Não foi um seminário. Foi uma simulação de guerra

por Sara Goes

Construído para simular o relevo dramático do litoral cearense, o Centro de Eventos do Ceará ergue suas fachadas angulosas e tons terrosos no meio de um bairro onde tudo é concreto, trânsito e calçada quente. A arquitetura monumental tenta parecer paisagem, mas soa deslocada: foi ali, nesse espaço desenhado para impressionar, que um secretário certa vez resumiu sem pudor o espírito do projeto ao dizer que quem vai para lá não anda a pé. A frase pegou mal, a passarela acabou construída, mas o abismo entre o edifício e a cidade continuou. Anos depois, se encenou outro tipo de desconexão: um auditório lotado aplaudindo Jair Bolsonaro, inelegível até 2030, falando em vitória nas eleições de 2026. À primeira vista, uma negação tosca da realidade jurídica. Mas a desconexão é mais profunda. Bolsonaro pode escolher qualquer nome, desde que continue sendo o centro. Ele mesmo já disse que seu projeto só precisa de 50% das casas legislativas. Agora réu no STF, subiu ao palco desafiando abertamente o Judiciário, apelando, sem disfarces, por interferência internacional. A menção direta a um “país do norte” como possível agente de reversão do seu quadro judicial não é apenas provocação política, é uma violação explícita ao princípio constitucional da soberania nacional, e pode ser compreendida como incitação à intervenção estrangeira (algo passível de responsabilização com base na Lei 14.197/2021, que tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito).

Na plateia, jovens rapazes entusiasmados com celulares em punho, olhos vidrados na explanação de um projeto de poder embalado por algoritmos e patrocinado por Big Techs, um projeto que dispensa programa, ideias ou institucionalidade. Mais do que uma plateia simpática, Bolsonaro encontrou um público treinado. Assessores, influenciadores e jovens operadores digitais ocuparam os lugares do auditório, enquanto representantes de plataformas como Meta e Google conduziam workshops técnicos sobre uso político das redes. A presença de especialistas ligados ao CapCut completou o quadro. Era um seminário apenas no nome. Na prática, um laboratório de guerra digital, com participação ativa de empresas estrangeiras em um evento de natureza político-partidária (uma possível infração à Lei dos Partidos Políticos, que veda qualquer forma de apoio material ou técnico oriundo de corporações estrangeiras). Em contexto eleitoral, esse tipo de colaboração pode ser caracterizado como abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação, com consequências no TSE e no Congresso Nacional.

É exatamente nesse ponto que se revela a engrenagem descrita no relatório do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), um “Partido Digital Bolsonarista” (PDB), cuja lógica de operação é paralela e por vezes até mais relevante que a do PL tradicional. O PDB, segundo os autores, atua às margens das instituições formais que regulam a competição política e eleitoral, hackeando essas instituições (como o Partido Liberal), extraindo recursos e se utilizando de sua institucionalidade para atuar nas esferas digitais e offline. A retórica antidemocrática, os acenos ao golpismo e a simulação de apoio externo operam como uma sequência de atos ensaiados, com objetivos definidos: manipular a percepção pública, fragilizar instituições e legitimar a desinformação como tática de poder. Reforçar esse tipo de discurso, sob aplausos e luzes de LED, tem impacto concreto na produção de provas em investigações em curso, como o inquérito das milícias digitais no STF.

A comoção também foi ensaiada. Em tom dramático, Bolsonaro mencionou o filho Eduardo, hoje nos Estados Unidos, como figura central de uma articulação internacional contra o STF. Chegou a afirmar que, se estivesse no Brasil, o deputado estaria preso, não apenas sem passaporte, mas atrás das grades. A defesa emocionada do filho funcionou como uma forma de reforçar a ideia de perseguição, típica das narrativas de martírio que mobilizam a base bolsonarista. O evento foi marcado ainda por declarações desafiadoras, como a afirmação de que o partido não teme processos ou acusações, mas se preocupa apenas com quem será o juiz. Ao longo das falas, construiu-se a imagem de um movimento político que não apenas despreza os ritos institucionais, mas que se sente respaldado por uma engrenagem internacional, econômica, tecnológica e midiática.

