“Estamos em um barraco com um monte de crianças. Por favor, acionem a Força Nacional e a Polícia Federal. Estamos cercados por pistoleiros. Vocês precisam fazer alguma coisa por nós!” Gravado em vídeo, o desesperado pedido de socorro é de uma indígena Avá-Guarani, em pânico durante um violento ataque à aldeia Yvy Okaju, na Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, no município de Guaíra, oeste do Paraná. A ação criminosa, na sexta-feira 3, deixou um saldo de quatro pessoas feridas à bala, dentre elas uma criança de 4 anos e um homem atingido no maxilar, que segue internado na UTI em estado grave. Esse foi o quarto atentado sofrido pela comunidade em apenas sete dias. O primeiro foi em 29 de dezembro, quando atearam fogo na vegetação e em uma das casas da aldeia. Em meio a fogos de artifício lançados contra os indígenas, também ocorreram disparos de arma de fogo. Nos dias 30 e 31, novos incêndios e tiros. Um deles atingiu uma mulher da etnia. Até agora, nenhum criminoso foi identificado.
Ataques aos Avá-Guarani nesta época do ano estão se tornando recorrentes. Os criminosos aproveitam o recesso das autoridades para agir. Nessa passagem de ano, a violência também reinou na aldeia Yvy Okaju, com atentados em 25 de dezembro e 1º de janeiro, que resultaram em três pessoas baleadas. “A gente não tem a oportunidade de ter uma ceia de Natal, de desejar felicidade e prosperidade aos nossos parentes no Réveillon. A virada do ano para nós tem sido complicada. Estamos em choque, todo mundo abatido. Não temos segurança nenhuma dentro do nosso território e não há expectativa de mudança nos próximos anos. Já estamos perdendo a esperança. Os últimos anos têm sido bem difíceis, mas esse início de 2025 foi muito mais chocante”, lamenta Ilson Okaju, liderança indígena da região.
De acordo com ele, alguns indígenas aproveitaram a folga do fim de ano para construir casas no território, o que pode ter provocado a ira dos especuladores e estimulado a violência. Antes de os ataques se concretizarem, já circulavam nas redes sociais e grupos de WhatsApp mensagens ameaçando a comunidade e agentes da Força Nacional, responsáveis pela segurança do local. As ameaças foram denunciadas ao Poder Público, que nada fez para proteger a população. Os indígenas apontam certa conivência das autoridades com os criminosos. Segundo Okaju, um soldado da Polícia Militar chegou a falar para um cacique que era só “parar de invadir terras que vocês param de levar tiros”. Ele não arrisca um palpite sobre quem está por trás dos ataques, mas acredita que são grupos com estrutura paramilitar.
Na sexta-feira 3, quatro indígenas ficaram feridos em um ataque a tiros em Guaíra
“São pessoas que chegam na calada da noite, mascaradas, fazem o que querem e depois simplesmente desaparecem. Por onde saem? Como saem? Como a polícia não encontra ninguém? Dá para deduzir que estamos sendo atacados por homens muito bem preparados, treinados para isso. Talvez sejam milicianos, porque as pegadas, os rastros, eram de coturnos”, observa, criticando o baixo efetivo policial para garantir a segurança na região. “Só tem duas viaturas, uma fica circulando e a outra parada num ponto fixo. E os outros pontos que dão acesso à comunidade? A gente continua exposto.”
Um pedido de socorro enviado pelo WhatsApp durante o ataque do dia 3 não deixa dúvida quanto ao nível de insegurança vivenciado pela comunidade. “Não temos apoio nenhum aqui. A Força Nacional está dizendo que foi só um rojão. Será que a gente precisa enterrar um parente para provar que estamos sendo atacados de verdade? Estamos cansados de ver crianças sendo baleadas e ninguém nos está ouvindo. Quando a Justiça brasileira vai agir?”, desabafa uma indígena que pediu para não ser identificada.
