Samia abriu uma exceção no domingo 7. Deixou a periferia de Saint-Denis, o que raramente faz, e percorreu os 35 minutos de metrô até a Praça da República, no centro de Paris, o quadrilátero vermelho da cidade, reduto preferido da esquerda para comemorar vitórias ou lamentar as derrotas, mais frequentes na última década. Na companhia de milhares de jovens, a eleitora de 27 anos de origem tunisiana parecia brincar de estátua com a imponente ­Marianne, a beldade de 9 metros e meio a erguer uma guirlanda aos céus no centro da rotunda. Respirações suspensas, corpos inertes, contagem regressiva, até o estrondo de alívio, surpresa e alegria. As pesquisas erraram desta vez, mas ninguém ali iria reclamar. A “frente republicana” conseguiu novamente deter o avanço do “monstro” da extrema-direita. Mais: depois de anos em segundo plano, a Nova Frente Popular, aliança dos partidos de esquerda, recuperou o protagonismo político. “O Reine”, diz Samia, em um jogo verbal com a sigla RN, de Reunião Nacional, legenda de extrema-direita comandada por Marine Le Pen, e a palavra heine, ódio em francês, “é literalmente o partido da raiva. A Le Pen é extremamente hábil em captar esse sentimento, especialmente contra os imigrantes. Sou francesa, me sinto francesa, mas o RN não quer isso.” A poucos metros de Samia, Beatrice, de 20 anos, embalada pela emoção, os fogos de artifício e a música, entregava-se ao momento, enquanto Michel, de 31, ­alternava os sentimentos, do entusiasmo à dúvida. “Saí de casa pouco esperançosa, mas cheguei aqui e senti uma energia muito boa. Quando saiu o resultado, foi uma explosão de felicidade. Meu namorado ganhou muitos beijos. Agora espero que a outra ­Marine (Tondelier, líder ecologista) seja nomeada primeira-ministra”, sonha a moça. “Estou feliz, mas também preocupado. Hoje evitamos o pior. Conseguimos mais uma vez erguer um muro de contenção. Até quando?”, interroga o rapaz.

É a pergunta de 1 milhão de garrafas de Petrus. Na França, o muro, sólido ou não, continuará de pé ao menos por um ano, prazo mínimo legal para a convocação de novas eleições, se tudo der errado – e as chances não são poucas. Até lá, a Nova Frente Popular, que elegeu 182 deputados, e o Ensemble, coligação liberal do presidente Emmanuel Macron, segunda colocada, com 168 cadeiras, estão obrigados a encontrar um arranjo de poder capaz de oferecer não só estabilidade, mas esperança aos franceses, em forma de empregos, renda, segurança e perspectivas de futuro. Caso contrário, o vaticínio, ou a ameaça, de Le Pen na noite do domingo 7 se tornará realidade antes do que se imagina. “A maré está subindo”, afirmou a líder do RN em entrevista ao canal de tevê TF1. “Desta vez, não subiu suficientemente alto, mas continua a subir. Por isso, a nossa vitória não tarda.”

“A maré está subindo. A nossa vitória não tarda”, vaticina, ou ameaça, Marine Le Pen

O presságio vai além da mera retórica. A maré roça o queixo dos franceses faz tempo. Desde as eleições presidenciais de 2002, quando o RN ainda se chamava Front Nationale, era conduzido pelo pai de Marine, Jean-Marie Le Pen, não disfarçava suas raízes racistas, xenófobas e nacionalistas e chegou ao segundo turno, a política francesa vive aprisionada à armadilha do “não”, aos acordos eleitorais de ocasião entre os partidos tradicionais, “republicanos”, limitados a deter a escalada da extrema-direita. O modelo peculiar francês de dois turnos, mesmo nas disputas legislativas, tem impedido até agora a chegada ao poder da direita radical, mas a cada fracasso do centro-direita e do centro-esquerda, conformados com a função de meros síndicos da ordem vigente, a água sobe alguns centímetros. O crescimento do RN na preferência popular tem sido contínuo e disseminado. Foi-se o tempo em que Le Pen e os seus colhiam votos apenas na França profunda, rural. Basta comparar os mapas eleitorais ano a ano: há mais jovens e mais eleitores dos centros urbanos capturados pelo discurso do ódio e seduzidos por soluções fáceis para problemas complexos.

