O artigo O lumpesinato de MC Poze, o privilégio estrutural de Léo Lins e o contrato social de Hobbes, assinado por Ricardo Nêggo Tom, e publicado neste sábado (14) no Brasil 247, atira para todos os lados e consegue a façanha de errar todos os alvos. Trata-se de uma salada de frutas misturando Thomas Hobbes, Karl Marx e Paulo Freire para, no final, defender a burguesia.
Lê-se no início do primeiro parágrafo o seguinte:
“Qual o limite da arte e do humor? O que deve ser considerado arte ou humor, e quem é o responsável por fazer essa avaliação? Diante dessas duas questões, o absolutismo estatal defendido pelo filósofo inglês Thomas Hobbes torna-se inevitavelmente tentador”.
No Brasil, considerando o que propunha Hobbes, existe um poder absoluto, fora do Contrato Social, e apoiado por boa parte da esquerda, que define aquilo pode ou não ser dito. Esse poder é o Supremo Tribunal Federal (STF), que age por cima dos marcos estabelecidos pela Constituição Federal.
Defendendo esse poder absoluto, Nêggo Tom, concordando com Hobbes de que o “o homem é o lobo do homem”, afirma que isso “implicaria na necessidade de uma intervenção do Estado para estabelecer a ordem, a paz e a segurança, mediando os conflitos de interesses existentes entre os cidadãos”.
Temos aí, com todas as letras, um elemento que se diz de esquerda fazendo propaganda do Estado burguês.
O problema é que o autor do texto parte de uma premissa errada: a ideia de contrato social é falsa. Os primeiros esboços desse “contrato” surgem na Grécia, com Sócrates e Aristóteles, que, assim como Hobbes, entendem que o contrato é assinado entre iguais, ou seja: desconhecem as diferenças sociais. Em outras palavras, a assinatura contrato – que nunca existiu – não seria feita livremente.
Outro problema para Hobbes é que o Estado não é uma entidade neutra que guarda o bem comum. O Estado é um aparato que serve aos interesses da classe dominante. Assim, quando o STF, uma instituição do Estado, promove a censura, o faz em favor da burguesia. Aqueles que defendem o Supremo, portanto, atuam em prol das classes dominantes.
Para Hobbes, o ser humano vive em um “estado de natureza”, marcado por uma guerra constante. Nêggo Tom repete e diz que “nos deparamos com a necessidade de um novo contrato social em face das novas guerras de interesses estabelecidas dentro da sociedade atual”.
Apesar de não haver o contrato, existe a colaboração de classes, quando elementos da esquerda propõem que os trabalhadores abram mão de seus direitos e se unam com seus inimigos em favor de um “bem maior”.
Na I Guerra Mundial, em nome da pátria, os trabalhadores foram chamados para matarem trabalhadores de outros países para defenderem, no final das contas, interesses imperialistas em conflito. Atualmente, utilizam a suposta proteção das crianças e o combate às “fobias” para tentarem convencer o povo a apoiar a censura e a ditadura imposta pelo Judiciário.
Segundo o autor do artigo, a multidão que se reuniu em frente ao presídio pedindo a soltura de MC Poze evidencia que “temos um contrato social sendo estabelecido”, o que prova que ele nem mesmo entendeu o conceito.
A reunião das pessoas pela soltura do músico só pode ser entendida do ponto de vista da luta de classes. A população estava ali contra o Estado e a censura. Nêggo Tom diz que as pessoas se apresentaram por se sentirem representadas, e “não obrigatoriamente por terem a sua mesma origem social”. Mas é justamente por isso que a conclusão a que chega é absurda.
O próprio autor se contradiz quando afirma que as pessoas estavam lá “por se sentirem censuradas, marginalizadas, discriminadas e excluídas”. Em seguida, não se sabe como, afirma tratar-se de “uma espécie de lumpesinato”, o que não tem nada a ver com a realidade.