A atuação do PL nas redes sociais comprova essa estruturação. O relatório mostra que a sigla concentra suas atividades digitais em clusters fortemente alinhados com influenciadores digitais, especialmente no Instagram, com padrões claros de ação coordenada. A crítica ao STF, e particularmente ao ministro Alexandre de Moraes, aparece como a pauta que mais unifica os parlamentares do chamado partido digital. Além disso, a liderança digital do PL não depende apenas de parlamentares eleitos. O estudo identifica que o partido digital opera por cadeias de lealdade formadas por influenciadores digitais, que podem ser desde celebridades com milhões de seguidores até nano influenciadores de baixo orçamento e alto engajamento. O núcleo do bolsonarismo digital não é organizado por estatutos ou programas partidários, mas por códigos morais e simbólicos compartilhados, pela lealdade à figura de Jair Bolsonaro e aos valores que ela representa. Não é o homem em si, mas o significante político e emocional que mobiliza pertencimento, ressentimento e promessa.

O PL de hoje é uma engrenagem desse sistema, organizado, tecnológico, com apelo emocional calibrado e linguagem digital afiada. E o evento em Fortaleza escancarou que a extrema direita brasileira se prepara, não apenas para disputar votos, mas para disputar o poder algorítmico. Uma coisa alimenta a outra. Não se trata apenas de eleições, mas de narrativas, redes, símbolos e métricas digitais que, ao viralizarem, moldam a percepção política e antecipam resultados nas urnas. O like virou tendência de voto. A narrativa contada no zap passa a ser vivida como verdade. E nessa engrenagem, quem domina o fluxo da atenção domina também o imaginário político.

Enquanto Lula governa com cautela, e a esquerda debate regulação das plataformas, a extrema direita aperta a mão dos engenheiros da desinformação, sorri para as câmeras e treina seus exércitos digitais com a bênção do Vale do Silício. Como observou o jornalista Jocélio Leal, mesmo nas disputas mais básicas de percepção, a oposição tem se mostrado mais estratégica: na mesma semana em que Lula improvisou uma frase sobre Deus ter deixado o sertão sem água para que ele, um dia, levasse água ao povo, Bolsonaro subia ao palco em Fortaleza prometendo vitória com a ajuda divina e de um país do norte. São narrativas simples, mas com efeitos opostos. Uma soa exagerada, a outra foi planejada para circular com eficiência. No universo dos vídeos curtos, memes e emoções rápidas, quem entrega mensagem com clareza e timing domina o jogo. E é esse jogo que a extrema direita vem jogando melhor.

No Nordeste, onde se disputam corações e votos, símbolos e narrativas, o bolsonarismo já opera com vocabulário próprio. Carmelo Neto, deputado estadual, presidente do PL no Ceará e nascido em 2001, declarou no evento: “O Nordeste não tem dono. Mentira, enganação, farsa foram as promessas do PT sobre a transposição do São Francisco. Eu sou testemunha. Eu vi a minha gente sofrer por falta d’água.” O que o projeto de Kim Kataguiri alencarino viu aos 2 anos de idade foi o PT mudar para sempre o semiárido nordestino com políticas de inclusão, e aos 6, o início de uma das maiores obras de infraestrutura hídrica da história do Brasil. Trata-se, além do oportunismo político, do retrato de um deslocamento ativo da realidade, em que um jovem nordestino, moldado pelas conquistas dos governos petistas, se apresenta como arauto de um ressentimento que não viveu. Ao repetir como slogans as distorções criadas nas redes, ele alimenta o mesmo racismo contra nordestinos que sua própria existência deveria desmentir.

Escrevi, investiguei, denunciei. Apontei as falas golpistas, o cinismo estratégico, a presença ativa das big techs e a formação de um novo exército digital da extrema direita. Não foi pautado nem no programa que eu ancoro e produzo. E talvez isso diga mais sobre o momento da comunicação progressista do que qualquer relatório. Eles ensaiam 2026 com método, disciplina enquanto nós seguimos oscilando entre a omissão e a esperança. Tenho plena consciência das minhas limitações enquanto jornalista, mas depois de tudo o que o país viveu, tratar com desdém uma denúncia feita de dentro do campo inimigo, com base em apuração, pesquisa e coragem, não é erro, é rendição.

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Last Update: 02/06/2025