Após aplicar um putsch no próprio pai, ao estilo das melhores famílias, e se apossar do movimento, Marine impôs um novo estilo ao partido, a ponto de se tornar inspiração das legendas de extrema-direita mundiais. A ruptura com a União Europeia e os ataques às instituições democráticas deram lugar a um europeísmo cético e à estratégia de infiltração nas estruturas nacionais e continentais para moldá-las à imagem e semelhança dos extremistas. As ideias não mudaram substancialmente, os vilões se alternam – a islamofobia do RN tem superado, em algum grau, o antissemitismo atávico da legenda –, mas a maneira de expressá-las é outra. Marine, em geral, calcula as palavras e tenta não parecer tão repugnante ou chauvinista quanto Jean-Marie. Jordan Bardella, o pupilo, passaria despercebido no Country Club ou em uma estação de esqui. A “domesticação” tem funcionado aos olhos da população. Entre as eleições presidenciais de 2017 e 2022, Le Pen dobrou o número de votos no segundo turno e pela primeira vez atraiu mais eleitoras do que eleitores. Também comandou a vitória nos dois últimos sufrágios europeus. Em junho passado, emplacou 30 deputados em Bruxelas, contra 13 do partido de Macron e 14 da esquerda, razão pela qual o presidente da República, de forma unilateral e precipitada, antecipou o escrutínio legislativo. E pela qual o campo progressista organizou às pressas uma frente eleitoral.

Mélenchon insiste na revogação da reforma da Previdência. Os coletes amarelos e os agricultores simbolizam a insatisfação – Imagem: Redes sociais, iStockphoto e Sameer Al-Doumy/AFP

Não fosse a soberba na reta final da campanha, inflada pela vitória relativa no primeiro turno (33% dos votos) – certo do sucesso, Bardella chegou a afirmar que a legenda só aceitaria assumir o governo se conquistasse “maioria absoluta” na Assembleia Nacional –, o resultado do domingo 7 não soaria como uma derrota humilhante. Os 143 deputados representam um aumento de 60% em relação aos 89 eleitos em 2022. ­Bardella culpou as “alianças desonrosas” por atirarem o país aos braços da “extrema-esquerda”, referência ao acordo da NFP e dos liberais que fortaleceu as candidaturas contra a extrema-direita em mais de 200 círculos eleitorais no segundo turno. Ainda assim, em perspectiva, Le Pen e seus asseclas não têm do que reclamar. Em termos práticos, o desempenho garante mais cargos e influência no Parlamento, uma relativa força de bloqueio, maior acesso a fundos eleitorais e a progressiva “naturalização” de políticos, discursos e propostas que claramente atentam contra os valores básicos da democracia, da República e dos direitos humanos.

E assim voltamos à pergunta de ­Michel. O “até quando” depende das decisões das próximas semanas. Macron, considerado “carta fora do baralho” no fim da noite do primeiro turno, em sete dias recuperou parte do capital político. Como vai lidar com a reviravolta nas urnas é a dúvida. Em artigo no site Politico, o jornalista Jamil Anderlini descreveu o presidente como “uma figura trágica e solitária”, um sedutor incapaz de lidar com a rejeição – quase 70% dos franceses desaprovam o mandato. Ele “não escuta ninguém”, confidenciou um auxiliar. Esse traço do caráter sugere um motivo para a convocação das eleições antecipadas e para as manobras ao longo da semana. Embora tenha perdido mais de cem deputados, a coligação do presidente da República não desistiu de formar o novo governo.

“A França merecia mais do que a alternativa entre o neoliberalismo e o fascismo”, celebrou Olivier Faure, do Partido Socialista

Há três caminhos. O primeiro é reunir os partidos de centro-direita em um acordo que permita superar o número de parlamentares da Nova Frente Popular e apresentar um candidato a ­premier. O risco: o governo não resistiria à primeira moção de censura apresentada pela esquerda ou pela extrema-direita. O segundo, mais complicado, é provocar um racha na NFP, isolar a França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon, e atrair socialistas, comunistas e verdes para uma coligação “centrista” liderada por um nome de consenso e aceito pelo Palácio Eliseu. Neste caso, falta combinar com os vermelhos. Por fim, diante de um impasse insolúvel, o presidente poderia recorrer à solução “Mario Draghi” adotada na Itália antes da vitória da extremista Giorgia Meloni: um governo de tecnocratas apoiado pelas principais correntes políticas. Aventa-se o nome de Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu. Problema: provavelmente aplaudida pelo mercado financeiro, a saída seria vista como uma traição à vontade dos cidadãos expressa nas urnas. Em princípio, o prazo para a indicação de possíveis primeiros-ministros se estende até 18 de julho. Por ora, em favor da “estabilidade do país” – a partir de 26 de julho, Paris sedia os Jogos Olímpicos –,­ Macron optou por recusar a renúncia de Gabriel Attal anunciada na noite do ­domingo 7 e manter o atual premier no cargo até segunda ordem. Na quarta-feira 10, o presidente decidiu comunicar-se com os franceses por meio de uma carta publicada no jornal Le Parisien. A missiva reforça sua tática. “Ninguém ganhou”, escreveu Macron, “o povo rechaçou a extrema-direita” e um próximo governo só será empossado se as correntes republicanas, à esquerda e à direita, construírem “uma maioria sólida e plural”.

Enquanto isso, Bolsonaro e Milei se divertem na Disneylândia “conservadora” – Imagem: Evaristo Sá/AFP

As escolhas do eleitorado colocaram a NFP diante de um dilema: manter intacto o programa apresentado na campanha ou ceder à governabilidade. Nenhuma força política empenhou-se mais na derrota da extrema-direita do que a esquerda. As lideranças colocaram de lado a vaidade, desenharam propostas mínimas comuns e, ao contrário dos aliados de Macron, alinharam-se sem pestanejar à estratégia da “frente republicana” contra o RN no segundo turno. Depois de todo o empenho e sacrifício e de voltar ao topo, fará sentido abdicar das ideias mais ousadas? Primeiro dos líderes da frente popular a celebrar o resultado na noite do domingo 7, Mélenchon reafirmou o compromisso com a revogação da reforma da Previdência, que aumenta a idade mínima de aposentadoria de 60 para 64 anos, implementada pelo presidente sem o aval do Parlamento. A reforma é um dos pontos de divergência entre a NFP e os liberais. A frente propõe ainda elevar a 1,7 mil euros líquidos o salário médio, aumentar os impostos dos mais ricos e recuperar a qualidade dos serviços públicos. “Com esta votação, a maioria fez uma escolha diferente para o país. A partir de agora, a vontade do povo deve ser estritamente respeitada”, discursou Mélenchon. “O presidente deve curvar-se perante esta derrota e admiti-la sem tentar evitá-la por qualquer meio. A Nova Frente Popular está pronta para governar.” Líder do Partido Socialista, Olivier Faure não destoou do colega: “A França merecia mais do que a alternativa entre o neoliberalismo e o fascismo”. Segundo ele, o resultado “evitou o pior” e abre espaço para uma “refundação que acabe com as divisões” e una os franceses “em torno de valores republicanos”.

O resultado na França dá novo ânimo a quem combate o avanço da extrema-direita ao redor do mundo

Representantes da esquerda mantêm intensas reuniões e prometem anunciar em breve o indicado da frente popular para o posto de primeiro-ministro. Mélenchon, tudo indica, está descartado, apesar de comandar o maior partido da aliança. A imagem de radical, inflada pelos adversários, faz do mentor da França Insubmissa um entrave a qualquer negociação parlamentar. Durante a campanha, as demais legendas se esforçaram para escondê-lo ou minimizar suas declarações. Na véspera do segundo turno, o ex-premier socialista François Hollande, que não esconde a aversão ao aliado, o aconselhou a “falar menos”. Marine Tondelier, a ecologista preferida da jovem Beatrice do início deste texto, Faure e Raphael Glucksmann, eurodeputado socialista, figuram entre as opções mais citadas por integrantes do NFP.

O flop de Le Pen, três dias depois da acachapante vitória do Partido Trabalhista no Reino Unido, devolveu algum ânimo aos democratas mundo afora. Nos Estados Unidos, Joe Biden, em situação periclitante na corrida presidencial, afirmou, em referência ao adversário Donald Trump, que os eleitores norte-americanos derrotarão o extremismo como os franceses. Na rede X, o presidente Lula festejou: “A gente não quer extrema-direita, não quer fascistas, não quer nazistas. A gente quer democracia. Foi isso que aconteceu na França”. A postagem não deixa de ser uma estocada na dupla Jair Bolsonaro e Javier ­Milei, “estrelas” de um convescote “conservador” em Balneário Camboriú. Os reaças aglutinados em Santa Catarina andavam animados com a vantagem do RN no primeiro turno. Reinava a sensação de que a chegada do partido de Le Pen ao poder daria um novo e crucial impulso ao movimento global. O Kremlin também lamentou o resultado. Bolsonaro, Milei, Trump e ­Vladimir Putin só não contavam com a rea­ção de ­Samia, Beatrice, Michel e a maioria dos eleitores. A França disse não, outra vez. Le Pen continua, porém, à espreita. •

*Colaborou Antonello Veneri (texto e fotos).


A FACA E O QUEIJO

A maioria esmagadora é uma oportunidade de ouro para os trabalhistas

O rei Charles empossa Starmer. Farage fica à espera dos acontecimentos – Imagem: Redes sociais/Reform UK e Yui Mok/AFP

“É hora de cumprir as nossas promessas”, determinou Keir Starmer na reunião ministerial do sábado 6. Primeiro trabalhista a ocupar o número 10 da Downing Street, após 14 anos de sucessivas, desastrosas e escandalosas administrações do Partido Conservador, “sir” Starmer tem pressa, desafios gigantescos e uma vantagem a não ser desperdiçada, uma inquestionável maioria de 412 deputados na Câmara dos Comuns, o que retira do caminho qualquer entrave à aprovação de medidas e leis. Se falhar, o ex-procurador-geral da Coroa não terá a quem culpar, a não ser a si mesmo e aos colegas de legenda.

Ludibriados pelas promessas do paraíso pós-Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, os britânicos gritaram por mudanças nas urnas e entregaram ao moderado Starmer a missão de recolocar as coisas no devido lugar. O NHS, sistema de saúde que antes era um orgulho nacional, está à beira do colapso. As prisões estão lotadas. Desde o Brexit, a ilha convive com períodos de ­desabastecimento de produtos e falta de mão de obra, qualificada ou não. O crescimento da pobreza infantil é alarmante. “Seremos julgados por ações, não por palavras”, afirmou o novo primeiro-ministro na primeira entrevista coletiva. A plataforma trabalhista foi construída em torno de cinco eixos: impulsionar o crescimento e aproximá-lo do desempenho das maiores economias do planeta, acelerar a transição energética até 2030, recuperar o serviço público de saúde, reduzir pela metade os crimes graves e violentos e gerar oportunidades aos jovens. A reintegração à UE está, por enquanto, fora de cogitação. O premier promete, no entanto, renegociar os “péssimos” acordos com Bruxelas firmados pelos antecessores. Sem uma reaproximação ao continente, dizem os especialistas, a recuperação econômica não passará de promessa.

Para alcançar os objetivos, Starmer conta não só com uma maioria mais que absoluta. O Parlamento britânico tem uma nova cara, mais parecida com o atual Reino Unido. Em termos de raça e gênero, esta será a legislatura mais diversa de todos os tempos. Negros, asiáticos e membros de outras minorias étnicas representam agora 13% dos deputados. Também cresceu o número de parlamentares LGBTQ+. Em editorial, The Guardian celebrou a vitória trabalhista. “Pela primeira vez em mais de uma década”, anotou o jornal, “a Grã-Bretanha tem um governo que se importa em tornar melhor a vida de todos. Só isso é motivo para sentir a ‘luz do sol da esperança’ da qual ­Starmer falou enquanto o ­país despertava para um novo amanhecer político.” Não por acaso, um dos primeiros atos do primeiro-ministro foi revogar o infame acordo de deportação de refugiados para Ruanda, aprovado durante a gestão de Rishi Sunak, limitado por decisões judiciais e criticado pelos ativistas dos direitos humanos.

A luz do sol não iluminou, no entanto, todas as sombras da Grã-Bretanha. O Reform UK, partido extremista fundado por Nigel Farage, tornou-se a terceira força. O fato de ter elegido apenas quatro ­deputados tem mais a ver com o sistema eleitoral inglês do que com o apoio nas urnas. O Reform amealhou 13% dos votos e roubou do Partido Conservador, reduzido a uma centena de mortos-vivos no Parlamento, a chance de vitória em diversos distritos e de um desempenho menos constrangedor. A exemplo de outros países, o extremismo abocanha e subverte o eleitorado da direita tradicional. Nas atuais circunstâncias, um fracasso do governo trabalhista não resultaria automaticamente no retorno dos tories ao comando. A alternativa pode ser bem pior.

Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Non ç´est non

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Última Atualização: 11/07/2024