De 2020 para cá, o bilionário Elon Musk passou a promover a agenda “anti-woke”. Esse discurso de Musk chega ao ápice com o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, tendo Musk como ministro de Estado e anunciando medidas contra a população transgênero.

Existe um motivo para o surgimento dessa face do dono do X e da Tesla: um dos filhos de seu primeiro casamento é uma mulher trans. Mas quando começa essa história e o que é o discurso anti-woke?

Em 2020, aos 16 anos, Vivian Jenna Wilson deu início ao tratamento de transição de gênero, utilizando bloqueadores da puberdade e terapia hormonal, após consentimento de ambos os pais. Elon Musk alegou em entrevista a Jordan Peterson ter sido “enganado” para autorizar o tratamento, mas Vivian afirma que ele leu os documentos antes de assinar.

Radicalização

O mesmo período de transição de gênero de Vivian coincide com a compra do Twitter, que virou X. De acordo com pesquisas da ONG Center for Countering Digital Hate, o discurso de ódio disparou no X após a efetivação da compra por Elon Musk. Posts racistas chegaram ao triplo da média de 2022, e ataques contra gays e pessoas trans aumentaram 58% e 62%, respectivamente. Além disso, houve um aumento no número de ataques pessoais de Elon Musk em seu próprio perfil contra a agenda woke.

Musk passou a se aproximar de políticos conservadores no mesmo período. Um desses alinhamentos foi com o governador republicano da Flórida, Ron DeSantis. DeSantis anunciou a vontade de se candidatar à presidência, e Musk declarou publicamente que apoiaria o governador.

DeSantis é conhecido nos Estados Unidos por liderar a guerra cultural, abertamente contra políticas de gênero e raça. Essas medidas conquistaram a simpatia de Musk, além de o bilionário acreditar na possibilidade de vitória do governador. Na época, Musk não acreditava em uma vitória de Donald Trump.

O principal caso é a lei “Don’t Say Gay”, sancionada por DeSantis, que proíbe escolas da Flórida de falarem sobre orientação sexual e identidade de gênero.

DeSantis desistiu da candidatura e passou a apoiar Trump, que venceu as prévias e, posteriormente, derrotou a democrata Kamala Harris nas urnas, sendo eleito para seu segundo mandato.

Relacionamento de Musk com a filha

Elon Musk e Justine Wilson se separaram em 2008, e, apesar da guarda compartilhada, Vivian declarou em uma entrevista à NBC News que Elon nunca foi um pai presente e que deixava ela e seu irmão gêmeo, Griffin, aos cuidados da mãe e de babás.

A relação entre Vivian e Musk é conturbada desde muito cedo. Vivian caracteriza seu pai como “narcisista e frio”. Durante a infância e adolescência, Musk a reprimia para ser mais “masculino” e engrossar a voz, disse à NBC.

Em 2022, ela entrou com um processo para alterar seu nome masculino de nascimento para Vivian Jenna Wilson. A retirada do sobrenome do bilionário não foi mero detalhe. Na audiência, Vivian justificou a mudança por conta de sua identidade de gênero e a escolha do sobrenome da mãe por não querer ter associação com o pai biológico.

Negação da identidade

Elon Musk, em entrevista a Jordan Peterson, demonstra seu descontentamento com o processo de transição de Vivian, que ele ainda se refere como filho e o chama pelo nome de nascimento, Xavier. Um trecho desta entrevista foi recortado e legendado para o canal do YouTube da Carla Zambelli, com o título “DE CORTAR O CORAÇÃO. A triste história de Elon Musk e seu filho”. Zambelli, deputada da extrema-direita brasileira, faz questão de chamar Vivian pelo pronome errado, assim como Elon Musk fez durante o vídeo. No título e nos comentários, Zambelli e seu público demonstram empatia com a história de Musk, como uma vítima do “vírus woke”, como o próprio Musk chama. Mas a empatia com a filha, Vivian, é inexistente.

