de socorro?
A constituição de 1916 previa que o esposo (o homem) era chefe da sociedade conjugal; responsável por administrar os bens e direitos de sua esposa. Complementarmente a isso, havia a ideia de que exista um “débito conjugal” (a obrigação da satisfação sexual para com o outro dentro do casamento). Apenas em 1988 a Constituição Federal equiparou os direitos de homens e mulheres dentro da sociedade conjugal e, somente em 2006, com a Promulgação da Lei Maria da Penha, o Código Civil reconheceu a violência doméstica como crime — sendo a violência sexual uma de suas tantas formas.
Aliás, Maria da Penha, ativista e símbolo da luta contra a violência doméstica, sofreu recentemente ataques de militantes de extrema direita, a ponto de necessitar de proteção do Estado para garantir sua segurança, resultado do avanço do conservadorismo dentro e fora da política. Em tempos onde o ingresso no ensino superior é questionado e vídeos onde o modelo de “trad wife”, esposa que abandona carreira para acordar às 5 da manhã para cozinhar e deixar a mesa posta para o marido provedor, viralizam, o projeto parece ser mesmo esse: nos ver amedrontadas, submissas, empobrecidas e desprovidas de qualquer pensamento crítico. Se “basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”, o Brasil tem servido um prato cheio.
Sou ginecologista e obstetra — e já me deparei com muitas Ingrids e Marias da Penha dentro do meu consultório: seja de maneira mais escancarada, com diagnósticos de ISTs adquirida de relações com terceiras (inclusive durante a gestação), ou por meio de queixas ocultas, como “baixa libido”, essas mulheres chegam às consultas sentindo culpa, mesmo que nem sempre consigam identificar a própria situação de violência. São muitas as vezes em que a demanda por dosar ou repor hormônios para melhora do apetite sexual culminam em relatos de parceiros violentos, abusivos, nada abertos a discutir sexualidade.
Quantas mulheres se sentem unicamente responsáveis pela vida sexual do casal? Se ele não performa bem, a culpa só pode ser da mulher, certo? Ou, no mínimo, ela deveria se responsabilizar pelo tratamento da disfunção erétil da qual ele sofre, não é verdade? Quantas queixas de dor durante a penetração não são, na verdade, um pedido de socorro diante do estupro marital? A pergunta é: como discutir sexo de maneira responsável se não há tesão que sobreviva às relações adoecidas pelo patriarcado? Não há possibilidade de esperança de uma vida sexual segura em uma sociedade onde (ao menos) 1 em cada 8 mulheres estupradas são vítimas dos próprios parceiros. Sim, Leandro: foi estupro.
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