Não em nosso nome: contra o genocídio do povo palestino
Por Francirosy Campos Barbosa
Pensem nas crianças
Mudas, telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Sinto vergonha ao ler “pessoas de bem” pedindo paz, reconciliação, abraços — como se estivéssemos diante de um “conflito” entre iguais. Em que mundo vivem essas pessoas? Falam de violências “dos dois lados” como se houvesse simetria, como se Gaza tivesse exército, tanques, tecnologia militar de ponta, apoio de potências. Não há dois Estados em guerra — há um Estado ocupante e um povo sitiado. Há colonização e opressão na Palestina.
Quem insiste nessa falsa equivalência ainda não despertou para o que está acontecendo: não é guerra, não é conflito, é genocídio. E diante de um genocídio, não basta lamentar. É preciso barrar o Estado assassino com urgência e coragem: romper relações diplomáticas, cortar acordos, suspender apoios.
Precisamos nomear o que se passa: massacre sistemático de uma população civil, há meses, diante dos olhos do mundo. A violência em Gaza nunca foi razoável. Mas, agora, ela se tornou absolutamente impensável. Mas seguimos mudos, inertes.
Estamos falando de pessoas famintas, mutiladas, doentes, sufocadas sob escombros e cercas. E mesmo assim, elas resistem. Porque acreditam que morrer por sua terra é também continuar vivendo nela, pela memória.
E nós? Seguimos com universidades sem coragem, instituições científicas sem voz, gestores políticos que fingem neutralidade. No entanto, é impossível ignorar que, em nome da segurança do seu Estado, o governo de Benjamin Netanyahu tem promovido uma violência desproporcional contra o povo palestino. No Judaísmo, como no Islam, há um princípio sagrado: quem mata um inocente é como se matasse a humanidade toda. É impossível não reconhecer que matar crianças palestinas fere esse princípio ético e religioso.
“Quem destrói uma vida é considerado como se tivesse destruído o mundo inteiro. E quem salva uma vida é considerado como se tivesse salvado o mundo inteiro.” (Sanhedrin 37a, Talmude Babilônico)
“Quem matar uma pessoa — sem que ela tenha cometido assassinato ou causado corrupção na Terra — será como se tivesse matado toda a humanidade. E quem salvar uma vida, será como se tivesse salvo toda a humanidade.” (Alcorão, 5:32)
A cada criança sem braço, sem perna, sem nome nos jornais, eu me pergunto: onde estão todos? Quem ainda vai gritar mais alto? Porque o silêncio de agora será lembrado como cumplicidade amanhã.
Não basta ao governo brasileiro acolher palestinos enquanto mantém relações diplomáticas e econômicas com um Estado que comete atrocidades em tempo real. Reconhecer o genocídio e, ao mesmo tempo, seguir negociando com o regime que o conduz, é hipocrisia institucionalizada. É preciso romper — com coragem e coerência — todos os vínculos: comerciais, diplomáticos, acadêmicos.
As universidades, faculdades e departamentos precisam cortar convênios com instituições israelenses e com empresas que lucram com a ocupação. O silêncio acadêmico não é neutralidade — é conivência. Boicotar também é ensinar. Boicotar também é educar para a dignidade.
Precisamos parar de consumir símbolos do Apartheid — inclusive aquele refrigerante preto que, além de corroer nossos corpos, corrói há décadas a resistência palestina.
O movimento BDS — Boicote, Desinvestimento e Sanções — foi essencial para pressionar o fim do Apartheid na África do Sul. É também o caminho ético e necessário para resistir ao Apartheid israelense. É a única ação não violenta.
O Brasil deveria hastear a bandeira palestina em todas as repartições públicas. Deixando claro: “nunca em nosso nome”.
Por isso, sigo tendo orgulho dos companheiros do Vozes Judaicas. Eles não hesitam em se colocar contra esse extermínio palestino. Eles se manifestam — mesmo quando o mundo se cala. Para o Vozes Judaicas “o sionismo não é igual ao judaísmo”, e o Estado de Israel não os representa.
