Não é Pix, é guerra total, por Marcelo Siano Lima

O atual governo do Presidente Lula (PT) continua sob um ataque cerrado das forças de oposição, como já ocorrera desde seu primeiro mandato. Diferentemente dos momentos anteriores, dessa vez, esses ataques se valem das mais sofisticadas ferramentas disponíveis no campo da tecnologia da informação, além do uso de toda uma gramática calcada na disseminação de informações falsas e criminosas, mas que tocam fundo o imaginário social, despertando medos e rancores.

Uma conjunção de forças que une a  extrema-direita, parcelas importantes do capital financeiro (a “Faria Lima”), do fundamentalismo cristão, das mídias tradicionais e do agronegócio, além de  atores externos, como os empresários Elon Musk e Mark Zuckerberg, opera um vigoroso plano de desestabilização do governo, na perspectiva de uma guerra híbrida, total, em todas as frentes, visando corroer as condições de governabilidade e o lastro de representatividade, essencial para a legitimidade popular do atual governo. Crises são geradas a cada instante, abalando as estruturas de governabilidade e afetando a economia e a vida nacional.

A revogação da Instrução Normativa nº 2219/2024, da Secretaria da Receita Federal, anunciada na tarde do dia 15 de janeiro de 2025, foi o resultado final de duas semanas de intensa e competente campanha contrária a ela, movida pela extrema-direita brasileira, dentro da estratégia de guerra total contra o atual governo, seguindo todos os cânones de sua matriz ideológica, a  alt-right (direita alternativa, numa tradução literal, extrema-direita radical, na definição objetiva) estadunidense. A extrema-direita venceu essa batalha, e de goleada, restando ao atual governo da República um recuo tático para evitar a consolidação de um desgaste político de proporções bíblicas.

Neste momento, “engenheiros de obras prontas” estão assanhadíssimos, apontando erros e equívocos os mais variados, como se fossem capazes de, gerindo as responsabilidades inerentes aos negócios de Estado, resolver tudo a partir de campanhas midiáticas cinematográficas, circenses até, e falsamente milagrosas. O terreno da política real, da realpolitik,tem sido cruel com a maioria desses “engenheiros” e suas “fórmulas” insossas de bolo, intragáveis.

O governo Lula III parece que, até agora, aceitou, de forma pacífica, atuar como zagueiro no jogo político. Não pauta a agenda pública, ao contrário, deixa que a extrema-direita, de forma competente, mas com pessoas e interesses abjetos, assuma esse papel. Desde a campanha eleitoral de 2018, sabidamente influenciada por Steve Bannon (articulador do movimento – a reunião internacional de todos os grupos extremistas de direita, em suas variadas matizes), sua gramática, suas estratégias e táticas, o campo democrático e progressista brasileiro, algo que vai muito além das clivagens de esquerda, parece imobilizado diante dos ataques que, de forma muito competente, são diuturnamente direcionados a ele, à Democracia e às instituições. A tudo assiste atordoado, valendo-se, no mais das vezes, de ações erráticas, desplugadas da realidade na qual se inserem as lutas políticas na atual quadra histórica.

A extrema-direita tem método, tem informações, tem recursos financeiros, tem articulação internacional e, também, tem uma capacidade, em razão do populismo exacerbado, de mobilizar as emoções, como teve o fascismo histórico nos anos 1920 e 1930. Não é mistério algum que o projeto político da extrema-direita brasileira louva a autocracia, a restrição de direitos, a imposição de uma agenda fundamentalista cristã, o reinado pleno do neoliberalismo, em toda a dinâmica de nossa sociedade e do seu imaginário, já perigosamente contaminados por ele.

O Presidente Lula tem se ausentado da luta política desde sua posse, em janeiro de 2023. Achava-se que, após o malogrado Golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, Lula “iria para cima”, politizando o governo e suas ações, tirando a política da condição de sequestrada pela extrema-direita, em um processo crescente, desde o início da crise institucional, em 2013. Lula, fiel ao seu estilo político, que nunca foi extremista, e, sim, conciliador, errou no cálculo político. Refez os programas exitosos do período 2003-2016, mas achou que apenas isso bastaria para lhe garantir a devida aderência das massas. Não ocorreu.

Venceu as eleições no segundo turno por uma escassa margem de votos sobre o então Presidente Jair Bolsonaro (PL), e achou que iria unificar o país, ou alcançar maior apoiamento popular a partir de sua biografia e de seus feitos pretéritos. Um cálculo errôneo e, pior, desplugado de toda a realidade histórica, que não levou em consideração o avanço do neoliberalismo e a mudança do mundo do trabalho e do imaginário social brasileiro ao longo do período em que esteve fora do poder, desde 2010. Lula, sempre perspicaz, não se atentou para as mudanças, uma dinâmica inexorável da história. Paga, desde então, o preço político dessa dissonância cognitiva.

O Presidente e sua equipe de governo agem como se não houvesse uma coordenação político-administrativa, como se a comunicação e a política não fossem parte de um mesmo corpo, como se a imagem do líder, e as lembranças que ela evoca, fossem capazes, por si só, de gerar apoiamento e ganhos eleitorais. Esse modelo está superado, numa quadra histórica em que as plataformas digitais e os mecanismos como a inteligência artificial são instrumentos essenciais das lutas travadas de forma incessante.

A campanha insidiosa, e competente, movida pela extrema-direita contra a Instrução Normativa da Receita ilustra bem esse caso. A Instrução não era sobre o que os radicais extremistas falavam, mas, sim, os medos que identificaram no imaginário social diante de uma ação, correta, de maior fiscalização por parte do governo federal na questão das movimentações financeiras. Conseguiram criar uma “peste emocional”, algo cujos efeitos são sempre avassaladores.

O neoliberalismo, de forma proposital, cristalizou a informalidade, o “vale-tudo”, a precarização da mão de obra, a elevação da falácia da meritocracia à condição de um cânone sagrado, dogmático. Isso alterou de forma substancial a sociedade brasileira nas últimas décadas, especialmente após o vitorioso golpe parlamentar que resultou na cassação da então Presidenta Dilma Roussef, em 2016.

A partir dali, abriram-se as portas do inferno, e todos os demônios até então duramente contidos vieram às ruas, tomaram os espaços públicos de discussão e de ação, acuando um pensamento mais prismático, tolerante, que cultua os valores democráticos e institucionais. A ascensão da extrema-direita, no bojo de todo um processo de corrosão institucional, propiciou a alteração de padrões civilizatórios duramente erigidos, em um país com uma ligação uterina com o seu passado de opressão e de discriminações de todas as ordens.

Não se pode admitir, em pleno 2025, que as pessoas, especialmente aquelas dos quadros da frente ampla democrática que governam o Brasil, fiquem plugadas em paradigmas que datam das lutas pela redemocratização, na década de 1970. Se, à época, esses setores políticos e sociais deram a agenda do país, fato corroborado, ainda que com ressalvas, no texto da Constituição Federal de 1988, hoje estão em posição bem distinta, sendo obrigados, em razão da correlação de forças, a disputar essa agenda com o extremismo de direita. Este, como é notório, tem uma capacidade ímpar de se reinventar a cada instante, de alterar suas táticas, sempre mirando na destruição de um modelo de sociedade inclusiva e democrática.

O casamento do segmento político da extrema-direita com os demais grupos extremistas, como os fundamentalistas cristãos e os insanos “empreendedores”, de qualquer espécie, que não desejam nenhum tipo de regulamentação sobre suas atividades, a robusteceu, lhe deu força eleitoral e, o que é mais grave, legitimidade junto ao imaginário social, cujo conjunto de signos soube decifrar e com os quais interage de forma criminosa, em prol de seus interesses autocráticos e antidemocráticos. A campanha eleitoral para a Prefeitura de São Paulo, em 2024, teve, nesse sentido, um caráter altamente pedagógico, que, infelizmente, não foi compreendido pelo campo democrático.

O governo que se iniciou em uma conjuntura de país fraturado, apostou tudo na conciliação de interesses, como se a realidade histórica permitisse sucesso ininterrupto a tal empreitada. Os tempos mudaram, e “só Carolina não viu”. Foi assim com os militares e sua sanha golpista, foi assim com o mercado financeiro (a “Faria Lima”), que domina a economia do país, foi assim com os interesses privados que influenciam as políticas de diversos Ministérios e agências de governo, foi assim com o agronegócio, foi assim com um Congresso Nacional tomado pelo mais pornográfico fisiologismo e instinto de usurpação de competências institucionais, para ficarmos em alguns exemplos significativos.

O governo está perdendo o timing de agrupar o país e suas forças vivas em torno de um projeto de desenvolvimento e de justiça social. Os aparatos burocráticos dos partidos políticos, que os engessaram ao longo das últimas décadas, não se apercebem de que o seu imobilismo e suas ações erráticas, repetindo os casos dos partidos tradicionais da Europa e dos democratas dos Estados Unidos, os afastaram, bem como os governos que controlam, das reais aspirações de uma sociedade contaminada pelo populismo de direita e suas soluções farsescas, mas de grande apelo e compreensão popular, pelo desalento, pelo desespero e pelo cansaço, numa sociedade em que as possiblidades de ascensão são cada vez menores.

É inegável que o Presidente Lula é detentor de um capital político considerável, mas também é inegável que esse ativo vem sendo erodido em razão da falta de ações concretas que o readequem às novas formações históricas.

Há tempo, exíguo, para que mudanças sejam feitas pelo atual governo. Mas, fundamentalmente, ele precisa repolitizar a agenda pública, corroída pela estratégia da extrema-direita de hiperpotencialização do cotidiano, como forma de desviar as atenções e emoções para temas secundários.

A extrema-direita brasileira está vivendo o sonho de reconquista do poder, valendo-se do pretenso apoio que o futuro Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que toma posse no dia 20, seu aliado histórico, possa lhe proporcionar. Respeitam Jair Bolsonaro, mas o veem como um certo quadro político anacrônico nestes tempos, se enamorando muito mais de personagens que ocupariam, num quadro de normalidade institucional, papel abaixo do secundário. Seu modelo, numa reverência ao segmento financeiro, é Javier Milei, o Presidente da Argentina, e sua agenda de destruição do Estado e de todo o seu aparato, uma visão que comunga com o futuro Ministro de Trump, Elon Musk.

Nunca estive entre os seres corretos, mas românticos, que achavam que as eleições de 2022 resolveriam todos os problemas da grave luta entre democracia e autocracia no Brasil. Para mim, como para várias outras pessoas, estavam claríssimos os sinais de mudança do padrão de luta política, de radicalização de parcela do eleitorado – a extrema-direita, de perda ou cancelamento do protagonismo do centro. Filio-me às pessoas que entendem que vivemos um cenário de guerra total e ininterrupta, e para tanto temos que nos capacitar para fazermos o bom combate, abdicando de frases de efeito masturbatório, e criando as condições concretas para que a luta política se processe com o campo democrático dando a agenda e a gramática.

Resta ao Presidente Lula e ao amplo arco de forças que integram o seu governo entenderem isso e partirem para uma ação, rompendo o cerco onde se encontram no momento, sob ataques cerrados de seus inimigos, que executam um meticuloso processo de desestabilização institucional o qual, em muito, lembra o processo iniciado em 2013, e que culminou com a vitória eleitoral do fascismo em 2018.

O governo, cercado, não está lançando as pontes para o contato com a sociedade, para a conquista do imaginário e das emoções dos indivíduos, o que o coloca em uma posição bastante desfavorável. A extrema-direita, aliada a outros grupos, como o mercado financeiro e os grandes especuladores, trabalha para desacreditar não apenas Lula e o seu governo, mas, sim, a perspectiva de um Estado que promova o desenvolvimento e a justiça social. O projeto de construção de um personagem similar a Javier Milei está sendo operado com toda a força, sem que o campo democrático se oponha de forma eficaz até o momento.

Marcelo Siano Lima – Historiador, professor e consultor político. Doutorando em Direito e Garantias Fundamentais e membro do Grupo de Pesquisa Estado e Constituição da Faculdade de Direito de Vitória (FDV)

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Last Update: 18/01/2025