
O historiador israelense Omer Bartov, um dos maiores especialistas mundiais em genocídio e professor na Universidade Brown (EUA), declarou em entrevista à BBC News Mundo que as ações de Israel em Gaza “se encaixam na definição de genocídio” e “não têm precedentes no século 21”. Ex-soldado do Exército israelense, Bartov afirmou que mudou de opinião em maio de 2024, após os ataques a Rafah e o deslocamento forçado de cerca de um milhão de pessoas. Segundo ele, há um padrão claro de destruição sistemática que visa “tornar Gaza inabitável” e que a operação militar “não é uma guerra, mas uma campanha de destruição”. Confira trechos:
Nos primeiros meses após o ataque do Hamas, você não usou a palavra genocídio para se referir às ações de Israel em Gaza. Quando e por que você mudou de posição?
Mudei de opinião e passei a acreditar que Gaza é inegavelmente um caso de genocídio no início de maio de 2024.
Em novembro de 2023, escrevi que havia evidências de crimes de guerra, possivelmente crimes contra a humanidade.
Eu ainda não tinha certeza de que havia provas suficientes de genocídio. Mas havia indícios de que poderia chegar a isso, porque havia declarações com conteúdo genocida.
Em maio de 2024, quando as Forças de Defesa de Israel (FDI) entraram em Rafah e desalojaram cerca de um milhão de pessoas para a região de Al-Mawasi, uma área sem infraestrutura à beira-mar, isso parecia indicar que se tratava de uma operação com intenções genocidas, intenções que já haviam sido manifestadas em outubro de 2023 (…)

Em um artigo para o jornal britânico The Guardian em 2024, você afirmou que “a escala do que as FDI estão perpetrando em Gaza não tem precedentes”. Você pode explicar isso?
A única comparação possível é com a Nakba, ou seja, a expulsão dos palestinos em 1948. Naquela época, cerca de 750 mil palestinos foram expulsos das áreas que se tornaram o Estado de Israel. E milhares de pessoas morreram. Mas os números não eram tão altos quanto são agora.
Obviamente a população é maior agora, mas os números atuais são absolutamente extraordinários.
A destruição é em grande escala. A tonelagem de bombas lançadas em Gaza é maior que a das bombas lançadas sobre cidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial.
Ouvi falar de reservistas israelenses que voltaram de Gaza e disseram que o que viram os fez lembrar das imagens de Hiroshima. E são soldados que participaram disso. A destruição direcionada, intencional e deliberada de escolas, hospitais, mesquitas, edifícios públicos e universidades é absolutamente extraordinária.
Quando você considera quantos jornalistas foram mortos, quantas equipes médicas foram mortas, quando você lê relatos de crianças sendo baleadas por franco-atiradores na cabeça ou no peito* — eu estava, inclusive, lendo esta manhã outra reportagem sobre isso —, é difícil encontrar uma equivalência para isso que aconteceu em um espaço tão pequeno com uma população de mais de dois milhões de pessoas.
Costumávamos pensar que o que os russos faziam na Chechênia e Grozni era terrível. Mas isso é em uma escala maior. É difícil comparar com qualquer coisa. Para o século 21, certamente não há precedentes.
Na Síria, mataram 2% da população, mas isso aconteceu em 13 anos. Em Gaza, aconteceu em vários meses. Este percentual de 2% já foi alcançado no verão de 2024 (…)

Até que ponto você vê no caso de Gaza os elementos-chave da definição contida na Convenção sobre Genocídio de 1948?
Há uma definição de genocídio: atos cometidos com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo específico, seja étnico ou nacional, como tal.
Em outubro, logo após o ataque e o massacre do Hamas de 7 de outubro, os líderes políticos e militares israelenses deram declarações dizendo que isso era o que eles queriam fazer, queriam destruir Gaza. Também disseram que não havia ninguém em Gaza que não fosse responsável.
Portanto, a intenção genocida foi manifestada, e tem sido manifestada repetidamente. A questão é: podemos ver um padrão de operações que mostre que essa intenção está sendo implementada?
Esse padrão, a essa altura, é absolutamente claro, porque podemos ver que o que aconteceu foi uma tentativa coordenada de tornar Gaza inabitável para essa parte da população palestina que vive lá, de destruí-la como um grupo, destruindo edifícios, matando um grande número de pessoas.
Estamos falando de mais de 53 mil pessoas mortas, das quais metade são menores, e os números são provavelmente muito mais altos do que isso.
Também vemos a destruição de tudo o que permite que essa população, se sobreviver, se reconstrua como grupo, porque tudo relacionado à sua cultura, educação, saúde e religião foi sistematicamente destruído.
O que acontece em Gaza se encaixa na definição de genocídio de 1948, a tentativa de destruir um grupo como tal (…)

O NRC, jornal holandês, entrevistou sete especialistas em genocídio de seis países, e todos disseram que Israel comete ações genocidas em Gaza. Você diria que há um consenso crescente entre os especialistas em genocídio neste sentido?
Eu diria que sim. Obviamente, há alguns casos isolados, mas com o tempo se criou um consenso, e acho que a maioria dos pesquisadores de genocídio diria que isso é genocídio.
Embora tenha sido criado um consenso entre os pesquisadores de genocídio, os pesquisadores que dedicaram sua carreira a escrever sobre o Holocausto, que no fim das contas foi um genocídio, tem sido muito difícil para eles, com algumas exceções, incluindo eu, dizer abertamente que Gaza é um genocídio.
No momento, existe uma divisão entre pesquisadores de genocídio comparativo e pesquisadores do Holocausto em institutos dedicados a lembrar e documentar o Holocausto, que se negam a condenar o que Israel está fazendo.
Conheço muitas dessas pessoas há muito tempo, e isso para mim é extremamente perturbador.
Se acreditamos no princípio de “nunca mais”, depois do Holocausto, é o momento de dizer em relação a Gaza: “Parem o que estão fazendo agora mesmo”.