Porque não há paz possível onde crianças são carbonizadas. Onde mães enterram seus filhos em valas comuns. Onde a fome é usada como arma de guerra. Não há vida possível diante da morte sistemática de um povo.
Nosso silêncio é criminoso. Em junho de 2024, a cidade de Rafah – último “refúgio” em Gaza – foi totalmente invadida por forças israelenses, apesar de ser reconhecida como área de deslocados civis. O bombardeio ao campo de refugiados de Tel al-Sultan, que matou dezenas de civis, incluindo crianças, carbonizadas, é mais uma prova: o genocídio não apenas continua — ele se intensifica sob os olhos do mundo.
No final de maio de 2025, a ONU declarou oficialmente que Gaza enfrenta uma crise de fome em massa, com mais de um milhão de pessoas em risco imediato de inanição. A fome é política. A recusa sistemática de entrada de ajuda humanitária, alimentos e remédios não é colateral. É uma estratégia genocida.
No mesmo mês, o TIJ (Tribunal Internacional de Justiça) ordenou a Israel o fim imediato das operações em Rafah, considerando que existe risco plausível de genocídio, mas o governo israelense ignorou as ordens. Ignorar a ordem da mais alta corte internacional é rasgar o direito internacional. E o silêncio dos governos dos demais países é cumplicidade. Diversas universidades no Reino Unido, nos EUA, no Canadá e até na América Latina romperam contratos com instituições israelenses ou empresas que apoiam a ocupação. Enquanto universidades no exterior cortam laços, as brasileiras seguem em silêncio. Até quando? Quando será insuportável?
Desde outubro de 2023, mais de 130 jornalistas e mais de 450 profissionais da saúde foram mortos em Gaza. Não se trata de danos colaterais: é a eliminação sistemática de quem cura, de quem denuncia, de quem protege.
Em maio de 2025, a Ocha alertou que cerca de 470 mil pessoas em Gaza enfrentam níveis de fome catastrófica (IPC Fase 5). Relatórios do IPC também indicam mais de 66 mil crianças com desnutrição aguda em abril e maio de 2025. Em maio de 2025, reforçou que a situação em Gaza se aproxima de um plano de extermínio, e recomendou a todos os países parte da Convenção de Genocídio interromper apoio militar e diplomático a Israel.
Estamos diante de uma Hiroshima, mas seguimos nossas vidas como se nada estivesse acontecendo:
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada (Vinicius de Moraes)
É preciso reconhecer que a história cobrará posicionamento diante das atrocidades em curso. O silêncio, a neutralidade e a omissão serão lidos, no futuro, como formas de cumplicidade.
É inevitável que, em algum momento, sejamos interpelados — por nossos filhos, netos, pelas próximas gerações — com a pergunta: “Onde você estava enquanto isso acontecia? O que fez diante da violência e da morte?”.
Quanto a mim, sei onde estou e o que venho fazendo, mesmo que isso implique abdicar da paz cotidiana, do sono tranquilo. A violência atravessa o cotidiano de quem se levanta pela Palestina, mas não há sofrimento pessoal, por mais legítimo, que possa ser comparado à devastação total que se impõe a um povo — à morte de seus filhos por bombas, por fome, por abandono, por uma máquina de guerra sustentada por um Estado que pratica políticas de extermínio.
É inaceitável naturalizar o assassinato de civis em fila por alimentos, o bloqueio deliberado de água potável e medicamentos, o bombardeio sistemático de hospitais e escolas. Tais práticas não configuram excessos isolados, mas sim uma política de Estado que se aproxima, em conteúdo e método, dos elementos caracterizadores do genocídio.
Diante disso, afirmo com clareza e responsabilidade ética: não em meu nome, não em nosso nome.
Francirosy Campos Barbosa – Antropóloga, professora da USP, pós-doutora por Oxford.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn“
LEIA TAMBÉM: