Enredada nas obsessões com o equilíbrio fiscal, a alma dos economistas brasileiros poderia ousar uma aventura pelos caminhos (e descaminhos) do Plano Real.
Organizado por Gustavo Franco, o livro 30 Anos do Real exibe artigos de Pedro Malan e Edmar Bacha publicados entre 1996 e 2024. A coletânea inicia a caminhada em 1996 e oferece ao leitor um valioso conjunto de indagações (e respostas) de três autores do Plano a respeito da trajetória político-econômica do Real. Faltou André Lara Rezende.
Em sua concepção essencial, o Plano Real seguiu o método básico utilizado para dar fim à maioria das “grandes inflações” do século XX: recuperação da confiança na moeda nacional pela garantia de seu valor externo.
Um dos exemplos é a economia alemã, que sucumbiu à impossibilidade de gerar as divisas necessárias para honrar as reparações de guerra impostas pelo Tratado de Versalhes. A fuga sistemática do marco para o dólar e a libra disparou a hiperinflação e não escassearam analistas de prestígio, como o italiano Brescianni-Turroni, dispostos a acusar o Reichsbank de destempero monetário. A “âncora” para escapar das maldições da hiperinflação repousou na estabilização da taxa de câmbio nominal, garantida pelo financiamento em dólares feito pelo Banco Morgan.
“Os mercados internacionais de capitais encontravam-se em um estado de grande abundância, o que nos permitiu conduzir uma política cambial sem a qual a estabilização não teria sido alcançada com tanta facilidade”, assinala Gustavo Franco. “Pouca gente se lembra de que o Real começou sua existência num regime de flutuação cambial exatamente como o de hoje. Em tempos de abundância, todavia, a flutuação não deu muito certo e nos levou às bandas cambiais, que nos serviram muito bem até a violenta mudança meteorológica ocorrida em meados de 1998.”
Franco faz referência à sobreliquidez que embalou a entrada de dólares nos países castigados pela crise da dívida externa. A recessão americana prolongou-se até meados de 1992 e se juntou ao estouro da bolha especulativa japonesa para impor grande lassidão às políticas monetárias nos Estados Unidos e no Japão. O propósito era tornar possível a digestão dos desequilíbrios no balanço patrimonial de empresas, bancos e famílias.
No momento da reforma monetária, graças às intervenções salvadoras nos Estados Unidos e no Japão, as reservas brasileiras galgaram o valor de 40 bilhões de dólares, correspondente a 18 meses de importação, mais do que suficiente para amparar a fixação do câmbio como instrumento da política de estabilização. A partir daí, até a crise de 1998/1999, as reservas chegariam a quase o dobro do último valor, sustentando e renovando a aposta na ancoragem cambial. No momento do Plano, o superávit comercial era de 13,3 bilhões de dólares e o déficit em transações correntes, de apenas 592 milhões de dólares.
Os responsáveis pelo programa brasileiro escolheram um regime de conversibilidade limitada, com taxa de câmbio semifixa. Nos primeiros meses, as autoridades permitiram uma forte valorização da taxa nominal de câmbio, visando a uma convergência mais rápida entre a taxa de inflação doméstica e a dos EUA – o que de fato ocorreu. Após uma aceleração inflacionária motivada pela “corrida” de reajustes para chegar “alinhado” no momento da anunciada conversão à nova moeda, a inflação despenca em julho de 1994, chegando a registrar, em dezembro, menos de 1% no índice geral de preços.
No entanto, a mesma valorização cambial que amparou a desinflação rápida ampliou o componente da formação da taxa de juros que se correlaciona com as expectativas de desvalorização do câmbio. O governo procurou regular essa expectativa definindo uma política de ajuste gradual do câmbio.
No Natal de 1994, foi publicado na Folha de S.Paulo o artigo “Os riscos da valorização cambial”, assinado por mim e Paulo Nogueira Batista. Dizíamos: “A problemática sobrevalorização cambial não parece ser um ‘erro de pilotagem’, nem um subproduto indesejado da política de estabilização. Trata-se, aparentemente, de uma peça central do programa do governo… essas circunstâncias colocam o programa de estabilização brasileiro em dependência muito estreita da disponibilidade abundante de financiamento externo. Ora, os fluxos financeiros que abastecem nosso balanço de capitais são extremamente voláteis… uma valorização duradoura acaba levando à perda de posições conquistadas nos mercados do exterior e à desarticulação dos setores que competem com importações, suscitando enormes dificuldades para o posterior ajustamento da economia”.
Quando nasceu, o real precisou do amparo do dólar. Para ficar cravada no fundo do oceano ainda encapelado na ressaca da hiperinflação, a âncora contou com a força da Selic, que, entre 1995/1998, pagou 22% ao ano, em termos reais, para segurar a grana nas fronteiras nacionais. Sacudida pelas crises do México, Ásia e Rússia, a taxa básica foi aos píncaros às vésperas da desvalorização de 1999. Na iminência do enfraquecimento da âncora, exorbitaram as taxas de juro. Não adiantou, a âncora desgarrou-se.
Depois do default russo, a aversão ao risco assumiu formas agudas. Nesse momento, as reservas brasileiras eram de 70 bilhões de dólares. O Fundo Monetário Internacional exigiu o de sempre: ajuste fiscal, metas rigorosas para o crédito líquido doméstico e limites para o endividamento externo de curto prazo.
O mercado ficou dividido. Uma fração majoritária percebeu que esse monstrum vel prodigium da tecnocracia global teria vida curta. Outros remaram contra a maré. Apesar disso, intensificaram-se os ataques contra a cidadela enfraquecida do emergente em dificuldades. Depois de uma perda de 45 bilhões de dólares de reservas, as forças de mercado desvalorizaram o real. •
Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Na corda bamba do equilíbrio fiscal’