Durante a entrevista, Musk fala sobre o “nome morto”, que é o nome de nascimento de uma pessoa trans. Para a psicóloga Alice de Biasi, o processo de escolha do nome para uma pessoa trans é fundamental para sua identidade, podendo ter um significado pessoal profundo. Ao explicar o que, para ele, é o “nome morto”, com um tom dramático e triste na fala, Musk diz: “A razão por que chamam de nome morto é porque meu filho está morto, morto pelo vírus woke”.

Para Alice, o comportamento de se recusar a chamar a filha pelo pronome correto ou pelo próprio nome escolhido é “puramente transfobia”.

“Acho muito curioso quando a cisnormatividade insiste em chamar pessoas trans, travestis pelo nome morto. Porque nenhuma pessoa gosta de ser chamada pelo nome errado. O João não gosta de ser chamado de Maria, então por que com uma pessoa trans, travesti se faz isso propositalmente? O motivo é puramente transfobia.”

Alice também destaca que esse comportamento é muito comum no dia a dia de pessoas trans. Entre familiares, no ambiente de trabalho, no hospital, pessoas insistem em chamá-las pelo pronome incorreto. Além dos olhares e julgamentos, o ato de chamar uma pessoa trans pelo nome morto ou pelo pronome errado é propositalmente desrespeitoso e, na maioria das vezes, feito para provocar, para desrespeitar deliberadamente, para negar a existência e a identidade.

Quando Musk erra o pronome da filha, ele faz isso propositalmente. Para Biasi, Musk quer deixar claro que nega a existência da filha. Alice também destaca a crueldade do ato. Para o bilionário, a escolha do gênero da filha vem em primeiro lugar; é isso que ele pensa quando fala da filha, no gênero.

“Ele coloca o gênero da filha em primeiro lugar, independentemente do amor dele por ela, se é que existe algum amor. Ele resume a filha em: ‘Não aceito o fato de você ser uma pessoa trans’.”

Musk continua na entrevista alegando que pessoas que “divulgam esse comportamento” deveriam ser presas. E Peterson lamenta Musk “passar por essa situação” e diz que “muitas crianças estão sendo destruídas por isso”, e que essa é a “gota d’água” para Musk. Por fim, Musk afirma: “É por isso que prometi acabar com o vírus woke, e estamos fazendo progresso”.

Nos comentários do vídeo publicado por Zambelli, que conta com mais de 50 mil visualizações no YouTube, um deles resume a estrutura do discurso anti-woke: “Muito triste, Zambelli! E o mais triste é que não se trata da vontade do filho, mas de um mecanismo maligno, devastador, de destruir pessoas e suas famílias.”

Jordan Peterson é um filósofo e psicólogo canadense famoso por promover o discurso anti-woke e ultraconservador. Ele é um dos queridinhos da extrema-direita norte-americana e brasileira. Em 2024, Peterson participou de palestras no Brasil, promovidas pelo Brasil Paralelo, e contou com a presença e clamor dos bolsonaristas.

Em resposta a essas alegações, Vivian concedeu uma entrevista à NBC e passou a repudiar o próprio pai por suas falas. Para ela, Musk acreditou que passaria impune e que ela ficaria calada diante das mentiras que ele disseminou em um veículo de grande repercussão.

Vivian mantém ativismo nas redes sociais pelos direitos das pessoas trans e, em clara resposta à frase de Musk, a descrição de seu perfil no TikTok é “I promise, I’m not dead”, em tradução livre: “Eu prometo, não estou morta”.

Agenda Woke

O termo “woke” tem suas raízes na comunidade afro-americana e originalmente significava “estar alerta para a injustiça racial”. Com o tempo, seu significado se expandiu para abranger uma conscientização mais ampla sobre questões sociais e políticas, especialmente relacionadas à igualdade e justiça social. O termo deriva da expressão do inglês “stay woke”, que se traduz como “continue acordado”. Em 2017, o dicionário inglês Oxford acrescentou este novo significado de woke, definido como: “estar consciente sobre temas sociais e políticos, especialmente o racismo”.

Em 2020, George Floyd, um homem negro, foi morto por asfixia durante uma abordagem policial em Minneapolis, EUA. A ação violenta dos policiais no caso de Floyd gerou protestos em todo o país e no mundo, intensificando o movimento Black Lives Matter. É importante destacar que o Black Lives Matter foi fundado em 2013, embora a morte de Floyd tenha impulsionado o movimento. Com a impulsão do Black Lives Matter, o termo Woke voltou a estar em voga nas discussões políticas, principalmente nos Estados Unidos. 

No Brasil, esse tema é abordado também como “identitarismo” e não é adotado apenas na extrema-direita. Alguns grupos dentro da esquerda criticam o identitarismo, argumentando que ele pode fragmentar a luta de classes e desviar o foco de questões econômicas mais amplas. Há preocupações de que a ênfase em identidades específicas possa levar a retrocessos em direitos já estabelecidos, especialmente diante da polarização política e do crescimento de discursos populistas contrários à “agenda woke”.

Anti-woke 

O cientista de dados Ergon Cugler, como pesquisador, tem se dedicado a estudar desinformação e discurso de ódio nas redes.

Segundo ele, o movimento identificado como uma “agenda woke” tem sido especialmente chamado nos Estados Unidos por ultraconservadores de direita como um movimento gaysista, feminazi, de vitimização dos negros, que supostamente estaria tentando tomar conta da sociedade para impor uma suposta agenda de gênero.

Para Ergon, quem mais fala sobre o “woke” são os ultraconservadores que já se posicionam como anti-woke. É parecido com o que ocorre nos movimentos políticos conservadores pelo mundo: tudo o que não é identificado por eles como uma pauta da direita “é coisa de comunista”.

“Não à toa vemos lideranças globais de extrema-direita falando que o principal desafio do século, segundo eles, é combater essa ditadura do politicamente correto, a suposta agenda woke que supostamente se infiltrou nas escolas, na cultura.”

O discurso é construído com base na perspectiva de que existe uma nova ordem mundial, um grupo de globalistas que querem internacionalizar uma cultura progressista a partir do marxismo cultural, a partir da lógica de Gramsci, e fazem isso por meio de uma chamada “agenda woke”.

Cugler lembra que a lógica das teorias da conspiração, como essa dominação do mundo por parte da agenda woke, é baseada no conceito do filme “Matrix”. O personagem principal de Matrix, Neo, em determinado momento precisa decidir entre duas pílulas, a azul e a vermelha. Tomar a pílula azul significa continuar enxergando a realidade da maneira como estamos. Já a pílula vermelha significa enxergar além de tudo. Esses conspiracionistas se denominam os “red pills”. No Brasil, esse grupo ficou conhecido por espalhar discurso misógino pela internet, mas não para por aí.

“São comunidades que entendem que haveria um movimento cultural de grupos progressistas tentando dominar o mundo, tentando impor uma cultura woke, e eles, que seriam os libertados, os redpills, poderiam despertar a sociedade para se mobilizar contra isso.”

A “porta de entrada” para coisas mais pesadas

 Em sua pesquisa, ele conseguiu mapear mais de 5 milhões de usuários em comunidades de teorias da conspiração em toda a América Latina e o Caribe, sendo dois milhões e meio desses usuários no Brasil. Aproximadamente 1% da população brasileira está envolvida nessas comunidades abertas somente no Telegram.

Na pesquisa desses grupos do Telegram, a categoria Anti-woke e gênero conta com 279.346 conteúdos mapeados só em 2024. Dentro desses grupos, Cugler avalia que os links divulgados de convites para outros grupos são um fator determinante para novos discursos conspiracionistas e de ódio serem apresentados. As pessoas passam a frequentar grupos de teorias da conspiração, antivacina e terraplanismo. Nesses grupos, recebem uma “droga” nova: o discurso “anti-woke”. Porém, esses grupos não param por aí. O estágio final é de grupos abertamente neonazistas.

“Se eu posso fazer uma analogia, é como se fosse a droga de entrada, a porta de entrada para uma droga ainda mais pesada. Então eles consomem assuntos que são um pouco mais light, nova ordem mundial, cai um grupo de misoginia, que fala de agenda woke, e de repente está ali levantando o braço, fazendo o gesto nazista e defendendo o movimento nazista no Brasil.”

