No dia 24 de julho, Henrique Canary, do grupo Resistência, corrente interna do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), apresentou sua própria desculpa para defender a candidatura da genocida de saias. O mais curioso de tudo é que Canary, ao contrário de grupos como os Socialistas Democráticos dos Estados Unidos (DSA), que têm uma atuação política naquele país e, portanto, poderiam se beneficiar de alguma forma, ainda que de maneira oportunista, em uma aliança com Harris; o autor brasileiro não vota nos Estados Unidos, nem é deputado naquele país. É um apoio de graça ao que há de mais criminoso na política mundial.
No texto “Trump 2.0 não será igual a Trump 1.0 – será muito pior”, Canary começa falando que o republicano Donald Trump hoje seria muito mais perigoso que no passado, pois, quando foi presidente, as condições seriam mais adversas para um governo de extrema direita forte. Diz ele:
“Em 2016, a extrema-direita mundial estava apenas começando sua ascensão. Atuava de maneira um pouco velada, com ‘apitos de cachorro’. Seu programa não era claro. Falava muito de corrupção, de ‘enfrentar o sistema’, mas as partes abertamente fascistas de seu programa continuavam, em geral, encobertas. Trump foi um dos primeiros a ascender nessa onda e seu primeiro mandato esteve limitado pelas especificidades daquele momento. Não conseguiu concluir seu muro, não alterou significativamente a legislação norte-americana, não mudou radicalmente a correlação de forças na Suprema Corte, enfrentou um ascenso negro que manteve alertas e mobilizadas as melhores forças da sociedade norte-americana.”
É preciso, em primeiro lugar, advertir o leitor para a desonestidade do senhor Canary. Hoje, ele diz que o mandato de Trump “esteve limitado” – em outras palavras, que seu governo não foi verdadeiramente fascista. Em todas as eleições em que Trump foi candidato, a esquerda partiu para a mesma campanha: a de que uma eventual vitória de Trump seria o fim do mundo. Em 2020, quando Trump era presidente, a esquerda pequeno-burguesa mundial deu as mãos e clamou pela vitória de Joe Biden. O argumento? O mesmo, o de que Trump seria a pior coisa que já surgiu no planeta. Como se o mundo não tivesse conhecido Adolf Hitler e as ditaduras militares na América Latina.
A análise de Canary não é séria em nenhum aspecto. É, antes de tudo, um eco do que diz a imprensa imperialista, que pinta Donald Trump como uma “ameaça”, como alguém que precisa ser parado a qualquer custo. Alguém que, inclusive, quase foi parado por uma bala – que, ao que tudo indica, foi disparada pelos mesmos que apoiam a candidatura do Partido Democrata.
A candidatura de Trump é algo negativo para a classe operária norte-americana e para a classe operária mundial? Sim, sem dúvida. O problema é que onde Canary quer chegar é que, sendo Trump algo especialmente ruim, qualquer coisa seria melhor que ele. No final do artigo, o autor chega a falar literalmente isso:
“Nada, absolutamente nada é mais importante do que a sua derrota.”
É uma forma envergonhada de dizer: “nada, absolutamente nada é mais importante do que a vitória de Kamala Harris”.
Fosse alguém minimamente preocupado com a situação dos oprimidos no mundo, Canary ao menos levantaria a seguinte questão: “Trump é ruim, mas será que a sua adversária é melhor?”. Canary se nega a fazer essa pergunta porque a resposta entraria em contradição com sua tese. Kamala Harris é não somente uma ex-promotora, responsável pelo encarceramento em massa nos Estados Unidos, como uma continuidade do governo que está assassinando mulheres e crianças na Palestina. É uma figura que, em nenhum aspecto, seria melhor que Donald Trump.
Kamala Harris é, na verdade, pior. Porque ela, na medida em que se apresenta como “amiga” dos imigrantes, dos negros e da esquerda, provoca uma enorme confusão entre aqueles que deveriam estar se mobilizando contra os seus inimigos. A tese de Canary, portanto, não serve para repelir uma ameaça fascista. Serve, na verdade, para abrigar os inimigos dos trabalhadores nas fileiras da esquerda.
Passemos, agora, ao principal argumento da tese de Canary. Segundo ele, o que justificaria apresentar os mafiosos democratas como amigos dos trabalhadores seria um crescimento da extrema direita em todo o mundo. Esse crescimento existe? Sim, existe. Nos Estados Unidos, na Europa, em todo o mundo. Mas Canary se esquece de fazer duas perguntas fundamentais.
- Em todo o mundo, os aliados de Kamala Harris e Joe Biden impediram esse crescimento da extrema direita? De jeito nenhum! Na França, o que corresponde ao Partido Democrata é o Juntos, partido de Emmanuel Macron. Esse foi o maior derrotado das eleições para o parlamento europeu. O mesmo pode ser dito na Alemanha, o mesmo pode ser dito na Itália.
- O imperialismo “democrático” se mostrou um aliado dos trabalhadores em alguma circunstância? Não, jamais. Pelo contrário. O imperialismo, na medida em que viu que a esquerda argentina não seria capaz de levar adiante o seu programa de destruição neoliberal, tirou do bolso o fascista Javier Milei. O mesmo imperialismo, na medida em que viu seu barco Macron afundar, gritou: antes Marine Le Pen que Jean-Luc Mélenchon!
Canary, ao manipular o pânico causado pelo crescimento da extrema direita para chamar voto em Kamala Harris, ignora uma das lições fundamentais do século XX: sem imperialismo, não há fascismo. E é justamente isso que mantém a extrema direita viva. Quanto mais pessoas como Canary apresentarem o imperialismo como um aliado dos trabalhadores, mais o caminho estará aberto para que Trump, Le Pen e figuras até mais abertamente fascistas cresçam.