Há um histórico conflito fundiário na TI Tekoha Guasu Guavirá, que circunscreve os municípios de Guaíra, Terra Roxa e Altônia. Além da pressão de proprietários rurais, os indígenas queixam-se da especulação imobiliária, porque parte do território está no limite do centro urbano, muito próximo do bairro Eletrosul, em Guaíra. São 24 mil hectares de área, sobrepostos por 165 fazendas. Em 2018, a Funai delimitou e identificou a TI, o primeiro passo para a demarcação. Os trabalhos ficaram paralisados no governo Bolsonaro e só foram retomados em 2023, com Lula. No entanto, uma ação movida pelas prefeituras de Guaíra e Terra Roxa e outra de autoria da Federação da Agricultura do Estado do Paraná conseguiu suspender novamente o processo, aumentando a insegurança jurídica e a violência na região.
Em resposta aos atentados, o Ministério da Justiça enviou, no sábado 4, novos agentes da Força Nacional, aumentando o efetivo em 50%. Na segunda-feira 6, um novo reforço dobrou o número de agentes no local. “A ampliação visa intensificar as ações de segurança e garantir a proteção das comunidades indígenas, em colaboração com os demais órgãos de segurança pública e representantes indígenas”, diz uma nota da pasta, ressaltando que a Polícia Federal abriu um inquérito para identificar os autores dos ataques. “O monitoramento contínuo busca evitar novos incidentes.”
Para o pesquisador Clóvis Brighenti, que integra o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a impunidade serve de estímulo à escalada de violência. “Não se tem investigação, não se apuram as responsabilidades, não se faz uma ação de desarmamento na região. Pelos cartuchos encontrados no local, dá para ver que usam armas de grosso calibre. E isso não é investigado, ninguém responde pelos crimes. É claro que os criminosos se sentem incentivados a cometer novos atos de violência.” Os indigenistas também se queixam do governo do Paraná de fazer vista grossa, de não agir no sentido de cessar a violência contra a população indígena.
Na sequência de uma série de ataques violentos contra os povos Avá-Guarani, entre julho e agosto do ano passado, o governador Ratinho Júnior, do PSD, declarou que não iria “admitir que índios paraguaios invadam terras privadas no Paraná”, em crítica endereçada ao governo federal, que, segundo ele, estaria demorando para fazer a retirada dos indígenas do território. “Vira e mexe, o governador acusa os guaranis de serem paraguaios e invadir terras. Isso também estimula os ataques aos indígenas”, destaca Osmarina de Oliveira, geógrafa que também atua no Cimi.
Indígenas acusam a Força Nacional e o governo do Paraná de inação diante dos ataques
Em nota, o governo do Paraná se eximiu de qualquer responsabilidade, enfatizando que “a responsabilidade constitucional pela solução dos conflitos e pelas terras indígenas é do governo federal”. E acrescenta: “Em outubro de 2024, o governador Carlos Massa Ratinho Júnior formalizou um ofício ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cobrando uma resposta firme e imediata da União. Desde então, nenhuma solução concreta foi apresentada, expondo a população da região a constantes riscos”.
O Ministério dos Povos Indígenas condenou os atos de violência contra os povos Avá-Guarani e disse acompanhar a situação por meio do seu Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas, que já solicitou ao Ministério da Justiça uma investigação sobre os grupos armados que atuam na região. Também por meio de nota, a Funai afirmou ter reforçado sua equipe no local, para dar suporte aos indígenas feridos e dialogar com as instituições locais e órgãos de segurança pública.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou um documento, assinado conjuntamente com outras entidades indígenas, no qual acusa o governo estadual de incitar o ódio contra os povos Avá-Guarani. O texto diz ainda que a Força Nacional relativiza as denúncias, que a Funai não tem capacidade de intervenção no contexto local e que o Ministério dos Povos Indígenas não tem dado a resposta necessária em face de tanta brutalidade. “O governo parece acovardado. Essa covardia traz dor, sofrimento e muita angústia aos originários habitantes daquela região, os Avá-Guarani.”
Para o indigenista Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai, a situação dos indígenas no Brasil beira o abandono. “Não vejo o Legislativo nem o Judiciário fazerem nada, mas esperava mais do governo Lula. Se, pelo menos, o presidente tivesse colocado as forças à disposição dele para retirar os invasores das terras indígenas, já teria um grande impacto. Mas isso não está sendo feito. Eles põem uma força mínima, 10, 12, 15 homens para fazer um mise-en-scène e dizer que estão operando, mas não tem nada concreto.” •
Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Na mira de pistoleiros’