A analogia da “porta de entrada” apresentada por Cugler passa a fazer sentido em convergência com a análise do que está acontecendo recentemente. Isso pode explicar, por exemplo, o gesto nazista reproduzido por Elon Musk na posse de Donald Trump.

Trump

Em 2025, já como presidente, Donald Trump assinou uma ordem executiva que estabelece que o governo dos Estados Unidos reconhecerá apenas dois gêneros: masculino e feminino.

A ordem determina que todas as agências federais devem cessar a promoção do conceito de transição de gênero e usar o termo “sexo” em vez de “gênero” em documentos oficiais, como passaportes e vistos.

Além disso, a ordem impede o uso de fundos públicos para cuidados de saúde relacionados à transição de gênero e proíbe pessoas transgênero de usarem instalações de um único sexo financiadas pelo governo federal, como prisões e abrigos para vítimas de violência doméstica.

A ordem também visa acabar com programas governamentais que promovem a diversidade e inclusão, defendendo que a realidade biológica do sexo deve ser a base das políticas federais.

O poder

Dentro desses grupos pesquisados por Cugler, esse tipo de teoria e conteúdo perigoso pode ser comentado com um amigo na rua, o que não é potencialmente tão nocivo à sociedade. Porém, quando esse discurso alcança pessoas em situação de poder, como é o caso de Musk e Donald Trump, o tamanho do impacto é incalculável. Trump já mudou leis que considera “woke” com menos de um mês de governo.

Outro ponto significativo da nocividade do discurso de ódio sendo propagado por figuras poderosas é a legitimação. Quando uma autoridade pública, um bilionário dono de uma rede social, um presidente da república fala a mesma coisa que esses grupos extremistas, isso dá mais coragem para eles se radicalizarem ainda mais, aponta Cugler.

Violência

O Brasil, pelo 17º ano consecutivo, segue como o país que mais mata pessoas trans no mundo. Os dados são do Dossiê: Registro Nacional de Mortes de Pessoas Trans no Brasil em 2024, da Rede Trans Brasil.

Em 2024, 122 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil, sendo cinco defensoras de direitos humanos. Os dados são da última edição do dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

Um detalhe intrigante para se cruzar com os dados de violência contra pessoas trans é que o país que mais faz buscas por pornografia com pessoas trans é o Brasil, segundo dados do Pornhub.

O desejo e a violência com corpos trans mostram que esses dados podem estar em congruência. A agenda anti-trans e o pânico moral em relação a pessoas trans e travestis são fatores determinantes para o número de assassinatos liderados pelo Brasil, mas o consumo de pornografia trans demonstra o desejo por corpos trans, um ponto a ser observado. A repressão sexual em relação a desejos que convergem com crenças religiosas ou políticas pode ser um fator a desencadear a violência contra essa comunidade.

“Não é uma verdade absoluta, cada indivíduo tem a sua questão, podem haver diversas interpretações possíveis para esse ódio com a população trans, mas esse é um ponto no mínimo interessante de ser pensado”, destaca Alice.

Lucro político

O espantalho da cultura woke é muito lucrativo politicamente. O vereador mais votado da cidade de São Paulo, Lucas Pavinatto, tinha como slogan da campanha “o candidato anti-woke”.

Em Brasília, na Câmara dos Deputados, o deputado federal Nikolas Ferreira fez um discurso transfóbico na tribuna, usando uma peruca no Dia das Mulheres e falando que “se considerava uma deputada”. Nikolas teve seu processo engavetado na Comissão de Ética da Câmara.

Representatividade x Woke

Recentemente, algumas grandes corporações nos Estados Unidos, como Meta, Amazon, Walmart, Target, Bud Light, Jack Daniel’s, John Deere, Tractor Supply e Harley-Davidson, começaram a reavaliar ou até mesmo abandonar suas políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). Os ataques às políticas de diversidade é uma resposta dessas empresas aos grupos conservadores que pressionam para o encerramento desse tipo de política, que são consideradas Woke. 

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), apenas 4% das pessoas trans e travestis estão empregadas no mercado de trabalho formal. 

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Last Update: 07/02/2025