Defendendo a censura, o articulista diz que “o humorista Léo Lins, que foi condenado a 8 anos de prisão por cometer crimes sob a máscara do humor”. – grifo nosso. Diz que as pessoas que defendem o humorista contra a censura, “outra multidão”, fazem parte de outro “contrato social”.
Como todo identitário, Nêggo Tom tenta promover a divisão dentro da classe trabalhadora. Diz que “a ‘massa’ que apoia Léo Lins é majoritariamente branca, rica e privilegiada, e nunca foi colocada à margem da sociedade pelo poder do preconceito”. A divisão aqui serve a outro propósito, dizer que o que houve com MC Poze foi censura e no caso de Léo Lins foi feita justiça.
Beirando ao delírio, o autor diz que a elite burguesa submete o proletariado “com sua ideologia sócio política excludente”, e/ou “com piadas que mantêm essa minoria oprimida existencialmente”.
Assim, contra a Constituição, e com a burguesia, Nêggo Tom diz que “a liberdade de expressão não é um direito absoluto”. Em seguida, diz que “ela é fundamental, mas nos cobra limites”. No entanto, o que ele omite é que o Estado está impondo os limites, não os indivíduos.
Ricardo Nêggo Tom diz que a burguesia “está ao lado de Léo Lins na defesa do seu direito de oprimir minorias”. É quase uma alucinação afirmar que um indivíduo tenha o poder de oprimir. Enfim. A falsidade, no entanto, reside no fato de que a elite, que manda no STF, o utiliza para calar o humorista. Quem defende o Supremo está, ao mesmo tempo, defendendo os interesses das classes dominantes.
Chegando ao final do texto, o autor acha espaço para criticar também MC Poze. Diz que existe uma ironia, pois “mesmo sendo um jovem negro e de origem periférica, hoje é rico e está mais próximo economicamente da burguesia que o discrimina, do que da periferia que o apoia e consome sua arte. Se alguém lhe apresentasse Paulo Freire, ele entenderia que também está reproduzindo a lógica do opressor que acha que pode tudo por que tem dinheiro e poder”.
Afirma ainda que “funkeiros como MC Poze têm a oportunidade de promoverem mudanças sociais significativas em suas comunidades de origem, a partir do momento em que ascendem economicamente. Não o fazem porque não foram submetidos a uma educação libertadora, e acabaram alimentando o sonho de se tornarem opressores acreditando que os vitoriosos são aqueles que ostentam riqueza e arrogância sobre os demais [grifo nosso]”.
Em um último suspiro, Nêggo Tom encontra fôlego para questionar “imaginem se um cara desses adquirisse consciência de classe e fizesse uso dos recursos financeiros que hoje possui para criar projetos sociais voltados para a educação nas comunidades, ao invés de querer ser apenas mais um privilegiado em seu mundinho de futilidade e ostentação”.
É um retrocesso, faz muito tempo que a esquerda já superou, ou deveria ter superado, as ideias dos socialistas utópicos. Engels dedicou páginas e páginas para refutar essa ideia.
Se existisse uma “educação libertadora”, o que é em si uma ideia reformista, caberia a pergunta de Karl Marx: Quem educa os educadores?
Na terceira Tese de Feuerbach (1845), Marx escreveu: “A doutrina materialista de que os homens são produtos das circunstâncias e da educação, e de que, portanto, homens transformados são produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que as circunstâncias são transformadas pelos próprios homens e que o próprio educador deve ser educado. Por isso, essa doutrina leva necessariamente à divisão da sociedade em duas partes — uma superior à sociedade (em termos de educadores e governantes)”.
A proposta de Nêggo Tom é ingênua e desinformada. Mesmo Platão, em sua República, já havia percebido a educação como um divisor social, como se vê na sua proposta da casta dos governantes-filósofos.
O fundamental nesse artigo confuso de Ricardo Nêggo Tom, é ver que se trata de uma defesa do Estado burguês, e de seu direito de zelar pelo bem comum. No entanto, ao defender esse Estado, o autor se põe do lado daqueles que condenam MC Poze e Léo Lins.